É preciso escutar aqueles que vivem experiências de exclusão. ‘Queremos garantir que todas as crianças mantenham alguma relação com o mundo’, diz Ilana Katz
Ilana Katz aborda a importância de ouvir as múltiplas infâncias para criar formas de viver esta nova realidade, além de pensar o papel da escola como ‘companhia em alteridade’ e usar a tecnologia estrategicamente, principalmente na inclusão de crianças com deficiência.
Em quarentena, contamos mais de 100 dias de isolamento. Em cada um desses dias, junto às crianças, tentamos fazer com que a radicalidade do distanciamento físico não corresponda diretamente ao que entendemos por isolamento social.
Para as famílias que podem estar em casa, as demandas se sobrepuseram e o tempo de cada coisa se condensou no tempo de todas as coisas juntas. Para as famílias não privilegiadas pela condição de que todos os seus possam ficar em casa, o isolamento também se impôs, pois os espaços de circulação social estão fechados – e, assim, não são espaços.
A quarentena vem sendo prolongada como medida de sobrevivência e de cuidado coletivo em resposta aos alarmantes números de contágio, adoecimento e mortos pelo novo coronavírus. Submetidos a essa experiência, nos perguntamos sobre os cuidados que isso impõe na relação com as crianças.
Mesmo que alguns possam escapar da Covid-19, ninguém pode fugir dos efeitos que a pandemia, como corte real na experiência da vida, nos obriga. As crianças, habitantes desse mesmo planeta em pandemia, também não escapam. Entre muitos acontecimentos, as escolas fechadas realizam, cotidianamente, o corte sofrido em suas vidas e mostram que fazer quarentena significa a suspensão do nosso funcionamento habitual e do modo de viver conhecido.
Na experiência das cidades, a escola é o primeiro ambiente não familiar que a maioria das crianças frequenta. A apresentação do mundo, que ali se dá através da cultura, do compartilhamento do conhecimento produzido pela humanidade e da relação com os outros, se sustenta nessa condição. Mesmo quando as crianças crescem e seu mundo já se ampliou além do circuito casa-escola, a escola, quando cumpre sua função educativa, continua sendo lugar de encontro com a alteridade, com quem e também com tudo o que é diferente do que habitualmente se encontra e conhece.
Sob pandemia e em quarentena, crianças não vão à escola e a experiência do isolamento se impõe. Quando isso acontece, a alternância cotidiana entre os ambientes privado e público fica suspensa.
O dia, as semanas, os meses são todos vividos em casa, com as mesmas pessoas. A supressão das alternâncias, porém, não é para ninguém, e muito menos para as crianças, uma simples questão de rotatividade entre endereços. Desde o início da vida, é sob o funcionamento das alternâncias que tecemos nossa subjetividade, que orientamos nossas demandas entre dia e noite, entre sentir fome e estar saciado, entre contar com o colo da mãe naquele instante de angústia ou ter de construir outra saída. Sentindo falta de algo, a gente se põe a desejar, a pensar, a construir um mundo. (Um tanto dessa dinâmica está ilustrada nessa narrativa singela).
Nosso funcionamento cotidiano, de maneira geral, é também condicionado pela experiência da vida que acontece entre estar com e sem família, longe ou perto de determinada pessoa, dentro ou fora de casa, porque esse vai-e-vem opera como um certo regulador de nossas intensidades e de investimentos nas relações.
As perdas importantes como consequências da pandemia se somam à compressão de nossos recursos.
Escolas, famílias, especialistas, serviços de saúde e de assistência social, e também as próprias crianças, estamos todos diante do que não conhecíamos e, nesse sentido, somos convocados à invenção.
As escolas, por exemplo, precisaram reinventar seu modo de ser escola para estar com os seus alunos. Por que entendemos que isso seria importante? Por que apostamos que as escolas pudessem inventar um jeito de alcançar nossos filhos em casa?
Podemos responder a essa pergunta considerando a perspectiva do conteúdo e do conhecimento, mas também podemos considerar que a função civilizatória da escola inclui a oferta de um lugar de produção de laços com os outros – e com os outros outros. Nesse momento, seria muito importante que ela pudesse se oferecer como uma ‘companhia em alteridade’, marcando alguma diferença com o ambiente familiar, que está tão saturado.
