Em um país onde mulheres ainda morrem por complicações da gestação, o acompanhamento de qualidade é essencial para garantir uma gravidez bem-sucedida
Especialistas ouvidos pelo Lunetas explicam por que o acompanhamento durante a gestação é essencial na redução da mortalidade materna e também dos recém-nascidos, e quais as práticas mais importantes a adotar durante a gravidez.
“Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar a forma de nascer.” A famosa frase do obstetra francês Michel Odent, que se dedicou a estudar a fisiologia do parto e da amamentação, chama atenção para o momento mais importante na vida de todo ser humano: o nascimento. Porém, o cuidado com o “nascer” não se resume à hora do parto.
“O pré-natal pode ser a única oportunidade da mulher ser assistida de forma longitudinal [relação terapêutica entre paciente e profissionais de saúde ao longo do tempo] em um serviço de saúde, quando podemos rastrear doenças e riscos para a vida dela e do bebê”, diz a ginecologista e obstetra, especialista em medicina fetal, Gabriela Bezerra dos Santos. O pré-natal previne, dessa forma, a mortalidade materna que, ao contrário do que se pode imaginar, ainda é muito alta no Brasil.
Em 2015, o Brasil registrou cerca de 70 mortes a cada 100 mil nascimentos, de acordo com dados do Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna do Ministério da Saúde. Já em 2021, 94.649 mulheres morreram em decorrência de complicações do parto ou puerpério, elevando este índice para 107 a cada 100 mil nascimentos, “o que significa uma piora expressiva, visto que as causas da mortalidade materna são, em sua maioria, evitáveis”, explica a obstetra. Para mudar essa realidade, a Organização das Nações Unidas (ONU) estipulou como meta, até 2030, a redução da mortalidade materna global para menos de 70 mortes a cada 100 mil nascidos vivos.
Esse índice considera os casos em que as mulheres morreram durante a gravidez ou nos 42 dias seguintes ao parto (período de duração do puerpério), em função de alguma causa relacionada à gestação ou agravada por ela. “Os principais fatores para a piora desse indicador se devem à baixa cobertura de saúde primária e à dificuldade de acesso das mulheres ao pré-natal, bem como à baixa capacitação dos profissionais que atendem locais onde sequer há serviços de emergência”, emenda.
“O pré-natal é considerado uma estratégia fundamental para a prevenção da mortalidade materna, pois é por meio desse acompanhamento que se pode fazer avaliação precoce e contínua de fatores de risco, prescrição de estratégias de prevenção de complicações (como vacinas, suplementos para anemia, medicações para evitar pré-eclâmpsia etc.), diagnóstico precoce e tratamento dessas complicações, e encaminhamento para serviços especializados ou de emergência, se necessário”, detalha a enfermeira obstetra, parteira domiciliar e pós-doutoranda em tocoginecologia, Maíra Libertad. O foco é oferecer um pré-natal de qualidade, seguindo estratégias de prevenção baseadas em evidências e diagnóstico precoce de complicações, a tempo de um tratamento adequado.
“É no pré-natal que se vai medir, continuamente, a pressão, avaliar fatores de risco para hipertensão, diagnosticar, inicialmente, quadros preocupantes, solicitar exames, prescrever medicações e assim por diante. Se o pré-natal está ausente ou falho, essas alterações podem passar despercebidas, o manejo pode ser inadequado e é aí que ocorrem os casos mais graves, que podem evoluir para óbito, com mais frequência”, detalha Maíra.
Maíra pontua que, antes da covid-19, a hipertensão era a principal causa de mortalidade materna, seguida de hemorragias e infecções, mas, desde o início da pandemia, “houve um aumento alarmante do índice de mortalidade materna – atingimos taxas mais altas do que vínhamos apresentando na última década”, detalha Maíra.
Um estudo publicado recentemente pela fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revelou que, nos últimos dois anos, houve aumento de quase 90% da mortalidade materna em todo o país: a Covid-19 foi a responsável por mais de 53% das mortes de grávidas e mães de recém-nascidos. O estudo aponta também que as mulheres pretas apresentaram maior Razão de Mortalidade Materna (RMM): 194,3 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2021 – 71 mortes a mais em comparação com as mulheres brancas, que foi de 123,2 mortes por 100 mil nascimentos. A RMM das mulheres indígenas foi de 140,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos.
O pré-natal nada mais é do que o acompanhamento que toda gestante deve fazer, independentemente de estar saudável ou ter algum problema de saúde. “Isso significa que é uma estratégia também de prevenção, ou seja, não é preciso estar doente ou ter outro diagnóstico, além da gestação, para realizar o pré-natal”, esclarece a enfermeira. Além das consultas e exames de rotina, esse acompanhamento também deve incluir educação em saúde, como, por exemplo, orientações sobre queixas comuns e como lidar com elas, sinais de alerta que necessitam de assistência imediata, informações sobre o parto, construção do plano de parto, entre outros.
