Trilhas urbanas, um jogo de tabuleiro para repensar a cidade

Juntos, crianças e adultos podem mergulhar no universo lúdico para pensar sobre temas complexos da sociedade

Beatriz Martinez Publicado em 19.12.2023
imagem mostra uma parte do jogo de tabuleiro do jogo trilhas urbanas e mais quatro cartas do jogo.
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Resumo

O jogo de tabuleiro "Trilhas Urbanas" foi criado para tratar de urbanismo e cidadania de forma leve e divertida. Mas a criadora Beatriz Martinez percebeu que ele ia além, ajudando crianças a explorarem temas complexos e se tornarem protagonistas de seus aprendizados.

Dados lançados. Os ícones mostram: nuvem, multidão, ouvido, cachorro, quebrar. Jogávamos “Trilhas Urbanas”, um jogo de tabuleiro pensado para explorar o urbanismo e a cidade de forma leve e divertida. E ali estava a vez de João, 12 anos, criar um desafio. Com as cinco imagens, ele narrou a seguinte história:

“Estava na 25 de março e tinha uma multidão lá! De repente, escutei um trovão: ia começar a chover. Ouvi o latido de um cachorro que estava perto de mim. A multidão se assustou com o trovão e todos resolveram, ao mesmo tempo, correr até o metrô. Mas eles estavam tão preocupados em se salvar da chuva, que não viram o cachorrinho e acabaram quebrando sua patinha!”

Enquanto esperava a elaboração da história do João, aproveitei para esboçar mentalmente minha possível narrativa conectando as mesmas imagens:

“Uma enchente fez o rio transbordar e separou um cachorrinho da sua família que estava na outra margem! Desesperada para salvá-lo, uma multidão começou a chamar por ele. Mas a ponte estava quebrada e não tinha por onde o cachorrinho passar.”

Tão longe, tão perto

As semelhanças e diferenças entre nossas histórias me intrigaram. Enquanto João narrou a multidão como indiferente ao cachorro e buscando apenas se proteger, eu a interpretei como preocupada em salvar o animal, mas sofrendo as consequências das enchentes e da falta de manutenção da cidade.

Outra criança, moradora de outros territórios, criaria uma terceira narrativa. Isso porque, ainda que lendo a mesma história, ou interpretando os mesmos símbolos, cada um de nós incrementa à narrativa a sua forma de pensar, suas experiências e angústias.

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Divulgação

No jogo "Trilhas Urbanas", crianças partem da narrativa da caminhada para a escola. Nesse trajeto, ela repensa os temas gerais presentes na cidade.

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Os jogadores montam o tabuleiro conforme a paisagem por onde querem passar. Então, sorteam 3 características da cidade que devem ser melhoradas. Estes são desafios coletivos. Todos devem colaborar para resolvê-los de forma sustentável. Cada jogador recebe 5 cartas de solução de problemas que devem ser mantidas em segredo.

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O jogo conta com cinco dados iconográficos opcionais e dois dados iconográficos obrigatórios.

Abordar temas complexos de forma lúdica

A capacidade humana de interpretar simbolicamente imagens nos permite atribuir significado a qualquer aleatoriedade. Seja a partir de manchas no vidro da janela ou constelações estelares. Quando criança, eu era especialista em admirar e dar sentido às nuvens que corriam no céu. De animais a heróis, minha mente criava histórias que eram belamente ilustradas pelas luzes e sombras que contornavam as nuvens. Mss, hoje, quando olho para cima, vejo muito pouco, quase nada. A mente cala a minha criatividade e grita imperativa: “Beatriz, é só água evaporada!”

Chegamos ao mundo sensíveis ao novo e deslumbrados com o inesperado, mas vamos perdendo essa sensibilidade e esse deslumbre.

Foi a busca por retomar essa sensibilidade que me motivou a pesquisar formas lúdicas de abordar temas complexos. Sobretudo temas sobre urbanismo e construção de cidades. O desafio é manter, mesmo com a tradução de termos técnicos, a profundidade de ideias e de conceitos.

Criar o jogo de tabuleiro “Trilhas Urbanas” foi uma dessas experiências. Tínhamos como premissa apoiar educadores e famílias a abordar o universo do urbanismo e da cidadania de forma lúdica, leve e divertida.

Durante a pesquisa para o desenvolvimento do jogo, a relação entre o lúdico e o educativo foi um grande desafio, exigindo atenção e cautela. Assim, a intenção pedagógica não poderia limitar a ludicidade, impondo a ela seus ritmos e objetivos. Por outro lado, a ludicidade não poderia se distanciar demais da realidade, tornando nebulosos os contornos do aprendizado.

