Os desafios sociais de como é ser criança nessas duas comunidades tão perto do MAM e da Baía de Todos-os-Santos
Crianças e adultos do Solar do Unhão e da Gamboa de Baixo evidenciam os contrastes e desafios de pertencer a essas comunidades, mas não acessar experiências reservadas ao turismo.
Era dia de jazz à beira-mar no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), em Salvador (BA), e os moradores da comunidade do Solar do Unhão, vizinhos ao monumento, se organizavam para uma noite de ritmo, improviso, liberdade – e trabalho. Na Gamboa de Baixo, o vaivém da maré trazia o freguês e timidamente rompia a inércia daquele conjunto de imóveis apinhados e semicoloridos.
Essas comunidades, localizadas numa região com vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos, têm ganhado fama por receber artistas como Ivete Sangalo e Anitta e pela qualidade da gastronomia fora da rota turística tradicional, mas ainda enfrentam problemas básicos de segurança pública e infraestrutura. Para a cientista social Letícia Florentino, a falta de apoio do poder público pode ser vista como uma ação deliberada para “dificultar a vida do povo porque aí vai ficando insustentável e eles vão embora. É aí que eles se deparam com uma Delinha pela frente”.
Delinha é Valdelia Machado da Silva, 44, uma das lideranças do Solar do Unhão, responsável por oferecer reforço escolar, há 25 anos, na sede da associação de moradores, e por organizar o estacionamento para os visitantes do RéRestaurante da amiga Dona Suzana e outras atrações turísticas ao redor. Há dois anos, a série “Street Food”, da Netflix, contou a história do restaurante. Para Delinha, “com a repercussão da série, a gente consegue realmente hoje sobreviver do mar e do turismo. Para os moradores mais antigos, como eu, nascida e criada aqui, vejo de forma positiva essa visibilidade que estamos ganhando agora”, complementa.
Até hoje, muitas das intervenções realizadas ao longo dos anos na comunidade do Solar do Unhão vêm dos esforços dos próprios moradores, como enumera Delinha: “A gente começou a se juntar para melhorar as coisas na comunidade. Aqui não tinha esgoto, havia luz em poucas moradias. As casas eram todas de madeira e não tinha coleta de lixo”.
Enquanto se preparava para receber a clientela, o filho da estrela local, Márcio Sapucaia, 46, interagia com outra antiga moradora, dona Edinalva Mendes da Silva, 65, que saía dali com um punhado de temperos. “Aqui todo mundo desce na comunidade e as portas estão todas abertas. Se você olhar, as casas estão sem grade; você tem criança brincando, tem amor”, ressalta Mendes da Silva.
Eles se conhecem desde pequenos e ambos têm boas recordações de como era ser criança ali, numa relação de respeito com as pessoas idosas. “Naquela época, o caminho até a comunidade era cheio de barro e a gente ia pegar água lá no chafariz do MAM”, lembra Sapucaia. “A gente ia pegando de balde em balde pra trazer pra cá pra baixo. Os mais novos enchiam os tonéis dos mais velhos. A gente tinha essa consciência desde bem novo”, reflete Silva sobre a época sem água encanada.
Florentino considera que o território do Solar é marcado pela memória das gerações de famílias que nasceram e continuam na comunidade. Na visão dela, a permanência dos moradores confere uma relação muito particular entre as pessoas e o território. Além disso, há uma forte interlocução com movimentos sociais e culturais, a exemplo do Museu de Street Art de Salvador (MUSAS) e do Coletivo de Entidades Negras (CEN), organizações soteropolitanas sem fins lucrativos apoiadoras das comunidades.
Júnior e Sara têm 10 anos e são amigos de Tainá, 8. Os três vivem no Solar do Unhão e aproveitavam uma manhã despretensiosa de sábado até que foram chamados por Delinha, professora de ao menos dois deles, para conversar sobre a comunidade.
“Se um amiguinho de vocês viesse aqui, o que mostrariam?”, indaga às crianças. “Mostraria a praia e como aqui é um lugar bom”, garante Júnior, sem desgrudar do jogo no celular.
“Um lugar bom de turista vir, né?”, retruca Tainá. “Porque ninguém dá valor. Ó pra isso: a rua sempre fica suja”, lamenta a estudante. A desenvoltura ao falar dos problemas do lugar onde mora faz com que Tainá seja vista com uma possível liderança no futuro.
Ao pedir a palavra, Sara compartilha suas opiniões sobre os dois mundos que são o Solar e a Gamboa de Baixo: “eu prefiro brincar aqui porque é mais tranquilo. Aqui a gente conhece as ruas, tem mais turistas e tem o museu”, coloca.
Júnior nem imagina morar num lugar distante do mar. “Aqui a gente brinca de pega-pega, de ficar pegando peixinho pequeno e depois devolver”, afirma.
