A falta de acolhimento ainda passa entre as memórias do bancário Roberto Junior com o pai, durante a infância. “O relacionamento era difícil, porque ele não aceitava ter um filho ‘diferente’. Isso causou uma desestabilidade na família”, conta. Agora, ele pretende fazer diferente ao manifestar seu amor paterno pela filha Sofia, de 1 ano e 4 meses. “Vou acolhê-la sempre que necessário.” Apesar de ter crescido com um pai mais acolhedor, a cobrança pelo bom desempenho na escola marcou a infância do marido, o funcionário público Jadder Freitas. Então, “queremos que ela tenha um futuro feliz, mas não necessariamente afirmando que isso depende do sucesso financeiro”, diz.
Sofia talvez vá crescer numa geração que tem pais um pouco mais engajados em refletir sobre paternidade responsável e acolhedora, como Hugo, 3, e Augusto, 5, filhos do ator e criador de conteúdo digital, Tadeu França. Para ele, ser pai de dois meninos aumenta a responsabilidade de ser uma referência dentro de casa. “Quero mostrar que eles não precisam ter medo de serem vulneráveis, de reconhecer que erram e podem chorar, pois sabem que sempre terão colo, afeto e escuta ativa.”
“Que eu seja para meus filhos alguém para quem correr, e não alguém de quem correr”
Nem todo filho se sente amado pelo pai
Apesar da tendência de homens que se tornam pais “ficarem menos agressivos e mais sensíveis”, e de estar comprovado que uma presença ativa e constante contribui “para que as crianças se sintam seguras em suas experiências pelo mundo”, como revela uma pesquisa da National Academy of Sciences (Academia Americana de Ciências), nem todos os filhos afirmam se sentir amados por seus pais.
É o que diz o estudo nacional “Meninos: sonhando os homens do futuro”, que ouviu mais de 4 mil adolescentes pelo país. Realizada pelo Instituto Papo de Homem (PDH), com apoio do Pacto Global da ONU no Brasil, a pesquisa mostra que 5 em cada 10 meninos entrevistados sentem dúvidas sobre o amor paterno. A pesquisa dispõe de uma escala de até cinco pontos para que os adolescentes respondam se sentem amados por seus pais, indo de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”. “Aqueles que não marcaram que concordavam foram entendidos que manifestam dúvidas, em algum nível, sobre o amor paterno”, explica Guilherme Valadares, fundador do Instituto PDH e idealizador da pesquisa.
Além disso, o estudo analisou a percepção de ser amado dentro de recortes étnico-racial. Conforme o resultado revela, os meninos brancos são os que menos duvidam do amor de seus pais (35%), enquanto 49% dos meninos negros têm mais dúvidas sobre o assunto.
Para Tadeu França, os atravessamentos de raça e de classe social marcaram sua relação com o pai. Mesmo assim, não faltou afeto no pouco tempo juntos. “Ele foi o pai preto que sai pra trabalhar e pôr comida na mesa enquanto minha mãe cuidava da gente e da casa”, lembra. “Mas ele foi presente mesmo em sua ausência.”
Marlon Nascimento, psicólogo clínico e especialista no atendimento de homens e jovens negros e de periferia, explica na pesquisa do PDH que “é complexo querer que os homens do futuro sejam mais gentis e amorosos quando esses meninos pouco recebem, nem são estimulados a essa prática”. Segundo ele, os meninos “normalmente são criados com frieza e endurecimento”.
O desafio, portanto, está também em ensinar os meninos a partir de exemplos de uma paternidade mais sensível. Contudo, isso fica ainda mais difícil quando a mesma pesquisa revela que 6 em cada 10 meninos afirmam conviver com poucos ou nenhum homem que seja uma referência positiva de masculinidade.
“É difícil ser o que não conseguimos ver. Por isso é importante termos acolhimento com as dificuldades atuais dos pais, pois muitos deles tiveram uma criação com homens que também receberam pouco afeto e sofreram diversas violências“, diz Valadares.
“Quebrar uma corrente intergeracional de dores e colocar em seu lugar elos de amor requer tempo, esforço e dedicação”
Como desconstruir os estereótipos de paternidade
Para Jadder e Roberto, a desconstrução do estereótipo masculino que desconsidera a sensibilidade e o afeto nas relações foi um longo processo. Mas tudo culminou com a chegada de Sofia. “Em 16 anos de relacionamento, tentamos desconstruir questões de masculinidade. Porém, foi a paternidade que nos fez sentir, na pele e no coração, que não existem papéis masculinos e femininos quando o assunto são os filhos”, diz Jadder. “Nós homens somos plenamente capazes de cuidar dos nossos bebês. Também podemos dar tudo o que a criança precisa e que muitas vezes é associado à figura feminina em relações heteroafetivas.”
Já para Tadeu, “não basta falar sobre machismo e masculinidade tóxica com os filhos. É preciso viver isso todos os dias.” Então, ele conta quais as estratégias usa para desconstruir as próprias ideias. Além da leitura constante, ele sabe que isso envolve uma mudança de comportamento para criar Hugo e Augusto longe de uma masculinidade insensível e agressiva. “Preciso fazer com que aprendam pelo exemplo algumas lições. Por exemplo, como ser um adulto funcional com as tarefas de casa; como respeitar uma mulher, pela relação que tenho com a minha esposa e mãe deles; e como demonstrar as fraquezas e vulnerabilidades do jeito que mostro, sendo um homem, negro, cis, hétero.”
Cuidar da saúde mental também é um diferencial entre os pais que procuram ser mais presentes. Roberto e Jadder já faziam terapia antes da adoção de Sofia. Para eles, isso ajudou tanto no processo de adaptação quanto na descoberta dos processos sensíveis da paternidade. “A vivência e a terapia, caminhando juntas, fazem com que a gente tenha muito mais empatia por uma filha. Tentamos entender que bebês enxergam o mundo de forma completamente diferente da nossa.”
“O amor que temos por nossa filha nos ensina cada vez mais a vencer os desafios da paternidade”
Guilherme Valadares aposta em duas ações centrais para reverter a falta de acolhimento. A primeira é criar vínculos imediatos com os filhos desde o nascimento. Isso pode ser facilitado, segundo ele, a partir de políticas públicas, como a licença-paternidade estendida. Outra ação é a interação entre as redes de apoio. “Ter pequenos grupos para trocas regulares de experiência no qual os pais se ajudem a lidar com suas dúvidas, dores, traumas e dificuldades é essencial”, defende. Nesse processo, é preciso considerar os marcadores sociais de raça e classe. “Estar entre ‘os seus’ pode se tornar um espaço de compreensão mútua e de fortalecimento.”
O que fazer com os resultados?
A pesquisa do PDH pretende ir além da constatação da falta de referências de paternidade. Nesse sentido, os resultados vão guiar ações do programa “Meninos do futuro”, que conta com educadores, pais, mães e responsáveis pelos meninos. “O programa possui um currículo específico que está sendo implementado, de forma piloto, em escolas, espaços esportivos e ao ar livre, usando a natureza como ambiente de aprendizagem“, afirma Valadares. A partir da escuta de mães, pais, meninos e meninas de 11 a 17 anos, o programa pretende trabalhar temas como equilíbrio emocional, responsabilidade e cuidado, senso de comunidade e visão de futuro com os adolescentes. O objetivo é, posteriormente, levar as ações para escolas, clubes de futebol, espaços esportivos e comunidades em todo o país.