A quarentena é uma possibilidade de usar a casa como ambiente educativo, para a criação de vínculos e na construção do senso de autonomia das crianças
A casa é um ambiente educativo importante, principalmente nesse período de confinamento social durante a quarentena. Envolver as crianças na rotina da casa é uma oportunidade de desenvolver sua autonomia, ressignificar papéis e fortalecer vínculos.
“Que memórias as famílias estão construindo juntas durante a quarentena? Como as crianças e adolescentes contarão sobre esse momento no futuro?” Quem insiste nessas perguntas é a psicóloga e psicoterapeuta familiar Thaís Olímpia Bernardes. Para ela, o período de isolamento domiciliar marcado pela pandemia de Covid-19 pode trazer aprendizados e benefícios para crianças e adultos, dependendo da maneira como cada família está encarando essa convivência.
Se, por um lado, a situação coloca muitas famílias diante do desemprego ou de tentativas frustradas de conciliar o home office com a rotina das crianças fora da escola, também oferece uma chance de ver a importância da casa em seu papel educativo e enquanto espaço de afeto. Segundo a psicóloga,
“Temos uma grande oportunidade de rever as relações familiares, ressignificar nosso papel na educação dos filhos e oferecer experiências fora do contexto pedagógico escolar”
Desafiando os manuais que listam atividades para exercer com as crianças de acordo com a faixa etária, Thaís prefere pensar o desenvolvimento da aprendizagem no contexto domiciliar como uma construção particular, a partir da realidade de cada família.
Por essa perspectiva, o aprimoramento da linguagem, da gramática ou do raciocínio matemático, por exemplo, pode estar presente em momentos sem grandes elaborações, como ler em voz alta, copiar uma lista do mercado, contar os ovos ou medir a quantidade de farinha para preparar um bolo. Apesar de simples, essas atividades exigem presença e dedicação, tornando-se um exercício de paciência também para os adultos. “Aprender com afeto acomoda a criança para a vida”, defende a psicóloga.
Estar presente no mesmo espaço físico, com mais tempo de interação durante o período de isolamento domiciliar, não significa, automaticamente, uma presença de melhor qualidade por parte dos adultos, aponta a artista e educadora do Espaço Cria, Rafaela Rocha. “Nem estar presente fisicamente com a cabeça em outro lugar, nem dar atenção com muita ansiedade, expectativas e direcionamentos.” Segunda ela, as crianças precisam de um grau de liberdade para iniciativas próprias e o papel dos pais deve ser oferecer oportunidades de aprendizado, assegurando um ambiente no qual elas possam se desenvolver com autonomia.
A casa e a família são um primeiro núcleo social ao qual a criança deseja pertencer. “Tudo o que é feito pelos adultos está dando informações sobre como os seres se comportam no mundo”, afirma Rafaela. Nesse sentido, não adianta os pais isolarem as crianças das tarefas domésticas durante a infância, por exemplo, e, no futuro, cobrarem ajuda e participação.
A educadora explica que as crianças encontram segurança quando se deparam com objetos do seu tamanho: uma dica é disponibilizar na casa objetos fáceis de serem manipulados, como cadeiras pequenas, bandejas, gavetas baixas e outras ferramentas. “Isso produz uma sensação de pertencimento e as crianças não precisam ficar pedindo que o adulto faça tudo por elas.”
Guardar os brinquedos, ajudar no preparo das refeições ou lavar a louça. As pequenas ações, como aponta Thaís Bernardes, podem se desenvolver em habilidades como autonomia, responsabilidade e solidariedade, se houver direcionamento.
“A criança precisa entender que arrumar a própria cama tem um significado de cuidar das próprias coisas e da casa enquanto ambiente coletivo e compartilhado”
Ao mesmo tempo, quem precisa aliar a rotina diária de trabalho e o cuidado com os pequenos sabe que esse não é um processo mecânico. Pedir para um filho participar das tarefas da casa pode significar pratos quebrados pela cozinha ou mais tempo dobrando as roupas que os adultos fariam em 15 minutos. Apesar disso, a experiência da escritora e empreendedora Roberta Ferec, mãe de três filhos, prova que, embora demande tempo, insistir em envolver as crianças pode beneficiar toda a família.
“Com filhos de cinco, sete e 11 anos, consigo acompanhar a evolução do desenvolvimento da autonomia. A criança começa a sentir que participa, colabora e consegue”, conta.
“Minha maior alegria é ver hoje o meu filho mais velho perguntando como ele pode ajudar e ser útil”
Seja durante a quarentena ou em dias comuns, sábado tem música e faxina na casa de Roberta. Todos participam: a filha, os dois filhos e o marido. Ela acredita que envolver os meninos e as meninas, sem distinção, ajuda a desconstruir os estereótipos de gênero.
Embora essa visão possa contribuir para a criação de um ambiente mais democrático e igualitário, como sugere a psicóloga Thaís Bernardes, o avanço depende da bagagem e da concepção de mundo de cada família e, nesse sentido, a quarentena pode significar um reforço de perspectivas sociais e culturais enraizadas, como o machismo ou a própria noção de autoridade dos pais.
Na opinião da assessora pedagógica e coordenadora de Educação do Instituto Alana, Raquel Franzim, não é possível pensar em uma regra única para usar a casa como papel educativo, quando se coloca em perspectiva as diferenças econômicas, sociais, políticas e geográficas do Brasil. “Talvez para as famílias mais favorecidas economicamente seja uma oportunidade de estabelecer uma relação mais saudável com os cuidados da casa, que até então estava terceirizado”, explica. “Para as famílias desfavorecidas é preciso prestar atenção, porque, do ponto de vista histórico, o cuidado com a casa já tirou das crianças a oportunidade de se desenvolverem como crianças, o direito ao ócio, ao brincar ou ao estudo. Por muitas décadas, as crianças tiveram que escolher entre estudar e trabalhar para o sustento da família, especialmente as meninas”.
Raquel ressalta que, além de ampliar o papel educativo da casa, o isolamento domiciliar ainda serve como um momento de reflexão e apoio às famílias, para que busquem resolver conflitos geracionais de outras maneiras que não seja pelo poder e controle sobre as crianças, incentivado pela cultura do castigo e da violência física e verbal.
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