Luto e esperança na Creche-Escola 11 de Dezembro

Em Santo Antônio de Jesus, na Bahia, espaço educacional se tornou símbolo de acolhimento aos órfãos após explosão em fábrica de fogos de artifício

Edvan Lessa Publicado em 10.06.2021
Foto de uma menina negra, de cabelos encaracolados, em frente à Escola-Creche 11 de Dezembro, com um caderno desenhado nas mãos
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Resumo

Símbolo de acolhimento às crianças órfãs após explosão em fábrica de fogos de na Bahia, Creche-Escola 11 de Dezembro se tornou espaço de esperança e resistência. Em meio à falta de recursos, a comunidade teme perder essa referência simbólica.

Não havia eclipse marcado para a manhã de 11 de dezembro de 1998 e a previsão tampouco indicava dia nublado em Santo Antônio de Jesus (BA). De repente, uma extensa nuvem de fumaça foi vista no céu, crianças e adultos estranharam aquele fenômeno que transformou o dia em noite.

Às 11h45, o barulho que precedeu a nuvem escura logo revelou o pavor. “Eu nunca imaginaria que aquele estrondo fosse a explosão de uma tenda [de fogos de artifício], que ceifaria a vida de 64 pessoas”, relata Manoel Missionário, liderança religiosa que ajudou a prestar socorro às vítimas. 

“Muitas crianças ficaram órfãs após perderem as suas mães [na maioria, únicas responsáveis pelos filhos] e passaram a ser criadas por suas avós”, conta ele, que hoje é líder do Movimento 11 de Dezembro, associação fundada para apoiar aqueles que perderam entes queridos na tragédia. 

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Foto: Almiro Lopes/Arquivo Correio

Os escombros da fábrica de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus (BA) após explosão, em 1998

A fábrica de fogos de artifício pertencia a Osvaldo Prazeres Bastos, conhecido como “Vardo dos Fogos”, e funcionava na Joeirana, a poucos minutos do bairro Irmã Dulce. No local, havia também meninas e meninos trabalhando clandestinamente com seus familiares. 

Somente seis pessoas sobreviveram, algumas com ferimentos e queimaduras que chegaram a 70% do corpo. As vítimas eram mulheres negras dos bairros Irmã Dulce e São Paulo, incluindo jovens mães, quatro delas gestantes, e 22 crianças e adolescentes, entre 11 e 17 anos.

Para atender aos 58 órfãos e outras crianças da região, foi construída a Creche-Escola 11 de Dezembro. A iniciativa partiu do padre Luis Canal, que reuniu doações de amigos na Itália, familiares, igreja católica e moradores de Santo Antônio de Jesus. 

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Foto: Arquivo/Creche-Escola 11 de Dezembro

Antiga turma da Creche-Escola 11 de Dezembro, construída no bairro Irmã Dulce, em março de 2001, a poucos minutos do local onde funcionava a fábrica de fogos de artifício

Sem alguém para orientar e acompanhar

“Meu tempo de estudante na creche foi muito gratificante. Os funcionários sempre demonstraram alegria, empatia e amor por todos que estudavam lá”, narra o estudante Reijan Almeida, 24. Ele perdeu mãe e tia no seu primeiro ano de vida e foi então criado pela avó.

Foi somente durante a adolescência que Reijan confrontou o luto. “O maior desafio foi quando minha avó faleceu. Não ter uma pessoa para me acompanhar e orientar foi muito difícil”, desabafa.

Para o estudante, o fato das trabalhadoras da creche também terem perdido algum familiar lhes permitiam empatia às crianças. “Elas tinham a dimensão [do ocorrido] e sabiam lidar com essa situação de forma excepcional”, observa.

Reijan foi um dos primeiros alunos da creche, inaugurada após dois anos de obras, no dia 21 de março de 2001, com 35 crianças matriculadas. “Esse é um espaço sagrado porque vem de uma história que jamais sairá da memória de Santo Antônio de Jesus”, afirma Manoel, que também foi diretor da escola até o ano passado.

Proibido brincar com fogo

Nos tempos áureos da escola, havia 100 crianças matriculadas entre 2 e 5 anos de idade. “A creche era tão boa que, quando não tinha mais a minha série, eu ainda a frequentava pela tarde”, afirma Jéssica Andrade, 24. “A saudade era tanta que, quando não pude mais frequentar por causa da idade, me tornei ajudante de sala e foi maravilhoso”, revive. Ali, ela aprendeu a reconhecer as letras, a ler e a escrever.

Ela perdeu mãe e tia muito pequena e só hoje entende o significado da relação maternal. “A minha mãe me deu a vida e não pôde me criar”, resume. Mãe de uma menina, Jéssica já conversou com a filha sobre a tragédia do 11 de dezembro. 

“Comecei a explicar o ocorrido porque ela sempre me acompanhava em reuniões e manifestações. Mostrei foto da minha mãe, falei que a vovó dela morreu queimada trabalhando e que, por isso, não poderia mexer com fogo. Ela é super esperta e entendeu tranquilamente”, reconta a auxiliar administrativa.

Jéssica considera que a relação com a matriarca da família lhe ofereceu suporte emocional. “O que mais preencheu o vazio da falta da minha mãe, foi o amor e o carinho da minha avó. Desafiador foi crescer e entender que minha mãe biológica não era quem eu chamava de mãe”, diz.