Dependendo do caso, ele pode incluir, além do profissional de obstetrícia, acompanhamento médico de outras especialidades, como psicologia, nutrição, fisioterapia etc. “Em muitas situações, essa equipe multidisciplinar vai poder oferecer um cuidado que aborde outros aspectos da saúde que também influenciam na gestação”, detalha Maíra.
Seguindo estudos e diretrizes nacionais e internacionais, bem como leis brasileiras, casos de baixo risco ou risco habitual (quando, inicialmente, gestante e bebê estão saudáveis, sem risco aumentado de complicações), podem ser acompanhados por enfermeiras obstetras, obstetrizes ou enfermeiras de saúde da família, além de médicos obstetras e médicos da família e comunidade, habilitados técnica e legalmente para oferecer assistência pré-natal. Já nas situações de alto risco, de modo geral, o cuidado será oferecido, principalmente, pelo médico obstetra, ainda que enfermeiras obstetras e obstetrizes possam participar e, muitas vezes, sejam necessários também profissionais de outras especialidades, como endocrinologistas e cardiologistas.
Segundo explica a obstetra, hoje o pré-natal é mais abrangente, e pode ser compreendido dentro do período periconcepcional, ou seja, na consulta antes da gestação e no planejamento familiar, pré-natal e puerpério (logo que o bebê nasce). A orientação é que a gestante faça pelo menos seis consultas, e os profissionais devem estar atentos às condições preexistentes da paciente, como obesidade, doenças autoimunes, diabetes, pressão alta, histórico de outras gestações, além do histórico médico familiar.
Fonte: Publicação realizada em conjunto por especialistas do Instituto Fernandes Figueira da Fiocruz, Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo Nacional) e Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)
Além de monitorar a saúde da gestante, o pré-natal pode ser crucial para a redução da mortalidade dos recém-nascidos. Segundo dados de 2020, a taxa de mortalidade neonatal foi de 8,3 para cada 1 mil nascidos vivos, enquanto a taxa recomendada pela ONU até 2030 é reduzir esse índice para, no máximo, 5 por 1 mil nascidos vivos. Entre as principais causas de morte entre recém-nascidos estão a asfixia intrauterina e intraparto, o baixo peso ao nascer, doenças respiratórias, infecções e prematuridade.
“Cuidar do binômio mãe-bebê impacta na gestação e nos primeiros meses de vida da criança. Ao garantir uma adequada assistência, como medida de política pública, teremos menores índices de complicações, desfechos desfavoráveis e menor taxa de mortalidade de ambos, principalmente para o bebê que depende totalmente do sucesso dos meses de gestação e dos primeiros meses de vida fora do útero“, afirma a pediatra do Hospital Albert Einstein e idealizadora do projeto Cuidar Intensivo, Gabriela Bonente.
“O cuidado na gestação e no pós-parto garante crianças saudáveis”
É no pré-natal que a gestante começa a usar medicações preventivas, como ácido fólico contra malformações do sistema nervoso do feto; faz controle da pressão arterial, que tem impacto direto no crescimento e desenvolvimento do bebê intrauterino; realiza exames para investigar doenças maternas que podem passar para o bebê, como HIV, toxoplasmose e rubéola ou anemia. Algumas infecções, por exemplo, quando não tratadas, podem provocar enfermidades no bebê e mesmo partos prematuros.
“Sabe-se que o pré-natal adequado, a boa assistência ao parto, a nutrição materna, a prevenção de gestação na adolescência, o estímulo ao aleitamento materno, a consulta pediátrica na primeira semana de vida e o planejamento familiar trazem grande impacto na diminuição da mortalidade neonatal”, esclarece a pediatra.
A gravidez traz diversas alterações no corpo e na mente, além de poder trazer riscos à saúde da dupla mãe-bebê. Por isso, é importante um acompanhamento próximo e de qualidade para que sinais de alerta e fatores de risco não passem despercebidos, permitindo traçar estratégias de prevenção e educação que melhorem as chances de desfechos saudáveis e positivos. Se surgirem complicações, que sejam diagnosticadas rapidamente, bem controladas e tratadas.
“Para que no final desse processo tenhamos uma família saudável e satisfeita, o sistema de saúde como um todo – profissionais e serviços de saúde – deve reconhecer a importância desses eventos (gestação, parto e pós-parto), e fazer investimentos adequados para garantir que todas as gestantes tenham acesso ao cuidado integral, respeitoso e da melhor qualidade”, resume Maíra.
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