Como a água consumida e o esgoto não tratado comprometem a cidadania de crianças brasileiras e trazem prejuízos à sua saúde
O Brasil enfrenta problemas graves de acesso ao abastecimento de água potável e ao esgotamento sanitário, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste. As crianças são as mais prejudicadas, pois esse cenário resulta em consequências diretas sobre a sua saúde.
Coberta de lama, a casa de Maria Justina Carneiro, 42, tinha acabado de sofrer mais um alagamento quando a reportagem do Lunetas a entrevistou. Mãe de Denise, 15, Idailson, 13, Karla Sofia, 9, Raíssa, 6, e João Miguel, 3, a família faz parte das 33,6 milhões de pessoas no Brasil que, em 2020, ainda não tinham acesso à rede de distribuição de água. Também estão entre as 85,7 milhões que não eram atendidas pela rede de coleta de esgoto, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS) e da pesquisa nacional de saneamento básico, do IBGE.
Os cinco filhos de Maria Justina vivem junto da mãe em uma comunidade na periferia do bairro Coqueiro, na cidade de Ananindeua, Região Metropolitana de Belém. Formado a partir da ocupação irregular de moradores, o loteamento Jardim Atlântico até hoje não foi regularizado, e não tem acesso à rede de abastecimento de água e esgoto.
Como fica num nível ainda mais inferior em relação ao loteamento, nos períodos de chuva, boa parte da água que vem das ruas do entorno é escoada para o seu terreno. “O esgoto dos moradores são todos para a rua, e como meu quintal é mais baixo, eu sou a mais prejudicada. Até o poço fica inundado por essa água suja quando chove muito”, explica.
Proporção da população residente sem acesso à rede de distribuição geral de água — Brasil e Grandes Regiões (2020)
Norte – 41,1%
Nordeste – 25,1%
Sudeste – 8,7%
Sul – 9,0%
Centro-Oeste – 9,1%
Brasil – 15,9%
Proporção da população residente não atendida pela rede de coleta de esgoto — Brasil e Grandes Regiões (2020)
Norte – 77,2%
Nordeste – 62,0%
Sudeste – 26,4%
Sul – 51,2%
Centro-Oeste – 38,1%
Brasil – 39,7%
Fontes: Cenário da Infância e Adolescência no Brasil em 2022 – Fundação Abrinq (com base em dados do SNIS e estimativas populacionais produzidas pelo IBGE)
Maria Justina costuma recorrer ao poço do vizinho, porque acredita que a água dele é melhor. “Não tem esse cheiro desagradável”, comenta. “Aqui em casa, a água só presta para tomar banho, e lavar roupa e louça”.
A água do poço também é usada para as necessidades básicas da casa de Vaniele Silva, 29, mãe da Ágata, 9, e do Samuel, 5. Como não têm acesso à água encanada, eles tratam como podem. “Toda semana a gente coloca Quiboa [água sanitária] dentro e tira metade da água…”, explica a moradora.
No mesmo loteamento, também mora Géssica dos Santos, 20, tia da Maria Luiza, 14, e da Anna Beatriz, 8, que passam boa parte do tempo com ela. Na casa das meninas, o poço é de “boca aberta”. “Como é no quintal, que é descida para lá, a água leva todo o lixo para dentro quando chove”. Nestas situações, a irmã recorre à água da casa de Géssica, que possui um poço próprio. “A qualidade é boa. Usamos para beber, tomar banho, cozinhar, lavar roupa”, conta.
Com a rua alagada e a falta de saneamento, o brincar das crianças também fica comprometido. “O espaço delas brincarem é na rua, quando está seco. Mas, quando chove, fica ruim para brincar, porque é lama, é água para todo lado”, comenta Géssica.
O paradoxo das águas na Amazônia
Apesar da região Norte ter o maior volume de água doce disponível para consumo humano no mundo, oriunda de rios, chuvas e aquíferos, parte da população ainda tem acesso restrito a este recurso, lamenta o geógrafo da Universidade Federal do Pará (UFPA), Carlos Bordalo.
Coordenador do Grupo de Pesquisa Geografia das Águas da Amazônia (GGAM), Carlos ainda lembra que a região é a que tem a menor população do país, ou seja, menor demanda e maior disponibilidade de água. “Trata-se, portanto, de uma escassez relativa ou econômica em relação ao volume de água disponível”, explica. É o caso tanto de ribeirinhos que usam a água dos rios para consumir, como de moradores das regiões urbanas que utilizam poço, como as famílias de Maria Justina, Géssica e Vaniele.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, para serem seguros em termos de contaminação da água, os poços artesianos precisam estar a pelo menos 30 metros de distância das fossas, o que não é uma realidade na região. “A maioria dos poços usados pela população ribeirinha, amazônida, periférica, e brasileira como um todo, são poços abertos, rasos, com profundidade de 10 a 20 metros. Alguns são de alvenaria, mas às vezes não têm nenhuma estrutura e não são seguros”, afirma o professor.