‘Um pedaço de todos nós’

“O pessoal do bairro e particularmente os familiares das vítimas da tragédia sentiam que este espaço era a sua casa e cuidaram dele com muito voluntariado”, detalha o padre Luis. Uma das voluntárias e representantes mais ativas do Movimento 11 de Dezembro é Maria Balbina, 60, a Dolores.

Ela trabalhou na cozinha e passou a auxiliar de serviços gerais. É dali que Balbina tira o seu sustento há 20 anos. “Depois de Deus, eu agradeço à creche”, relata Dolores. 

“A creche é um pedaço de todos nós. Hoje me vem lágrimas nos olhos por vê-la fechada”, lamenta.

Em 2020, o espaço interrompeu as suas atividades por conta da pandemia de covid-19. Entretanto, vem enfrentando obstáculos para retomada de seu funcionamento, que envolve também a falta de recursos financeiros.

Allyce, 5, estudou na creche até o ano passado. A casa dela fica em frente ao espaço. Hoje, matriculada numa unidade de outro bairro, mas sem aulas presenciais, ela ainda tem a Creche-Escola 11 de Dezembro como sua referência. “Eu gosto muito de lá. O dever não era difícil e as tias me ajudavam”, conta a estudante. 

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Foto: Edvan Lessa/Portal Lunetas

A pequena Allyce, 5, em frente à Creche-Escola 11 de Dezembro. No desenho, representação da escola que ela mais ama

Novo cenário

Única escola do bairro Irmã Dulce, o espaço passou também a receber crianças que não tinham relação com a explosão da tenda de fogos. Até dezembro de 2020, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação (MEC), repassava recursos para a Creche-Escola 11 de Dezembro. Desde janeiro deste ano, representantes do Movimento 11 de Dezembro tentam garantir um novo convênio. Mas só em março tiveram resposta do prefeito.

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Foto: Edvan Lessa/Portal Lunetas

Pátio da creche onde predomina o limo

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Foto: Edvan Lessa/Portal Lunetas

Sala de aula do primeiro andar segue vazia até retomada das aulas presenciais

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Foto: Edvan Lessa/Portal Lunetas

Brinquedoteca localizada no primeiro pavimento

Tanto Dolores quanto Nêga, como é conhecida a professora Marinalva Silva dos Santos, 49, não têm garantia de retornar à creche na mesma função desempenhada há duas décadas. “O convênio que tínhamos acabou e o prefeito não viu um jeito de salvar a gente”, sublinha ela, que hoje presta serviço de reforço escolar.

A partir de agora, a prefeitura passará a administrar o espaço. “Com o novo contrato, a Secretaria Municipal de Educação assumirá, integralmente, a creche com professores, manutenção do prédio, merenda, água, luz, internet, equipamentos etc.”, garante a secretária Renilda Nery.

Ainda de acordo com ela, o plano existente é a efetivação do contrato do tipo comodato, que se encontra em trâmite. Renilda afirma que 85 crianças serão atendidas, conforme Censo Escolar de 2020. Já os professores e demais trabalhadores da educação deverão ser contratados através de processo seletivo público.

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Foto: Edvan Lessa/Portal Lunetas

A professora Marinalva Silva dos Santos é uma das colaboradoras mais antigas da creche, mas não tem garantia de que retornará na função de coordenadora que vinha desempenhando

Mãe de dois filhos que também estudaram na creche, Marinalva se viu desrespeitada quando foi convidada a realizar trabalho voluntário até a situação ser decidida. “Há pessoas sem curso superior que estão trabalhando na prefeitura. Por que a gente não pode ser contratada?”, questiona.

Na comunidade, o temor é que o local de esperança e resistência perca o vínculo com a sua história. Enquanto isso, à espera do convívio com as novas crianças, as salas de aula seguem vazias, a cozinha nada serve e a brinquedoteca incomodamente organizada.

Sentença histórica

Em outubro de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil pelas mortes e violações de direitos humanos dos trabalhadores da fábrica de fogos. O caso expôs as precárias condições de trabalho às quais mulheres e crianças negras eram expostas.  

De acordo com Raphaela Lopes, advogada da Justiça Global, organização que levou o caso à justiça internacional, as indenizações feitas até então ocorreram na esfera civil e penal sob pressão do Ministério Público.

“Quando o Brasil foi de fato condenado, nenhuma ação de indenização havia sido integralmente cumprida. Foi apenas celebrado um acordo entre vítimas e responsáveis, constantemente descumprido pelos autores do crime. O pagamento da última parcela só foi realizado após vários constrangimentos [às vítimas] e cobranças do Ministério Público e da Justiça”, explica. Como não houve reparação efetiva, o Estado brasileiro deve pagar novas indenizações às famílias. 

Também está previsto projeto para inclusão socioeconômica das pessoas dos bairros Irmã Dulce e São Paulo. Entretanto, não há nenhum item na sentença sobre a Creche-Escola 11 de Dezembro. “A gente pode [agora] tentar fazer algum tipo de pressão institucional para garantir a sobrevivência da creche a longo prazo”, professa a advogada. “A preservação da creche também é uma luta nossa”, assegura.

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