Como quebrar os tabus da primeira menstruação com as crianças?

A média de idade para iniciar o ciclo menstrual é mais baixa do que há cinco décadas; romper tabus ajuda as crianças que menstruam a lidarem com as mudanças

Alice de Souza Publicado em 29.05.2023
Mãe e filha adolescente estão sentadas conversando. A garota está com os braços cercando a região da barriga. A imagem ilustra uma matéria sobre primeira menstruação.
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Resumo

Conversar sobre o ciclo menstrual ainda na infância pode contribuir para a aceitação da primeira menstruação e das mudanças do corpo, além de ajudar a diminuir ansiedades, medos e preconceitos.

Aos 13 anos, quando menstruou pela primeira vez, Ana Carolina Libório, 32, não queria que ninguém soubesse, tinha vergonha. “Era um tabu, eu queria esconder de todo mundo”, conta. A memória da primeira menstruação veio à tona porque sua filha mais velha, de 12 anos, passou pela mesma situação ano passado. Mas, ao contrário da mãe, a menina esperou ansiosa para viver esse momento, pois já tinha visto outras amigas da escola menstruarem. “Ela teve uma amiga que menstruou aos 10 e outra mais ou menos aos 8 anos, isso gerou um pouco de ansiedade de quando iria acontecer com ela”.

A idade média da primeira menstruação, conhecida como menarca, tem caído pouco a pouco no mundo. Nos anos de 1970, os primeiros ciclos menstruais costumavam chegar entre os 13 e os 15 anos, hoje a média costuma ficar em 12 anos. No Brasil, a queda foi de 12 anos e três meses para 11 anos e quatro meses. “Além dos fatores genéticos, que leva meninas a menstruarem geralmente na mesma idade em que a mãe ou avó, existem fatores ambientais que modulam esses fatores genéticos”, afirma Márcia Gaspar Nunes, coordenadora do Grupo Puberdade Precoce da Ginecologia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Entre eles, estão a melhora na qualidade de vida e de saúde na infância, com melhor controle da água, menos infecções (como amigdalite, otite) e melhores condições de nutrição, detalha.

O consenso na medicina é que a primeira menstruação deve vir entre os nove e os 13 anos, enquanto o início da puberdade pode ocorrer a partir dos oito anos. O esperado é que, após o início do desenvolvimento mamário, a primeira menstruação ocorra dentro de até dois anos e meio. Segundo a médica, a primeira menstruação não significa que terminou o desenvolvimento da puberdade ou que a menina está pronta para ser mãe. “Ovular com regularidade pode levar ainda alguns meses ou anos. A menstruação significa que o útero se preparou para uma concepção. Sem gravidez, o corpo se prepara de novo”.

“As crianças estão expostas a estímulos sexuais visíveis, e isso também pode acelerar a puberdade”, explica a médica.

De acordo com Nunes, a puberdade depende de uma reserva energética para acontecer. “Crianças muito magrinhas vão fazer a puberdade mais tarde e, mundialmente, vivemos um problema de excesso de peso, o que pode antecipar a primeira menstruação em até um ano antes em relação a meninas com menos peso.

De maneira geral, quando a menstruação chega antes dos oito anos é um sinal de alerta da “puberdade precoce”, que precisa ser tratada para “impedir uma menarca muito cedo, um crescimento ósseo muito rápido e a perda de estatura final da criança, além do descompasso entre o desenvolvimento físico e o psicossocial”, acrescenta Nunes. O outro extremo, chamado de “puberdade retardada”, pode levar à amenorreia primária, quando não há a primeira menstruação, por problemas ligados ao sistema nervoso central ou a questões biológicas no ovário, por exemplo. Isso pode levar adolescentes ao sofrimento de se questionarem por que não menstruam, a partir da comparação com outras da mesma faixa etária.

“Nessa mesma época, várias pessoas começaram a falar sobre ‘virar mocinha’, um jeito que eu não gosto de abordar a primeira menstruação. Então, eu fui introduzindo o tema aos pouquinhos, pela curiosidade dela, mas sempre tratando com naturalidade, para evitar o que aconteceu comigo. As dúvidas giravam em torno de questões sobre cólicas e como usar absorventes“, conta Libório. “Ela levou sua primeira menstruação numa boa. Mandou mensagem para me contar, queria contar para as amigas, como se estivesse desejando fazer parte daquele grupo que já havia menstruado. Senti que conseguiu ficar feliz”, descreve a mãe.

Como meninas lidam com a primeira menstruação?

Menstruar continua sendo algo muito difícil para duas em cada 10 participantes de uma enquete sobre saúde e dignidade menstrual, realizada com 1,7 mil adolescentes e jovens, a maioria entre 13 e 24 anos, das quais 82% menstruam e 18% não. O levantamento foi feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), em todo o Brasil. Somente uma em cada três pessoas que menstruam afirmam levar “de boa” o período, o que mostra que a filha de Libório é uma exceção.

