Especialistas avaliam como o Brasil chegou a tantos casos de desnutrição e quais os caminhos para mudar esse cenário
Com número de internações por desnutrição voltando ao patamar de 10 anos atrás e crescimento da insegurança alimentar entre as crianças, o Lunetas ouviu especialistas para entender o cenário e as possíveis soluções.
Três refeições por dia são indispensáveis para garantir o acesso da criança aos nutrientes necessários para crescer saudável e bem alimentada. Contudo, tem crescido os casos de desnutrição na faixa etária entre 0 e 19 anos, como indica um levantamento elaborado pelo Instituto Desiderata. Em 2018, o índice era de 4,8% e passou a 5,3% em 2021. Dados do Ministério de Saúde mostram que o número de internações por desnutrição no país voltou ao patamar de 10 anos atrás. Entre 2012 e 2022, todos os dias, em média, 10 crianças menores de 5 anos são internadas por desnutrição no Brasil. Foram 4.315 internações só em 2022.
Uma criança chega a um nível de desnutrição quando falta acesso a alimentos em quantidade e qualidade adequadas, ou seja, quando há uma baixa de vitaminas e minerais essenciais para o bom funcionamento do corpo. “A desnutrição pode ser caracterizada por medidas de peso e estatura, diferenciados de acordo com a idade e o sexo”, esclarece Gabriela Bonente, pediatra do Hospital Albert Einstein. Os casos de desnutrição se dividem em dois grupos: os primários, quando a criança não recebe todos os nutrientes que precisa para se desenvolver; e secundários, quando fatores externos – como doenças (câncer, alergias, disfunções ou intolerância alimentar, entre outras) – impedem a absorção correta de nutrientes.
Embora prevaleça em populações com baixo acesso a alimentos, a desnutrição também pode estar associada à alimentação composta por fast-food, industrializados e baixo consumo de alimentos ricos em vitaminas, como frutas, legumes, vegetais e proteínas, por exemplo”, explica a nutricionista Luciana Carvalho.
“Garantir que todos, especialmente crianças, tenham acesso à alimentação básica é fundamental para o combate à desnutrição”, afirma Carvalho.
Como a desnutrição afeta a imunidade das crianças, elas ficam mais propensas a infecções, e têm mais dificuldade de ganhar peso e crescer; na primeira infância, aumentam os riscos de mortalidade. Crianças maiores podem ter importantes funções comprometidas, como andar e falar, além de atrasos no desenvolvimento cognitivo, o que leva a um menor rendimento escolar, explica Carvalho. “A desnutrição interfere no desenvolvimento neuropsicomotor do indivíduo impactando até a vida adulta, quando apresentam mais chances de desenvolver doenças crônicas, como diabetes e pressão alta”, afirma Bonente. A pediatra lembra ainda que a criança pode apresentar ao longo da vida diversos distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia.
Nos casos mais leves de desnutrição, há o acompanhamento e tratamento com pediatra e nutricionista, especialmente porque, além da possível suplementação de vitaminas, é importante avaliar e modificar a alimentação da criança e da família, de modo geral. “Nos casos mais agressivos, a internação é a melhor opção, pois acelera o tratamento com a reintrodução de alimentos para a reposição de nutrientes em déficit, o que deve ser feito de forma lenta e gradual”, explica Carvalho. “Devemos adaptar um cardápio diferenciado para cada situação e realizar a suplementação de micro e macronutrientes, quando necessária”, acrescenta Bonente.
Quando se trata de desnutrição existe um fator determinante a se levar em conta: a desigualdade. Embora a desnutrição tenha atingido várias camadas da população, entre crianças negras e indígenas ela é mais severa. Um levantamento feito em 2019 pelo Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) mostrou que o grau de insegurança alimentar nos domicílios era de 58,3% para crianças pretas, 65,7% para as crianças amarelas e 40% para as brancas. Um estudo da Rede Nacional de Pesquisadores em Soberania e Segurança Alimentar no Brasil (RBPSSAN) apontou ainda que, em 2020, 66,1% das famílias com algum grau de insegurança alimentar eram chefiadas por uma pessoa negra. Entre as crianças indígenas, a desnutrição crônica estava em 28,6%, em 2018, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Uma das etnias mais atingidas, a Yanomami, viu a desnutrição aumentar 331% nos últimos quatro anos, em comparação com anos anteriores, segundo dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação pela BBC Brasil. Nesse período, 177 indígenas morreram de desnutrição, aponta o Ministério da Saúde. Entre as pessoas mais afetadas estão os idosos e as crianças. “Com os indígenas vimos situações ainda mais críticas devido ao isolamento social e à dificuldade de acesso aos serviços de saúde”, emenda Bonente. Além da observação sobre como políticas públicas podem negligenciar alguns grupos por terem mais dificuldade em acessar “alimentos nutricionalmente adequados”, as condições climáticas podem prejudicar a produção local, lembra.
