As redes sociais fazem parte da vida de crianças e adolescentes muito antes deles estarem preparados para lidar com seus efeitos — e apesar das proibições legais. Entre especialistas que alertam para os riscos e famílias que tentam estabelecer limites, a pergunta central é: afinal, qual é a hora certa de liberar o primeiro perfil e o que fazer quando esse momento chega?
“Meu filho quer ter rede social, mas acho cedo”; “brigamos todos os dias por causa do uso excessivo de celular”; “ele criou um perfil no Instagram às escondidas”. Depoimentos ouvidos por Lunetas revelam um impasse coletivo, que demanda novas perguntas sobre educação, tecnologia e cuidado.
“Crianças não podem virar cobaias da indústria digital”, alerta Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital no Instituto Alana. “As plataformas disputam atenção a qualquer custo, inclusive à custa da saúde mental e da autoestima.”
Para a psicopedagoga e educadora parental Claudia Alaminos, a questão não está apenas em definir idades ou regras rígidas, mas em transformar a decisão em um gesto de proteção e amor. “Quando as decisões são compartilhadas, em vez de impostas, a regra deixa de ter o tom de controle e passa a ser entendida como cuidado.”
Esta reportagem integra a série “Crianças e celular”. Leia também: [Um papo sobre o mundo digital] e [Primeiro celular: decisão individual ou pacto coletivo?].
Emancipação digital: por que adiar ajuda — e como liberar por etapas?
Não existe um botão de “liberar redes sociais”. Para Rodrigo Nejm, o caminho seguro é fazer isso de “forma gradual, acompanhando o desenvolvimento da criança e do adolescente”. Portanto, em vez do modelo “tudo ou nada” (proibir totalmente e depois liberar acesso irrestrito), a recomendação é construir uma espécie de escada de autonomia: primeiro o celular, depois alguns aplicativos, mais tarde determinadas redes, sempre com acordos claros, supervisão combinada e espaço para diálogo.
Para Claudia Alaminos, “é papel dos adultos responsáveis ensinar a construir uma relação saudável com a tecnologia”. E isso precisa acontecer de acordo com a idade indicada para cada plataforma. Mas, quando o acesso já foi dado, ela reforça ser “essencial garantir que o mundo digital não ocupe o lugar da vida real”. Afinal, nada substitui o convívio presencial e as experiências concretas.
A Classificação Indicativa, regulada pelo Ministério da Justiça, informa quais conteúdos não são adequados em diferentes faixas etárias. Ela se aplica a redes sociais, programas, filmes e jogos, orientando escolhas mais seguras. As faixas etárias são “Livre”, 10, 12, 14, 16 e 18 anos, definidas a partir da análise de três eixos: violência, drogas e sexo. Confira as classificações das principais redes sociais:
Instagram: não recomendada para menores de 16 anos;
TikTok: não recomendado para menores de 14 a
X (antigo Twitter): não recomendado para menores de 18 anos.
Apesar disso, dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2025 mostram que o acesso de crianças e adolescentes acontece mais cedo: 33% entre 9 e 10 anos estão presentes nessas plataformas, 63% entre 11 a 12 anos e 89% entre 13 e 14 anos.
Mais maturidade para dar like
Na adolescência, pertencimento e aprovação viram quase “oxigênio”, diz Claudia. O cérebro ainda está em desenvolvimento, principalmente nas áreas ligadas a impulso e regulação emocional, enquanto o sistema de recompensa busca prazer imediato e novidade constante, exatamente o que as redes sociais oferecem em forma de curtidas, comentários e seguidores.
A mesma sensibilidade às recompensas amplia a vulnerabilidade à rejeição, e pequenas críticas ganham proporções emocionais. “Não é coincidência que os índices de depressão, ansiedade e autolesão entre jovens tenham aumentado”, aponta a especialista. Por isso, ela defende: quanto mais tempo de uma infância livre de redes sociais, maior a chance de um futuro digital mais equilibrado e saudável.
No Brasil, os registros de ansiedade entre crianças e jovens superam os de adultos, segundo dados da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). Entre 2013 e 2023, os atendimentos envolvendo transtornos de ansiedade no SUS (Sistema Único de Saúde) aumentaram 1.575% entre crianças de 10 a 14 anos. Já entre 15 e 19 anos o aumento foi de 4.423%.
“É só por volta dos 16 anos que o adolescente começa a desenvolver habilidades para lidar com comparações, reconhecer seus próprios valores e sustentar sua autoestima sem depender tanto do olhar externo”, explica Claudia. Antes disso, “as redes sociais funcionam como um espelho distorcido, onde todo mundo é mais bonito, mais rico, mais magro, viaja mais, come nos melhores restaurantes.”