O conteúdo escolar depende, em algum grau, da experiência compartilhada. Ele é o conhecimento e é também seu modo de ser apresentado, transmitido. É sempre, e muito especialmente na infância, uma construção amparada nos encontros. (É por isso que pensamos muito para escolher em qual escola vamos matricular nossos filhos. Com quem eles vão se encontrar lá? Qual é a posição dessa escola diante do conhecimento? Do ensino? Do mundo? Etc., etc., etc., e um montão de etceteras decisivos). É por isso que lutamos pelo investimento efetivo na educação pública e para todos, e é por isso que contestamos o homeschooling como experiência educacional.
É nesse sentido que penso que a escola se oferece como companhia possível para as crianças e, nesse momento, se dispõe a fazer algo da alternância entre o familiar e o não familiar operar.
É o que chamei de companhia em alteridade, e que tem a ver com a promoção de saúde que deve estar incluída no mandato da escola.
Entendo ainda que isso pode acontecer no encontro em tempo real com os professores, pela oferta de um “assunto”, por uma sugestão de brincadeira ou de pesquisa. O convite para conhecer o que acontece em outras realidades sociais e culturais, em tempos de pandemia, por exemplo, contribui para que possamos nos entender no mundo e com os outros. Todas essas atividades podem funcionar como companhia para crianças. Todas essas atividades cumprem funções que não percebemos quando a escola fica entendida apenas na dimensão do ensino (daqueles conteúdos organizados no planejamento feito antes da pandemia).
Negar que uma pandemia nos atravessa não pode ser tarefa de uma escola, de qualquer escola, e nem de qualquer família que habite a terra redonda. Nós, adultos, na escola e nas famílias, temos um compromisso com a infância: cada um, de seu lugar, precisa colaborar para manter aberta sua relação com o mundo, com a cultura, com os outros.
Temos, então, outra pergunta, incontornável: nesse mundo violentamente desigual que habitamos, como será possível garantir acesso à escola sem perpetuar as exclusões que nos fizeram chegar até aqui? Essa é uma questão que nos obriga a considerar a nossa relação com a tecnologia, porque temos constatado, nesse momento, que aqueles que não têm acesso à vida digital, quer seja porque não têm internet ou porque não possuem celulares e computadores disponíveis para uso, têm enfrentado barreiras importantes de participação social.
Em outra relação com esses mesmos objetos, as crianças que têm acesso garantido à internet e que possuem celulares e computadores, em quarentena e trancadas em casa com seus pais, nos fazem repensar no tempo de uso de telas e recolocam a pergunta sobre as medidas do excesso.
Considerando, portanto, que o acesso à vida digital deve ser radicalmente democratizado (e que nenhuma instituição deve pensar sua atuação distante desse compromisso), vamos aprendendo que a posse dos objetos em si não garante, sozinha, que as crianças mantenham aberta sua relação com o mundo.
É aqui que a experiência do trabalho clínico com as crianças com deficiência, e especificamente com as crianças autistas, nos ensina, e tem me ajudado a pensar esse instante da vida. São as lições da infância à clínica com crianças, e, por que não dizer, à vida com as crianças.
Crianças com deficiência apoiam parte importante de sua relação com o mundo em tecnologias assistivas, como as cadeiras de rodas ou os óculos que muitos usamos. Para construir e manter sua relação com o mundo, contam, também, de forma particular, com tecnologias digitais que são suplementares e funcionam como facilitadores de comunicação, como as pranchas de comunicação aumentativa alternativa para os que têm dificuldades com a fala, ou que podem ser instrumentos facilitadores de regulação de encontros para outros que, sendo falantes ou não, têm questões importantes com a interação social estabelecida.
A despeito dos manuais que orientam o uso de telas para crianças, em geral, esses instrumentos enlaçam a criança com o mundo, esse mundo ao qual, nós adultos, assumimos o compromisso de manter aberto para a sua participação. É o que nos ensina Mariana Rosa, mãe da Alice. É o que nos transmite Judith Newman, mãe do Gus, em ‘To Siri, with love’. É o que muitos autistas adultos, como Dona Williams e Temple Grandin, nos contam em suas biografias.
Certamente, temos muito a conversar sobre a ideia do que é uma criança e de como as compreensões sobre a infância se insinuam em orientações generalizantes, que desconsideram as diferenças na experiência, porque quando isso acontece, o saldo é negativo para todos. Todos.
Hoje, em pandemia, temos a chance de compreender mais profundamente o que essas crianças nos ensinam há muito tempo. O convite é para nos movermos, conduzidos por elas.
As crianças que usam a tela para construir sua relação com o mundo já nos fizeram entender que essa relação pode se construir de maneira mais ou menos efetiva. As telas podem funcionar como uma espécie de veículo de conteúdos preestabelecidos e sem conexão com os seus interesses, ficando desinvestidos de sentido e de afeto.