A pediatra ressalta ainda que crianças neurodivergentes, que não se alimentam por boca espontaneamente, são um outro grupo de risco para desnutrição. “São pacientes geralmente alimentados por sonda ou gastrostomia, alguns deles com pouca mobilidade ou acamados, e que apresentam metabolismo diferente de outras crianças. Não é raro observarmos crianças neurodivergentes desnutridas por falta de orientação dos pais e acompanhamento adequado de nutricionistas e pediatras”, afirma.
Existe ainda uma diferença regional importante: o Nordeste lidera os casos de internação por desnutrição. Enquanto na região Centro Oeste – local onde há o menor índice – a porcentagem é de 10%, no Nordeste esse número chega a 36%. Isso ocorre devido à dificuldade de acesso aos alimentos pela recorrente alta nos preços. Além disso, as questões de desigualdade social e racismo são fatores importantes em relação ao acesso e à qualidade de oportunidades e bens, por exemplo. A diminuição de empregos formais com salários compatíveis é outro fator que ajuda a explicar a atual realidade”, detalha Carvalho. “Com certeza a maior causa de desnutrição está relacionada à alta dos preços dos alimentos; especialmente aqueles que compõem a cesta básica, bem como a queda nos empregos, dos salários e o aumento da informalidade de algumas famílias”.
Bonente lembra ainda que a pandemia foi um fator agravante. “Houve aumento do número de desempregados, o isolamento social e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde. E, provavelmente, menos acesso e orientação aos alimentos nutricionalmente adequados. Além disso, houve aumento do número de crianças obesas pela ingestão de alimentos altamente calóricos e pouco nutritivos e sedentarismo promovido pelo isolamento social”, diz a pediatra.
Quando se fala de combate à desnutrição, é imperativa a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o aleitamento materno exclusivo até os seis meses e de modo complementar até os dois anos ou mais. “Ao incentivar o aleitamento materno exclusivo, garantimos o suprimento nutricional adequado nos primeiros meses de vida. Até um ano, mesmo com outros alimentos, o leite continua sendo o principal alimento da criança. E, após isso, é fonte de micro e macronutrientes, além de benefícios como transferência de anticorpos, regulação mãe-filhos, fonte de vitaminas etc.”, explica Bonente.
Além de também pontuar o impacto do desmame precoce, Carvalho lembra a importância da introdução alimentar. “Oferecer uma qualidade e variedade de alimentos é essencial. Além de ensinar o bebê a ter um paladar diversificado, também auxilia no aumento da imunidade por conta da gama de nutrientes que provém dos alimentos. Para que a alimentação da criança seja variada, a família também precisa cumprir o seu papel: comer os mesmos alimentos”, diz.
Os especialistas citam alguns caminhos para reduzir a desnutrição:
“No ambiente escolar, as crianças aprendem sobre alimentação saudável e desenvolvem alguns de seus hábitos alimentares. Já pensando na população com dificuldade de acesso aos alimentos, a escola fornece o lanche ou almoço, que, muitas vezes, acabam sendo a única refeição do dia”, complementa a nutricionista.
Embora o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) tenha como objetivo mostrar tendências das condições de nutrição e alimentação da população para avaliar e planejar políticas públicas, programas e intervenções baseadas na situação de crianças e adolescentes em cada parte do país, pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde e da Universidade de São Paulo (USP) indicaram que sua cobertura não é homogênea. Segundo um dos autores do estudo, Matias Mrejen, além de uma defasagem de dados entre crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, o Sisvan privilegia a região Norte e Nordeste e crianças de menor idade, deixando municípios de maior Produto Interno Bruto (PIB) e cobertura de planos de saúde privados fora da amostra nacional.
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Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), é erradicar a fome até 2030. O plano é que todas as pessoas, em particular pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças e idosos, acessem alimentos seguros, culturalmente adequados, saudáveis e suficientes para o ano. Neste ano, o governo federal retomou o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que visa garantir o direito das crianças e adolescentes a uma alimentação adequada e saudável.