A situação encontra paralelos em outros pontos do país. No Sudeste, por exemplo, apesar de uma melhor estrutura de acesso à água e ao esgoto, como apontam os dados da Fundação Abrinq, a saúde das crianças sofre com a falta de pavimentação nas ruas, rede de esgoto precária e a qualidade ruim da água em algumas localidades, como é o caso da ocupação Nelson Mandela, em Campinas, interior de São Paulo, onde mora a Dona Maria Luiza Batista. Uma de suas netas, de 2 anos, está internada por problemas respiratórios provocados pela poeira das ruas. “As crianças todas têm problema respiratório e é tudo devido à moradia. Os barracos [feitos de madeira] têm muitos buracos, entra muita friagem”, explica.
Ainda que exista uma instalação que abastece as casas da ocupação onde mora com água tratada da Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento de Campinas (Sanasa), Maria Luiza não se sente segura em consumir dessa água. Segundo ela, a mangueira que abastece as casas possui pontos de vazamento, o que pode expor ao contato com o esgoto, fezes de gatos e cachorros, além da areia da rua. “Eu não confio. Compro galão de água para beber e dar para os meus netos. Quando não dá para comprar, eu fervo”.
A água tratada de mais de 700 cidades brasileiras está contaminada por elementos químicos e radioativos, segundo informação revelada pela matéria do Repórter Brasil, a partir de dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde. As regiões mais afetadas são Centro-Oeste, Sul e Sudeste, mas muitas cidades não realizaram o teste, ou seja, o número de contaminações pode ser ainda maior. O consumo diário de água com tais substâncias acima do limite permitido aumenta o risco de doenças, como o câncer. Também “há a possibilidade de muitos poços semi-artesianos estarem sendo contaminados com a liberação dos agrotóxicos de forma irresponsável”, alerta o geógrafo Carlos Bordalo.
No Brasil, o uso excessivo dessas substâncias na produção agrícola tem relação direta com o aumento da taxa de mortalidade entre a população de 0 a 19 anos por câncer e incidência de câncer, como revelou uma pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso. Outro trabalho, da Universidade do Oeste do Paraná e da universidade americana Harvard, descobriu níveis elevados de 11 agrotóxicos na água que abastece 127 cidades produtoras de grãos no oeste do Paraná, o que está associado a pelo menos 542 casos de câncer diagnosticados em moradores da região entre 2017 a 2019.
De acordo com o “Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, publicado em 2015, foram encontrados resíduos de agrotóxicos até mesmo no leite materno. Na cidade de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, foram coletadas amostras de leite de 62 mulheres lactantes, da segunda à oitava semana após o parto. Todas as amostras analisadas apresentaram pelo menos um tipo de agrotóxico.
“O consumo do leite contaminado pode provocar agravos à saúde dos recém-nascidos, por sua maior vulnerabilidade à exposição a agentes químicos presentes no ambiente, por suas características fisiológicas e por se alimentarem quase exclusivamente com o leite materno até os seis meses de idade”, afirma o estudo.
Enquanto a Região Norte tem a maior proporção da população sem acesso à água, o Nordeste possui a maior população sem água em números absolutos. São mais de 14 milhões de pessoas sem acesso à rede de distribuição de água, segundo o relatório Cenário da infância e adolescência no Brasil, da Fundação Abrinq. Este é o caso da comunidade Itapicuru, no município de Jacobina, na Bahia.
Localizada na Chapada Diamantina, sem acesso à rede da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa), que abastece a cidade, os próprios moradores montaram uma estrutura para levar a água do rio até as residências. Porém, Claudiana Silva, uma das porta-vozes da comunidade, aponta que, desde 2010, os testes de coliformes totais têm dado resultados altos.
Kelly, 9, uma dos três filhos de Claudiana, está entre as crianças que já sofreram problemas de saúde em decorrência da água contaminada. “A gente percebe que, na época do inverno, sempre há um aumento de pessoas com diarreia, principalmente os pequenos”, lamenta.
De acordo com a moradora, também há a contaminação do rio por metais pesados provocados pela ação mineradora feita nas proximidades. Embora não tenha afetado ainda a nascente do rio que abastece a comunidade, já foi comprovada, a partir de um certo ponto do percurso do rio, a contaminação por vazamento de cianeto, composto químico utilizado na extração de ouro e prata e na limpeza de metais, considerado altamente tóxico para o meio ambiente e para a saúde humana. “O maior impacto é a diminuição da água potável. Nossa comunidade é muito rica em água, porém a maioria é imprópria para consumo humano e animal. [A mineradora] impacta também nos lençóis freáticos, por conta da exploração subterrânea. E isso causa a morte das nossas nascentes”, explica.