Tainá observa que muitos turistas vão até o Solar procurando por casas para morar. “A gente não valoriza o que é nosso. As pessoas vão à praia, compram coisas, tipo coco, e não levam a sua sacola para botar o lixo, deixando a praia toda suja. Isso é meio errado. Bagunça o mar todo”, discute a estudante.
Para Sara, as crianças também têm responsabilidade na limpeza da praia. Ela e a mãe tornaram-se exemplos ao participarem de mobilizações para retirar lixo da praia. “Um dia desses eu também vi nadadores tirarem um monte de lixo do mar”, relembra.
Enquanto isso, o pequeno Douglas, 6, outro aluno de Delinha, sonha com mais opções de lazer para ele e os amigos, na entrada do Solar, a rua menos estreita da comunidade. “A gente até brinca, mas é um espaço pequeno. Eu gostaria que tivesse um parquinho pra todo mundo brincar lá”, enfatiza.
Segundo Silva, as construções nas áreas de praia, como na Praia das Pedras, por exemplo, são um fator limitador da liberdade e do espaço para brincar. “Tinha mais areia no passado. Depois da construção da Baía Marina, vieram muitas pedras. Não sei se teve algum impacto, mas antigamente as crianças podiam brincar, jogar bola ali. Hoje não é mais possível“, conta.
Apesar de viverem ao lado de um centro cultural bastante requisitado, nem sempre as crianças vivenciam as inúmeras atividades do museu. “Ao mesmo tempo que chamam a gente para entrar, eles fecham a porta”, reclama Silva.
“O JAM, sim, abriu as portas”, pondera. A JAM no MAM, projeto da Huol Criações, acontece na área externa do museu com performances de música instrumental com ritmos da cultura popular da Bahia. “São pessoas que alugam o espaço, uma vez por mês, e tocam jazz. A gente tem uma cota de moradores para entrar de graça”, acrescenta a moradora.
Em 2021, a relação entre a comunidade e o MAM Salvador virou notícia local após a população acusar o museu de colocar arame farpado para impedir a entrada dos moradores e não reformar a escada de acesso à praia. Em resposta, a direção do museu informou, por meio de sua assessoria, ter feito um acordo para facilitar o transporte, venda de itens e armazenamento de materiais na Prainha do MAM, local bastante frequentado por turistas. Após reuniões com a associação de moradores das comunidades do Solar e da Gamboa, uma lista deve ser enviada ao museu para dar acesso às pessoas e crianças ao cinema do MAM.
Sem acesso aos equipamentos culturais, restam às crianças o mar e as ruas. Contudo, um episódio ocorrido no ano passado, em que o irmão de Tainá foi atropelado por um homem com sinais de embriaguez, trouxe insegurança à comunidade. Para Florentino e Silva, situações como essa afetam as crianças, deixando-as mais restritas às suas casas quando na verdade deveriam ter liberdade para brincar.
Outras três pessoas morreram após uma ação da Polícia Militar da Bahia (PM-BA), em março de 2022; as vítimas foram dois jovens e uma mulher. “Esse fato simboliza uma série de violências que a comunidade vem sofrendo, em especial os meninos pretos”, esclarece Florentino. Ela e o companheiro Marcos, outra liderança local, foram ameaçados por denunciar a truculência policial e precisaram, durante um tempo, deixar o Solar para se manterem em segurança.
Silva é a representante em Salvador de um projeto de enfrentamento ao racismo na primeira infância, que busca “desconstruir essa narrativa universalista sobre infância e olhar para os territórios e para as crianças negras, quilombolas, indígenas e de terreiro”, em parceria com Florentino, pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra. Por meio do reforço escolar e de um trabalho de alfabetização, ela partilha as experiências e a realidade das crianças do Solar e traz tranquilidade a pais e cuidadores nesta região exposta à violência. “O fato do reforço ser um espaço seguro e com alguém de confiança é importante para muitas mães”, aponta Florentino.
Florentino comenta ainda outro tipo de violência a que a comunidade local está sujeita: a especulação imobiliária. “Essa é uma favela, uma periferia, de frente para a Baía de Todos-os-Santos. Há um grande interesse por parte da especulação imobiliária de tirar o povo daqui, jogar em qualquer lugar para depois construir mais prédios para vender essa vista pro mar por milhões”, sentencia Florentino.
Silva explica que no passado havia três comunidades – Gamboa de Baixo, Solar do Unhão e a terceira era conhecida como Água Suja – mas os moradores foram removidos para outros bairros de Salvador. Essas ações deliberadas refletem um passado ainda mais distante, quando a colônia de pescadores testemunhava embarcações que, ao invés de peixes, eram o canal de desembarque e leilão de escravos. Muitos anos depois, o local ainda revela as consequências do tráfico transatlântico de escravos, mas que tem agora comunidades fortalecidas diante do que pode acontecer a elas. Hoje, pertencer ao território do Solar do Unhão e da Gamboa aponta para a resolução coletiva de problemas como a insegurança, a ausência de infraestrutura para a comunidade e a convivência com os turistas.
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