O capacitismo, ou seja, o preconceito direcionado a pessoas com deficiência, é uma das principais causas para a subnotificação de casos
Crianças com deficiência são mais vulneráveis à violência e abuso sexual e têm mais dificuldades para denunciar. Entre a principal causa da subnotificação de casos está o capacitismo, ou seja, o preconceito direcionado a pessoas com deficiência.
Manter o vínculo com a criança, prestar atenção em eventuais mudanças de humor, apetite e comportamento e, principalmente, escutá-las. São atitudes simples que podem prevenir ou denunciar a violência sexual entre crianças e adolescentes. Mas, quando a vítima tem comprometimento intelectual ou de fala, como descobrir o crime e proteger a criança?
Segundo dados divulgados pelo Atlas da Violência 2018, mais de 10% dos casos de violência sexual envolvem pessoas com algum tipo de deficiência. O tema é complexo e a comunicação da denúncia requer muito cuidado.
Para Ana Rita de Paula, psicóloga e doutora em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP), autora do livro “Sexualidade e Deficiência – Rompendo O Silêncio”, o capacitismo é um dos principais motivos para este índice. Capacitismo é o nome que se dá ao preconceito direcionado a pessoas com deficiência.
A psicóloga explica que a denúncia de uma criança com deficiência tem menos peso ou valor por conta desse tipo de preconceito. “Os pais conversam pouco sobre sexualidade com os filhos, e isso é potencializado quando se trata de crianças com deficiência pois elas, muitas vezes, são compreendidas como assexuadas, que supostamente não teriam nenhum desejo ou vontade sexual”, explica.
“A denúncia de uma criança com deficiência pode ser ainda menos ‘creditada’ por conta da capacitismo”
No Brasil, existem poucas estatísticas sobre crimes cometidos contra pessoas com deficiência e nenhuma que seja definitiva sobre crimes cometidos contra crianças com deficiência. Entretanto, diversos relatórios internacionais apontam uma preocupação de organismos multilaterais com a situação de vulnerabilidade a que as crianças com deficiência estão submetidas.
Em depoimento para o documentário “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, Ana Rita explica a falta de estatísticas relativas à pessoa com deficiência:
“O movimento das pessoas com deficiência infelizmente sempre foi considerado, na literatura e na memória, o etcetera”
Esse “apagão” de números, entretanto, está diminuindo. O Atlas da Violência trouxe dados sobre o tipo deficiência que é mais suscetível a sofrer violência. Do total de pessoas com com deficiência no Brasil, 31.9% são aquelas que têm alguma deficiência intelectual.
A própria psicóloga aponta avanços, tanto pelas conquistas dos movimentos das pessoas com deficiência tanto por ocuparem mais espaços de poder. O fato de saírem mais de casa e estarem presentes nas discussões da sociedade aumentou o número de denúncias de abuso sexual. “Quando eu coordenava o programa de saúde da área da pessoa com deficiência, falar sobre isso era muito mais difícil. Hoje, os serviços saúde já têm essa pauta mais presente”, relata.
Para Renata Tibyriçá, defensora pública do Estado de São Paulo, a principal dificuldade continua sendo a denúncia.
“As famílias ainda resistem em denunciar, muitas têm vergonha, e isso aumenta quando a vítima tem deficiência”
Ana Rita também aponta outro problema. “Muitas vezes, o abusador da pessoa com deficiência também é o provedor da casa. Onde você vai deixar a criança se prender o abusador? Vai levar a um abrigo?”, questiona a psicóloga.
O processo de investigação é sempre muito complicado e os mecanismos de escuta das crianças são importantes na descoberta da violação. “Por isso, principalmente no caso das crianças com deficiência, o acompanhamento dos professores, cuidadores e da rede de apoio é fundamental”, defende Ana Rita.
A plataforma Eu Me Protejo foi criada para que as crianças aprendam que seus corpos são seus e devem ser respeitados, e ensina a reconhecer e se proteger de abusos. O projeto desenvolveu uma cartilha ilustrada, com linguagem simples, para ser lida com família, educadores ou cuidadores. Pensando em acessibilidade, existem versões em português, Língua Brasileira de Sinais (Libras), inglês, espanhol, videolivros em português e em Libras. Além da cartilha, há informações, dicas, músicas, poemas, teatro de fantoches em vídeo e outros recursos para conversar com as crianças sobre corpo, cuidados, quem pode ajudar e como se proteger.
Agilizar o julgamento de processo relativos à violência sexual é uma das metas do Setor de Atendimento de Crimes da Violência contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno de Pessoas (Sanctvs), criado em 2015, a partir de um provimento do Conselho Superior de Magistratura do Estado de São Paulo. No primeiro semestre deste ano, o órgão já instaurou 1.652 inquéritos policiais e ajuizou 279 ações penais.
Durante os processos de escuta, são ouvidos membros da família e também professores, que podem ajudar a perceber a mudança de comportamento da criança. Jamila Jorge Ferrari, delegada coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, reforça a importância da observação da criança e da rede de apoio, principalmente a escola. “A escola, para a pessoa com deficiência, faz um trabalho impecável. É um espaço de acolhimento, onde a criança vai contar o que está passando a quem confia”.
Caso a vítima seja uma criança ou adolescente, a escuta não é obrigatória. Segundo o Ministério Público de São Paulo, depoimentos considerados ‘especiais’ são tomados por técnicos do Poder Judiciário que, previamente ao depoimento, elaboram um parecer sobre a existência de condições da criança ser ouvida.
Nesses casos, pode-se recorrer a provas indiretas, como os depoimentos de familiares, e também a devida mediação, para que a criança se expresse por gestos, por exemplo. Na oitiva das crianças com deficiência é possível também utilizar recursos como intérpretes de Libras e pranchas de comunicação para auxiliar na expressão das crianças. “Mas a lista de tecnologias assistivas ainda é pequena”, lamenta Ana Rita.
Disque 100 – Disque Denúncia Nacional
O Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes, incluindo crianças com deficiência, com foco em violência sexual, vinculado ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, do Governo Federal. Trata-se de um canal de comunicação da sociedade civil com o poder público, que possibilita conhecer e avaliar a dimensão da violência contra os direitos humanos e o sistema de proteção, bem como orientar a elaboração de políticas públicas.
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A Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou no relatório “Situação Mundial da Infância”, publicado em 2013, que crianças com deficiência são mais vulneráveis à negligência, abusos e violência sexual. A pesquisa divulgou o resultado de 17 estudos em países de alta renda, que concluiu que crianças com deficiência estavam mais expostas a sofrer violência – esse índice é 3,6 vezes maior para violência física e 2,9 vezes maior para violência sexual.
O relatório ressaltou a falta de estudos de boa qualidade sobre o tema em países de média e baixa renda que, de maneira geral, têm níveis mais altos de violência e menos serviços de apoio para pessoas com deficiência.
Há indícios de que o tipo de deficiência afeta a prevalência e o risco de violência. Crianças com deficiência intelectual ou transtorno mental, por exemplo, apresentam probabilidade 4,6 vezes maior de serem vítimas de violência sexual.
Além disso, meninas com deficiência são as principais vítimas de abusos e, em muitos países, são obrigadas a se submeter à esterilização ou aborto como medidas preventivas de menstruação ou gravidez indesejada, justificada pela noção errônea de ‘proteção à criança’, dada a vulnerabilidade de meninas com deficiência a abuso sexual e estupro.