Percebi que o termo “jogo educativo” trazia em si um tom pejorativo, remetendo a um jogo chato que, assim como um xarope sabor morango, é apenas uma forma de mascarar a educação conteudista com elementos teoricamente lúdicos. Assim, na busca por equilíbrio, descobri que o lúdico e o educativo são mais cúmplices do que antagonistas.

A conexão entre o lúdico e o educativo

Brincar exige desejo e disponibilidade para transportar-se – sem sair do lugar – ao universo lúdico. Ali, as regras não limitam a brincadeira, mas a delineiam. O brincar nos exige ação. Por isso, quando assistimos a um desenho na televisão, não estamos brincando. Quando assistimos a um jogo de futebol, não estamos jogando. Quando uma criança brinca, entre aspas, com um carrinho que gira, solta luz, faz um som alto, não existe quase nada da criança naquela brincadeira. O que existe ali é apenas a criança assistindo a algo que lhe prende atenção. Não se trata de um objeto para brincar, mas para entreter.

Brincar exige da gente protagonismo

Podemos dizer a mesma coisa sobre o educar. O radical deste verbo – guiar para fora – nos indica que o conhecimento extraído dos educandos e de sua leitura de mundo é mais coerente do que aquele conhecimento depositado a qualquer custo em suas mentes. Dessa forma, nossa leitura do mundo guia o aprendizado, mesmo que inconscientemente.

Ainda assim, a educação bancária, como cunhou Paulo Freire, vigora predominantemente. Crianças e adolescentes são subordinados à passividade e à ordem em salas de aulas. A inércia tornou-se, aos poucos, o modo de operar de grande parte da juventude. Ao extrapolar o ambiente escolar, a incluímos em nossas expressões culturais, ideais e de entretenimento.

A conexão entre a educação e o brincar também vai perdendo força no decorrer dos anos escolares. Durante as testagens do “Trilhas Urbanas”, por exemplo, percebemos que as crianças acima dos sete anos tinham mais dificuldade em criar histórias do que as mais novas. Coincidência ou não, esta também é a idade que marca uma importante mudança no ensino formal, que deixa de privilegiar o brincar e começa a testar a criança em avaliações semestrais. Nesse período, a criança aprende a ler uma palavra e atribui à ela a única fonte de obtenção de conhecimento, inaugurando a noção do certo ou errado na aprendizagem. É, aliás, o medo de contar uma história “errada” que trava muitos jogadores na primeira rodada de “Trilhas Urbanas”.

O jogo de tabuleiro em grupo e a sociedade

Em dez minutos jogando “Trilhas Urbanas”, jogadores de todas as idades visitam a sua essência lúdica e se entregam à magia da experiência. Então, ali, todas as histórias são, novamente, possíveis.

Crianças e adultos, ao mergulharem no jogo de tabuleiro e se permitirem brincar sem medo, encontram – e reencontram – sua capacidade de atribuir significados ao mundo

Ao permitir que o jogador tenha seu tempo de falar, de criar, de debater e de escutar, o “Trilhas Urbanas” instiga educadores a incluir a leitura de mundo dos alunos na sala de aula. Assim como convida famílias a escutar as percepções das crianças e a aprender com elas.

No microcosmos de um jogo em grupo, compreendemos melhor nossa sociedade e suas manifestações, observamos dinâmicas competitivas e cooperativas. Além disso, exercitamos nossa capacidade de escutar e de nos despir de objetivos individuais em prol de um bem comum. É um espelho de como agimos em comunidade, na cidade e até mesmo em escala global.

A história do João, que inaugurou nosso texto, por exemplo, traz questões relativas à indiferença das multidões e ao medo da chuva. Temáticas que transbordam o jogo de tabuleiro e podem levar a discussões, conversas e estudos. É uma oportunidade de abrir espaço para que as crianças sejam protagonistas de seu aprendizado.

E você, já reencontrou seu lugar lúdico?

Não é tarefa simples: é preciso disposição para se conectar com o ser brincante que habita em todos nós. Porém, uma vez acesa, sua essência lúdica te presenteará com uma visão mais integral da vida. Ela também te permitirá experienciar a curiosidade e o deslumbramento, típicos de quem acabou de chegar ao mundo. Nós, que já estamos aqui há algum tempo, saberemos que o reencontro com a ludicidade se aproxima, quando, ao olhar para o céu, pudermos saudar animais e heróis de outrora.

* O jogo de tabuleiro “Trilhas Urbanas” foi criado por Beatriz Martinez e desenvolvido em conjunto com a Pistache Editorial. Vencedor do 5o Prêmio Design Tomie Ohtake, o jogo foi lançado dia 10 de dezembro no Sesc Paulista.

** Beatriz Martinez é urbanista, arquiteta e game designer. É cofundadora e está diretora de comunicação no CoCriança, uma organização da sociedade civil que se dedica a cocriar espaços com e para as infâncias moradoras de territórios em situação de vulnerabilidade.

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