Apesar de o saneamento básico ser um direito previsto pela Constituição Federal e pela Lei nº 11.445/2007, o Brasil ainda está muito aquém de alcançar a meta 6 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que prevê assegurar a disponibilidade e o manejo sustentável da água e do saneamento básico para todos, até 2030. Anualmente, o Instituto Trata Brasil divulga o ranking do saneamento básico das 100 maiores cidades brasileiras. Não por acaso, entre os 10 primeiros colocados não aparece nenhum município das regiões Norte e Nordeste. Por outro lado, entre os 10 piores do ranking, seis são cidades amazônicas. Entre elas, Ananindeua, onde mora Maria Justina, que ocupa a 95ª posição.
Na casa de Maria Justina, a fossa foi alagada e não pode ser utilizada já há algum tempo. Sem vaso sanitário, os filhos são obrigados a defecar em sacolas plásticas e descartar para que a coleta de lixo do município leve. Para tomar banho, precisam se expor no quintal alagado de casa, a céu aberto.
A lama a que estão expostos dentro e fora de casa já trouxe muitos prejuízos para a saúde das crianças. “A Sofia está com a testa tomada por uma alergia. A Raíssa já teve essa mesma coceira, tão feia que feriu toda a cabeça e foi preciso cortar o cabelo dela”, relembra a mãe. Pelo contato com a lama e por não terem água tratada, diarreias são frequentes e “verme com certeza devem ter”, lamenta.
O pesquisador Carlos Bordalo alerta que a água contaminada é um grande agente de veiculação de doenças hídricas. “Além de doenças gastrointestinais e estomacais, com sintomas de diarreia, vômito e febre, tem a questão das verminoses, em decorrência da presença de coliformes fecais na água. Entre as doenças que pode provocar, as mais graves são a leishmaniose e leptospirose”, pontua.
Além disso, a falta de acesso ao saneamento básico tem impacto direto sobre a expectativa de vida, sobretudo de crianças de até quatro anos de idade. As taxas de mortalidade dessa população estão diretamente ligadas aos piores índices de saneamento e de distribuição de água, sendo as piores taxas concentradas nas regiões Norte e Nordeste.
Taxa de mortalidade de crianças atribuída a fontes de água inadequadas, saneamento inadequado e falta de higiene (óbitos para cada 100 mil habitantes) — Brasil, 2020
De zero a quatro anos de idade – 3,4
De cinco a nove anos de idade – 0,3
De dez a 14 anos de idade – 0,2
Taxa de mortalidade de crianças de 0 a 4 anos de idade, atribuída a fontes de água inadequadas, saneamento inadequado e falta de higiene (óbitos para cada 100 mil habitantes) — Brasil e Grandes Regiões, 2020
Região Norte – 8,5
Região Nordeste – 4,3
Região Centro-Oeste – 3,0
Região Sudeste – 1,8
Região Sul – 1,5
Brasil – 3,4
Fonte: Cenário da Infância e Adolescência no Brasil em 2022 – Fundação Abrinq (com base em dados do Ministério da Saúde, Datasus, Sistema de Informações sobre Internação Hospitalar – SIH e IBGE)
Não é sem luta por mais dignidade que milhares de famílias brasileiras permanecem nessas situações. A Região Norte, por exemplo, concentra hoje o maior número de conflitos pela água no Brasil. Para o pesquisador Carlos Bordalo, o que resta à população é protestar. “O povo está indo para a rua se manifestar, exigir seus direitos por justiça hídrica. Eu acho que esse é o caminho”.
A insatisfação e o sentimento de pertencimento sustentam o desejo de mudança e ajudam a manter a esperança de dias melhores. Maria Justina tem consciência dos desafios que o lugar onde mora apresenta e ressalta que “é a saúde dos meus filhos pequenos que está em jogo”. Vaniele, que também já teve a sua casa alagada por água de chuva e de esgoto, evidencia a ambiguidade de gostar de morar ali, “mas, quando chove, a gente tem que sair na lama”, lembra. Essa relação apenas reforça o direito das famílias permanecerem no lugar onde se sentem em casa e lutarem para que esse espaço seja, de fato, um lar.
O que dizem os citados
A Secretaria Municipal de Saneamento e Infraestrutura de Ananindeua (Sesan) informou que os investimentos em abastecimento de água, rede de distribuição e tratamento de esgoto compete à Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa). A Sesan disse ainda que foram feitos investimentos em saneamento em outros bairros da cidade e que fará uma visita técnica para verificar as necessidades do loteamento Jardim Atlântico, onde moram Maria Justina, Géssica e Vaniele. Até a publicação desta reportagem, a Cosanpa e a Sanasa, também procuradas, não se pronunciaram.
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Além do abastecimento de água potável e o esgotamento sanitário, o saneamento básico envolve os serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e também drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.