A importância do diálogo

Mesmo sendo um dos marcos mais visíveis do processo de puberdade e da transição entre a infância e a vida adulta, pessoas que menstruam até há pouco tempo recebiam pouca informação na infância, o que fomentava desconfortos, angústias e inquietações. Inclusive, alguns mitos comuns, como proibições de praticar atividade física, usar absorvente interno ou lavar o cabelo, comprometiam a aceitação do momento e induziam a comportamentos errados.

Além de ser “uma hora oportuna para ir ao ginecologista, para exprimir dúvidas e curiosidades”, ressalta Nunes, conversar sobre a menstruação, até mesmo antes dela ocorrer, faz parte de um processo de educação capaz de mudar a relação de pessoas – e das crianças – com o próprio corpo, já que essa chegada tem sido cada vez mais precoce. O foco deve ser preparar a adolescente para a vida adulta e lembrar que há altos e baixos, sempre evitando a exposição desnecessária e cuidando para não gerar novos medos.

Há 10 anos trabalhando com educação menstrual, a criadora do método “ginecologia emocional” e autora do livro “O poder dos ciclos femininos” Kareemi entendeu que as mães são um elo forte desse processo. “Se você perguntar para as mulheres qual a memória que elas têm da menarca, 80% vai dizer que é uma memória ruim, que vem acompanhada de constrangimento, vergonha ou medo. E isso veio da cultura familiar”.

De acordo com ela, há um risco de repassar esse trauma para a frente, principalmente se for uma mulher que não gosta de menstruar ou sofre dores durante o ciclo menstrual. “Esse trabalho de conscientização familiar começa por desmistificar o sangue, mostrar que ele é limpo”, afirma.

Para Kareemi, apesar da mãe cumprir um papel importante na formação das crianças, outros cuidadores devem ser envolvidos no repasse desses conhecimentos. “Esse não é um assunto só de mulheres, quanto mais o homem entender sobre o ciclo, melhor as relações vão se dar, melhor a gente consegue desenhar o modelo de trabalho, que hoje não respeita as alterações do ciclo menstrual”, avalia. “Quanto menos eu conheço o meu corpo, mais eu recorro à indústria farmacêutica para bloquear a menstruação, mais eu tenho medo de engravidar. Não há interesse da sociedade em tornar a mulher autônoma. Informação traz poder para a mulher”.

Apesar do papel complementar da escola, na prática, Kareemi diz que ainda há muita resistência em falar sobre educação menstrual nesses espaços. O levantamento do Unicef mostra que, entre as pessoas que menstruam, 71% disseram que nunca tiveram aulas, palestras ou rodas de conversa sobre cuidados na menstruação nos centros de ensino.

O que é pobreza menstrual?

No Brasil, uma em cada quatro mulheres já faltou à aula por não poder comprar absorventes, mostrou uma pesquisa feita pela antropóloga Mirian Goldenberg com mulheres de 16 a 29 anos sobre “pobreza menstrual”. Na pesquisa do Unicef, a situação também ficou evidente: cerca das 60% pessoas que menstruam afirmaram que já deixaram de ir à escola ou a outros lugares por causa da menstruação, e 73% disseram já ter sentido constrangimento na escola ou em outro lugar público por conta da menstruação. “A política pública hoje ainda tem um problema gravíssimo de não garantir o acesso a absorventes. A urgência no Brasil é primeiro resolver a pobreza menstrual”, lembra Kareemi.

O Brasil promulgou uma lei (14.214/2021) e um decreto (11.432/2023) que institui e regulamenta, respectivamente, o Programa de Proteção e Promoção da Saúde e Dignidade Menstrual, prevendo a distribuição de absorventes e outros produtos para higiene menstrual para meninas, adolescentes, mulheres e pessoas que menstruam de baixa renda e em condição de vulnerabilidade. O Instituto Alana ajudou a elaborar um documento, em parceria com outras organizações que compõem a Coalizão pela Defesa e Promoção da Dignidade Menstrual, com recomendações para a implementação do programa.

Kareemi percebe que muitas pessoas sequer sabem quanto dura um ciclo menstrual. “Ter essa informação é um direito que nós temos desde a infância de aprender, mas que nos foi tirado há muito tempo. Com isso, a gente consegue mudar a autoestima da mulher e a demanda da saúde pública”, explica. Para ela, a menstruação não é somente um fenômeno biológico.

“O ciclo menstrual nos mostra como estão as nossas emoções ao longo de 28 dias. Nos dá direções sobre o que é preciso mudar na alimentação ou na rotina do sono para fluir melhor”, afirma.

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