Como reforça Rodrigo, esse processo é menos sobre a idade exata e mais sobre maturidade digital. “A criança precisa ter tempo para aprender regras, limites e formas responsáveis de se relacionar com a tecnologia, do mesmo jeito que aprende a se alimentar ou atravessar a rua.”
Na prática: como liberar o acesso por etapas
Segundo Rodrigo, a relação dos adolescentes com as redes sociais deve ser construída com negociação dentro da família. “Portanto, para ter o que deseja, o adolescente precisa demonstrar maturidade e discernimento.” Ele sugere um caminho passo a passo:
1. Comece pelo básico
Antes de redes sociais, libere o uso do celular com funções limitadas: ligações, música, aplicativos educativos, câmera para tirar fotos.
2. Introduza apps aos poucos
Comece com plataformas mais simples, como o YouTube Kids, e aplicativos de mensagens, sempre com supervisão. Instagram e TikTok só depois.
3. Ensine antes de liberar
Fale sobre temas importantes relacionados ao mundo digital: privacidade, manipulação de algoritmos, discurso de ódio, golpes, influência de likes, e também sobre direitos e deveres on-line.
4. Crie combinados claros
Defina tempo de uso, horários, o que pode ou não ser publicado, com quem pode interagir e o que acontece se as regras forem quebradas.
5. Use as ferramentas do próprio aparelho
Ative controles de bem-estar digital, limite de tempo de tela, modo noturno e restrições de conteúdo — com o adolescente sabendo disso. Eles já vêm instalados na maioria dos celulares.
6. Supervisione sem vigiar escondido
Faça checagens combinadas, como “vamos olhar juntos suas notificações hoje?”, no lugar de usar “apps espiões” instalados sem consentimento.
Acordos que funcionam: menos briga, mais rotina
“A gente briga quase todo dia por causa do celular”, diz Alessandra Tavares Custódio, mãe das gêmeas Lorena e Heloísa, de 14 anos. “Se depender delas, não há outro entretenimento além das redes sociais.”
Ela descreve um “mundo paralelo” que rouba interesse por leitura, convívio e sono, a ponto de precisar trancar os aparelhos em outro cômodo. “É cansativo, estressante e acabo com o papel de ‘a chata’. É difícil manter os acordos.”
Segundo Claudia Alaminos, os adolescentes descumprem regras não por rebeldia, mas porque o cérebro deles é biologicamente programado para buscar prazer imediato. “Trocar uma conversa animada no WhatsApp por escovar os dentes e ir dormir não é uma escolha simples para eles”, explica. “Parar algo prazeroso requer um esforço que, muitas vezes, eles ainda não conseguem fazer sozinhos.”
Por isso, não basta estabelecer regras, é preciso acompanhar. Entre os combinados que a especialista considera mais importantes estão:
- Tirar o celular do quarto à noite para proteger o sono e evitar interrupções;
- Criar zonas sem tela durante as refeições ou em trajetos de carro, por exemplo, para garantir momentos reais de convivência;
- Definir limites de tempo claros com apoio de ferramentas ou aplicativos de monitoramento.
Mas um ponto é essencial: os combinados só funcionam quando são construídos juntos e valem para todos. “Se o adulto decide tudo e pergunta ‘combinado?’ no fim é só uma ordem disfarçada”, ressalta. “E quando os pais também aderem, o combinado ganha legitimidade. Se a família decide que a mesa é um espaço sem celular, isso inclui os adultos. O exemplo é tão ou mais educativo do que a regra”.
Quando ainda não é a hora certa: como sustentar o limite?
Muitos jovens entram nas plataformas pelo medo de ficar de fora, não por desejo genuíno, explica Claudia. Assim, cabe aos responsáveis mediar o conflito e definir os limites.
A psicopedagoga faz um paralelo que dimensiona o problema: “se, em vez do celular, estivéssemos falando de um adolescente bebendo em excesso, ninguém diria ‘tudo bem, já que todo mundo bebe, deixa ele beber também’. A diferença é que a sociedade normalizou as telas, mas elas também podem causar danos significativos”.
Rodrigo Nejm sugere conversas em que os adultos escutem mais e façam perguntas como: “o que você busca nessa rede?”; “qual é o seu objetivo?”; “o que você quer compartilhar ou acompanhar por lá?”. A partir dessa troca, é possível “construir um caminho em que o jovem mostre ter maturidade e discernimento para conseguir o que deseja”.
