Valorizar os saberes tradicionais e o protagonismo indígena são formas de evitar novos desastres ambientais, afirma a Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Valorizar os saberes tradicionais e assegurar a demarcação de territórios indígenas são medidas urgentes para conter a crise ecológica e as violências contra os povos originários. Para a Abrasco, o Governo deve garantir mais políticas públicas articuladas.
Equilibrar a vida humana e a natureza é uma emergência para combater a exploração dos recursos naturais, as mudanças climáticas e, principalmente, as violências contra os povos originários. Nesse sentido, visando a proteção da população indígena, que detém saberes ancestrais para a manutenção das florestas e dos rios, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) lançou o relatório “Território, ambiente e saúde dos povos indígenas – vidas e políticas públicas em contínuo estado de emergência”. O documento foi elaborado pelo Grupo Temático Saúde e Ambiente e aponta dez ações para enfrentar a crise ecológica e de saúde entre os povos originários.
Em primeiro lugar, a proposta é que o Governo brasileiro proteja os territórios indígenas, reforçando a implementação de políticas públicas articuladas na área da saúde, segurança e educação. Ao mesmo tempo, essas medidas precisam ter a participação ativa dos povos originários nos processos de organização e decisão. De acordo com o relatório, a urgência em conter a crise ecológica “não se trata apenas de pensar no futuro dos povos indígenas, mas também no futuro da vida em todos os territórios do Brasil, da democracia e dos direitos fundamentais de existência que devem ser defendidos”.
Além disso, o relatório indica a valorização dos saberes ancestrais na atenção à emergência climática para a proteção imediata das florestas e restauração ecológica. Para a Abrasco, é preciso considerar a fala do xamã Davi Kopenawa Yanomami quando diz que o “hoje já é o futuro”. Portanto, em todas as ações para enfrentar a crise ecológica, a associação destaca que “os povos indígenas devem ser os principais protagonistas deste processo amplo e aliados por um futuro comum”.
A urgência da demarcação excluindo o marco temporal é o principal ponto defendido pela associação. Segundo o relatório, o marco temporal é inconstitucional e não pode haver flexibilização nas leis para a exploração econômica de Terras Indígenas. Assim, o uso desses territórios deve ser restrito aos povos originários. Além disso, a Abrasco pede o fim do pagamento de indenização para os que ocupam de forma violenta as áreas públicas, de direito dos povos originários. O Lunetas já apontou como o marco temporal afeta diretamente os direitos das crianças indígenas na saúde, educação e cultura.
A Lei 14.701/2023, chamada de marco temporal, foi aprovada pelo Congresso Nacional em setembro do ano passado. Embora o presidente Lula tenha vetado, em outubro, o ponto principal sobre as demarcações de terra a partir da data da Constituição, o Congresso derrubou o veto em dezembro. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) realiza uma série de audiências de conciliação com lideranças indígenas para discutir a constitucionalidade da nova lei.
Todas as esferas de governo, empresas e instituições devem cumprir protocolos específicos para garantir a consulta e a participação dos indígenas antes de executar qualquer ação de saúde, educação e meio ambiente que os envolvam. Desse modo, deve-se seguir a Convenção n. 169/1989/OIT74, presente na legislação brasileira. Esse ponto visa manter o respeito, a autonomia e a manifestação das vontades das comunidades tradicionais, reforçando seus saberes e sua cultura.
A violação dos direitos indígenas à terra, à economia, à educação, à saúde, ao ambiente e à organização sociocultural ocorre desde a invasão dos colonizadores. Apesar de documentos como a Carta de Direitos Humanos das Nações Unidas, por exemplo, os povos originários sofrem constantes e históricas violências. Isso culmina no extermínio de comunidades e, portanto, também afeta crianças e adolescentes, que sofrem com doenças, violência sexual e territorial. Nesse sentido, o relatório aponta que essas violações impedem o desenvolvimento de seus modos de vida em equilíbrio com a natureza. Por isso, o Estado tem o dever de apurar e reparar integralmente os povos originários responsabilizando poluidores, invasores e agressores com fiscalização e controle da ação de corporações e empresários nos territórios indígenas.
