Grupo pró-homeschooling orienta o castigo físico contra crianças

Associação promotora do ensino domiciliar distribui materiais que defendem o uso de castigos físicos como “ferramenta educativa”

Eduarda Ramos Publicado em 19.07.2022
Um menino de pele clara está sentado no chão, escondendo a cabeça nas mãos e joelhos.
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Resumo

Grupos conservadores que defendem a educação domiciliar compartilham materiais que orientam o uso de violência em crianças.

Em investigação exclusiva realizada pela Agência Pública e openDemocracy, uma cartilha produzida pela produtora Brasil Paralelo oferece orientações para aplicar o castigo físico nas crianças burlando a Lei Menino Bernardo, conhecida popularmente como lei da palmada. A reportagem é publicada em meio às articulações no Senado para a aprovação do projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar.

Segundo a reportagem, quem está por trás do material é Alexandre Magno Fernandes Moreira, que foi diretor jurídico da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), de 2010 a 2019, e hoje realiza consultoria jurídica para a associação, além de estar ligado a grupos conservadores que promovem a educação domiciliar nos Estados Unidos. A Aned é a principal promotora do homeschooling no Brasil, e apesar de não defender explicitamente o uso de violência física contra crianças, distribui diversos materiais voltados à educação domiciliar que normalizam ou incentivam o castigo físico.

 O que diz a lei?
A Lei Menino Bernardo proíbe castigos físicos desde 2014. O nome foi escolhido em homenagem a Bernardo Boldrini, vítima de violência doméstica, aos 11 anos de idade. 

“A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.” (Artigo 18-A da lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014)

Dentre os materiais investigados pela Agência Pública, vários trazem leituras bíblicas para defender os castigos. No livro “O que toda mãe gostaria de saber sobre a disciplina bíblica”, divulgado por uma empresa parceira da Aned, os pais são aconselhados a usar hastes de silicone para atingir seus filhos em partes não visíveis do corpo. Apesar da proibição, o livro ainda é vendido, circulado e citado nos grupos de educação em casa.

Em uma enquete realizada no grupo do Telegram de Moreira, 51% de 664 pessoas responderam que utilizam castigos físicos para punir os filhos. Frases como “Eles precisam entender que o pecado gera consequências, a vara limpa o coração” e “Eu uso somente a vara, nada de mão, chinelo e cinto, a Bíblia não nos ensina a usar essas coisas, mas sim a vara!!!” são algumas das compartilhadas por integrantes do grupo.

“O castigo físico — a palmada — naturalmente provoca dor, mas será que ela provocará sofrimento também? Não necessariamente, porque isso depende muito de como esse castigo é feito; existem maneiras e maneiras de se castigar fisicamente os filhos — e não estou defendendo o castigo físico, estou apenas trazendo uma análise jurídica —, mas existem algumas maneiras de castigar os filhos que provocarão neles uma modalidade de sofrimento.”

(Trecho do e-book “O direito das famílias”, de Alexandre Moreira, p. 64)

Mariama Correia, repórter da Agência Pública que coordenou a investigação, explica que “a pauta do homeschooling no Brasil é muito ligada a grupos conservadores cristãos e de extrema direita”. Segundo ela, “a ideia de produção da reportagem surgiu para olhar essa relação”.

Cenário do homeschooling no país

Apresentado pelo deputado Lincoln Portela (PL-MG) há 10 anos e aprovado em maio de 2022 na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1.338/2022 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Estatuto da Criança e do Adolescente para regulamentação do ensino domiciliar no país. Em junho, foi iniciado um ciclo de seis audiências públicas na Comissão de Educação para que Ministério Público, professores, representantes de entidades ligadas à educação e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), entre outros especialistas da área, debatam o projeto no Senado.

A Aned estima que 30 mil lares do país praticavam a educação domiciliar em 2021. Mariama conta que, nas entrevistas realizadas com famílias que adotam o homeschooling, várias opiniões são conflitantes, já que a maioria não condena castigos físicos de forma veemente. “Não são todas as empresas e consultores que advogam pelo homeschooling que fazem isso, nem todas as famílias, mas existem muitos materiais [que promovem castigos físicos] e isso deixa um alerta importante”, finaliza a repórter.

78% dos entrevistados na pesquisa “Educação, valores e direitos” discordam que os pais tenham o direito de tirar as crianças da escola para optar pelo ensino em casa e 91% concordam que educação sexual nas escolas ajuda crianças e adolescentes a prevenirem o abuso sexual. Vale ressaltar que o ambiente escolar é, muitas vezes, o local que denuncia abusos voltados às crianças, sejam eles físicos, morais ou sexuais.

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