Cena de novela "As aventuras de Poliana" do SBT sugere que racismo "está na cabeça" dos negros
Um diálogo entre duas personagens da novela "As aventuras de Poliana" gerou incômodo entre os espectadores, que acusaram a cena de conter teor racista. Confira a reflexão da colunista Luciana Bento.
Com a resposta para essa pergunta, a novela do SBT “As aventuras de Poliana” gerou uma enxurrada de reações de revolta e repulsa na internet. O diálogo, entre duas personagens negras, sendo uma delas criança, no qual a adulta diz para a menina que a culpa pelo preconceito está na cabeça das próprias pessoas negras.
Culpa é a responsabilidade pelo dano ou mal causado a outra pessoa.
Dizer que a culpa pelo preconceito é dos próprios negros é dizer que nós, pessoas negras que somos alvo do racismo, criamos tudo isso para que os outros, os racistas, nos tratem com discriminação. Essa ideia é tão confusa e contraditória que tenho até dificuldade em visualizar! Então nós, negros, somos os responsáveis por toda a discriminação racial que existe mesmo sabendo que essa discriminação afeta e prejudica nossas vidas?
Falar em culpa é falar em responsabilidade. Uma palavra grande para um conceito tão importante e necessário em nossas vidas. O dicionário nos diz que responsabilidade é a obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros. Então, quando uma pessoa fala que a culpa do preconceito está na própria cabeça dos negros que se enxergam de forma diferente, ela está dizendo que nós, negros, devemos responder pelas ações das pessoas racistas.
Mas a responsabilidade de quem é racista, onde fica?
A novela “As aventuras de Poliana” é escrita por roteiristas brancos para o público infantil e se propõe abordar e debater temas sociais que fazem parte da realidade das crianças, como o bullying e o racismo, por exemplo, sem a intenção de polemizar. Mas uma novela infantil alcança milhares de crianças e esses são temas muito complexos e delicados. Criar uma obra de ficção para crianças é uma responsabilidade enorme. Cada palavra dita tem um impacto na vida dessas crianças, cada cena é percebida como uma reprodução da realidade e não apenas como ficção.
Atores mirins e seus personagens se confundem na mente das crianças é realmente difícil para elas separar ficção de realidade.
Se uma coordenadora pedagógica, figura de autoridade e educadora, fala para uma criança que a culpa do preconceito é dela, discordando da percepção da própria criança de que a culpa é de quem pratica o ato racista, existe uma forte tendência que essa criança, e todas as outras que se identificam com ela e que estão assistindo a novela, se percebam como as produtoras do racismo e se culpabilizem pela discriminação que sofrem.
Com um agravante da personagem ser interpretada uma mulher negra, que faz com que o discurso abale e influencie ainda mais a autoestima e autoimagem da criança negra. Esse é um recurso muito perverso de reversão da responsabilidade e manutenção da estrutura de poder. Se o racista não tem culpa, ele é a verdadeira vítima do racismo?
Em nota ao jornal O Estado de S. Paulo, o SBT disse que a novela tem o papel de debater questões sociais como o enfrentamento ao racismo e também que é uma obra de ficção para “entreter e não polemizar”.
Quando falamos com crianças sobre preconceito há um limite muito bem definido entre fortalecer a sua autoestima e insinuar que ela tem o potencial de causar todo o mal que ela vive. A realidade nos mostra que não dá para simplesmente seguir o jogo do contente e fingir que o racismo é uma invenção da cabeça das pessoas negras com problemas de autoestima.
Racismo não é paranoia dos negros, é uma realidade.
E é preciso muito cuidado para não transferir para as vítimas a culpa pelos atos de seus algozes. Este cuidado deve ser observado por todos, pais, educadores e até mesmo roteiristas e escritores de novelas que dialogam com uma diversidade de telespectadores.
Quanto à pergunta do título e da novela, como mãe, mulher negra e educadora, creio a menina Kessya está certa: os maiores culpados pelo preconceito são os racistas.
Comunicar erro
No capítulo desta quarta-feira, 8, a aluna Kessia, interpretada pela atriz Duda Pimenta, argumenta com a coordenadora Helô, interpretada pela atriz Eliana de Souza que ela não seria acusada de vandalismo se não fosse negra. “Sabe qual é um dos maiores culpados pelo preconceito?”, pergunta a educadora. “Os racistas”, responde prontamente Késsya. “Não. A nossa cabeça. E para que os outros parem de ver a nós negros como diferentes, nós precisamos parar de nos ver como diferentes. Como piores ou melhores do que determinada raça”, diz Helô. Veja aqui a cena.