Crianças e adolescentes indígenas têm direito a melhores condições de educação escolar. Ao mesmo tempo, ações específicas para uma educação diferenciada, de acordo com suas culturas e realidades, precisam ser ampliadas. A Abrasco defende que os estudantes indígenas tenham uma educação intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, com respaldo do poder público. Além disso, reivindica a oferta de ensino técnico e superior para os estudantes dentro e fora de seus territórios.
Devido às grandes distâncias entre as comunidades e os centros de referências de atendimento à saúde, é urgente garantir o acesso a ações, serviços e tecnologias em seus territórios, em especial à atenção primária. Ao mesmo tempo, deve-se oferecer formação permanente aos trabalhadores da saúde indígena. Esses trabalhos devem ser organizados segundo os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) e referenciados para a rede do Sistema Único de Saúde (SUS). As ações de saúde diferenciada precisam também considerar os impactos causados pelos eventos climáticos extremos e a exploração da natureza, como as queimadas e o despejo de mercúrio pelo garimpo nos rios das Terras Indígenas.
Desenvolver e implantar uma política de vigilância da saúde com objetivo de superar o extrativismo e valorizar a sabedoria e as práticas dos povos originários. Ao defender a promoção da saúde e da articulação das justiças social, sanitária e ambiental/territorial, a Abrasco sugere a visão crítica do atual modelo de desenvolvimento que se apoia na expropriação da natureza e no modo de produção de mercadorias nos biomas brasileiros.
Governo federal, estadual e municipal devem articular e pôr em prática ações coletivas para cumprir os eixos apontados na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI). Dentre os principais temas estão: proteção territorial e dos recursos naturais; governança e participação indígena; prevenção e recuperação de danos ambientais; e uso sustentável de recursos naturais. De acordo com a associação, o PNGATI é o principal documento para organizar e articular ações nas Terras Indígenas.
Elaborado para atender as populações do campo, da floresta e das águas, o Programa Nacional de Saneamento Rural teve um pedido especial da população originária. Segundo eles, é necessário considerar as especificidades dos territórios e as formas de organização das etnias. Ou seja, o saneamento nos territórios indígenas precisa funcionar sem causar impactos no modo de vida tradicional das comunidades.
Proibir lavouras geneticamente modificadas próximas a territórios indígenas é a principal reivindicação da Abrasco. Isso porque esse tipo de plantio está diretamente relacionado ao aumento de agrotóxicos e herbicidas. Portanto, há maiores riscos à saúde das populações tradicionais, especialmente de gestantes e crianças. Desse modo, a proposta é pesquisar e conhecer a situação de contaminação de territórios indígenas, monitorando constantemente amostras de água, solo, ar e alimentos. Consequentemente, essa medida passa também pela articulação dos serviços de atenção primária à saúde e demarcação de zonas livres de agrotóxicos e transgênicos em terras originárias.
Cumprir, através do Ministério da Saúde, a Convenção de Minamata do Mercúrio, um dos acordos ambientais essenciais para proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos do mercúrio, que vão de malformações congênitas a danos nos sistemas nervoso e respiratório. A ação sugere que o ministério estabeleça ainda diretrizes para identificar e proteger as populações vulnerabilizadas pela contaminação de alimentos tradicionais com o uso de mercúrio. Segundo o relatório, é preciso “banir o mercúrio dos territórios indígenas”.
O documentário dirigido por Jorge Bodanzky mostra como o povo Munduruku, no Pará, vive uma luta constante contra os efeitos do garimpo do ouro em seus territórios. O uso descontrolado do metal nos rios contamina a comunidade por meio do consumo dos peixes, por exemplo. No filme, que participa de mostras e circuitos de cinema, a realidade da exploração da Amazônia pelo garimpo é comparada à história da população japonesa de Minamata. Em 1956, houve sérios problemas de saúde por causa da contaminação por mercúrio que resultou também em mortes e nascimentos de crianças com malformação congênita.
Segundo a recém-sancionada reforma do ensino médio, a educação indígena deve ser oferecida na língua materna das comunidades assim como em todo o ensino básico. O direito a uma educação específica, intercultural e comunitária está previsto nas legislações brasileiras e reforçado no decreto 6.861/2009. Além disso, o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas são obrigatórias, como prevê a Lei nº 11.645/2008.