As telas podem servir como apoio suplementar para a sua subjetivação, sua compreensão de si e dos outros, seu entendimento das formas instituídas de organização social.
Sim, os objetos digitais podem incidir na vida afetiva das crianças, podem mesmo ajudá-las a falar de si, e não apenas dizer palavras. Apoiadas nesses instrumentos, crianças autistas têm podido dizer como se sentem, e o que pensam do mundo e do que lhes oferecemos – o que, nem sempre, é muito fácil de ouvir. Em artigo publicado na França*, no final de 2019, o psicanalista francês Jean-Claude Maleval apresenta as condições para que esses objetos ultrapassem a dinâmica utilitária, ou estritamente informativa e conteudista, e se prestem a essa função alargadora do mundo e da experiência da criança.
Se pudermos escutar o que essas crianças nos contam, aprendemos com elas algo que pode ajudar muitos. Afinal, é o que procuramos agora, não é? Queremos garantir, minimamente, para todas as crianças que estão em casa, e sem ir para a escola, que mantenham alguma relação com o mundo, mais ampla que a da família.
A condição fundamental para que as telas de tablets e celulares não sejam elementos que só perturbem as crianças é simples: esses objetos precisam estar a serviço da criança, e não o contrário.
É a criança quem pilota o que vai acontecer na sua relação com aplicativo do celular, não é o aplicativo que decide, sozinho e de forma genérica, o que cada criança precisa fazer. A criança deve arbitrar seu uso para construir uma relação de possibilidades com esses objetos, assim como devemos ter autonomia de gerir nossos movimentos de corpo em direção aos nossos interesses, para, a cada gesto possível, descobrir o mundo.
É o que diz Maleval, depois de compreender o que a mãe de Gus formulou no seu livro: é possível que, através desses objetos, as crianças consigam enfrentar suas dificuldades e “expandir o campo de suas afinidades, mas também adquirir mais facilidade nas trocas.” Gus preocupa-se carinhosamente com Siri, um aplicativo de seu iphone, e quer saber se ela precisa de algo, afinal, sua parceira está sempre lhe perguntando como pode ajudá-lo. Ela lhe agradece e, mais, lhe diz algo importante: “tenho poucas necessidades”. E é assim que Siri permite Gus saber que os interesses que estão em jogo ali, nesse encontro, são os do garoto. É a partir daí que a conversa vai acontecer, e é assim, amparado por esse objeto que não impõe nenhum julgamento de valor sobre os seus interesses e o acompanha, que Gus consegue ampliar sua relação com o que o cerca, deixando-se afetar pelo que acontece à sua volta, e encontrando maneiras de se relacionar com tudo isso.
Para enfrentar barreiras de acesso e derrubar muros, é fundamental escutar e acompanhar os movimentos de quem vive experiências de exclusão.
É com essas pessoas que construiremos alternativas de participação social, porque elas nos ensinam que, para haver encontro, precisam de espaço. Mas o espaço só passa a existir quando é colocado em relação com quem nele está, o que quer dizer que o espaço é sempre construído, está sempre sendo construído pelos seus usos.
Guiados por essas crianças, entendemos que, para que a escola seja espaço de aprendizagem em tempo de ensino a distância, é necessário que sua ação ‘a distância’ seja mais ampla do que a estrita atividade de ensino. Elas já nos disseram que as aprendizagens são condicionadas pelas experiências e possibilidades de afeto de cada um dos envolvidos no processo.
Para que a escola seja espaço de encontro e companhia para crianças, precisamos agir sobre as barreiras sociais e os muros de exclusão que impedem a participação social de todas e de cada uma das crianças.
Precisamos entender que é preciso que a tecnologia esteja disponível para todos e é igualmente fundamental que esses recursos sejam manejados de forma cuidadosa, para que promovam laços de uns com outros, para que alarguem mundos e que não sejam alienantes.
As crianças contam para quem quiser ouvir que o isolamento físico se torna social quando viola a experiência com os outros: os de perto, os de longe, os que entendemos que são parecidos, os que são diferentes, os que vivem de formas diversas. Pensemos na experiência da criança de “um espaço só”. O arquiteto Sou Fujimoto já chamou a atenção para a diferença entre o ninho (um sistema fechado) e a caverna (que não tem uso fixo). Talvez a tarefa, agora, seja olhar para a as telas vendo-as como cavernas, e não como ninhos.
Como vamos fazer para que as telas não se tornem muros e que ninguém seja deixado do outro lado?
* O artigo deve ser publicado nos próximos meses com tradução de Fernanda Bonilha na revista Lacuna.
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