O que fazer quando o perfil surge às escondidas?
Lucas*, 14 anos, ganhou o primeiro celular aos 13. No começo, os acordos eram claros: tempo limitado, supervisão constante e uso funcional. O aparelho passou a integrar a autonomia dele: ir e voltar sozinho de alguns lugares e compartilhar localização.
Mas o maior impasse começou com as redes sociais. “Quase todos os amigos já têm Instagram e TikTok, e ele se sente excluído por não acompanhar os memes, trends e dancinhas”, conta o pai, Rodrigo*. Até que um dia descobriu que Lucas havia criado, escondido, um perfil no Instagram.
Claudia conta que “burlar a autoridade dos pais” é comum nas famílias que atende. “Diante do desejo de pertencer, alguns jovens mentem. Isso faz parte da busca natural pela integração ao grupo”, explica. Por isso, punir ou reforçar o controle rígido tende a afastar ainda mais o jovem. A saída, diz ela, começa com escuta.
Buscar acordos no lugar de proibir tudo costuma funcionar melhor, segundo a especialista. Em alguns casos, flexibilizar com supervisão pode ensinar o adolescente a se autorregular. Se já existe um perfil secreto, dá para transformar a crise em reconstrução de confiança, com diálogo antes do castigo.
Lucas contou aos pais que mentiu porque estava “desesperado por ser o único sem rede social”. A partir daí, os pais decidiram que a entrada dele nesse universo vai acontecer, mas com regras claras, diálogo constante e acompanhamento — não por medo, mas por proteção.
Como lidar com um adolescente que se sente excluído?
Claudia indica alguns passos para ampliar o diálogo e controlar a ansiedade desses jovens:
1. Evite o discurso de “quando você crescer, você entende”
Não diga frases como “um dia você vai me dar razão”. Esse tipo de fala deslegitima o sentimento do adolescente e coloca a conversa no campo da obediência, não do cuidado.
2. Valide o sentimento do seu filho
Reconheça a frustração, a tristeza ou o sentimento de exclusão. Diga “eu entendo que você esteja sofrendo” ou “eu sei que é doloroso se sentir excluído”. Validar não significa concordar, nem fazer o que o adolescente está pedindo, mas mostra empatia.
3. Explique com honestidade o motivo da decisão
Deixe claro que não se trata de castigo, mas de proteção. Ser pai e mãe inclui tomar decisões difíceis pensando no bem-estar do filho, mesmo quando ele não concorda.
4. Reforce que ninguém está totalmente preparado para as redes sociais — nem os adultos
Isso ajuda o adolescente a entender que a questão não é incapacidade, e sim o tempo certo para ter maturidade emocional e cognitiva para lidar com esse espaço.
5. Busque famílias que pensam como você
Aproximar-se de outros pais que também decidiram adiar a entrada nas redes sociais ajuda a criar um senso de pertencimento — para o adulto e para o adolescente. Na reportagem anterior da série, mostramos que movimentos que propõem pactos coletivos ajudam na hora de adiar o primeiro celular, e isso vale também para o primeiro perfil em uma rede social.
6. Crie experiências fora das telas
“Ninguém desliga o celular para não fazer nada.” Então, ofereça alternativas reais: incentive esportes, encontros presenciais, atividades em grupo e ao ar livre. Sem opções, a resistência cresce — e o conflito também.
7. Mostre que adiar não é proibir para sempre
Deixe claro que seu filho terá acesso no futuro, mas de forma gradual e segura, quando tiver mais condições de lidar com riscos, pressões sociais e conteúdos da internet.
Como reduzir telas sem entrar em guerra
Esperar que crianças e adolescentes reduzam o tempo de tela sem nenhum tipo de resistência é irreal, aponta Claudia. “O conflito não desaparece, mas pode ser vivido de forma mais pacífica quando há participação.”
Por fim, a psicopedagoga lembra que adolescentes precisam de limites para se sentirem seguros. “Quando o adulto se afasta e deixa tudo por conta deles, a sensação não é de liberdade, mas de desamparo”, explica. Por isso, em alguns momentos, “os pais precisam sustentar o limite com a serenidade de quem tem razão, mesmo diante de protestos”.
Entre as estratégias sugeridas, estão:
- Períodos off-line planejados, como passeios em que o celular fica em casa;
- Ambientes sem tela, que favorecem a conversa e o olho no olho;
- Propostas de convivência que incluam o adulto, e não apenas “mande a criança brincar sozinha”;
- Diversificação da rotina, para que o tempo livre não dependa apenas de tela para ser prazeroso.
* Nome fictício, a pedido da família.
