Há alguns dias, ao reencontrar um caderno cheio de anotações, Ana Paula Lucena recordou o puerpério que viveu com as gêmeas Mariana e Lívia, 5. Listas a ajudavam a controlar os horários de cada mamada e o lado do peito para cada uma, além do registro das trocas de fraldas, sonecas e horário de remédios. “Nem essas anotações me impediram de dar o remédio duas vezes para a mesma bebê”, escreveu em sua rede social. O registro é uma evidência de como a sobrecarga mental pesa mais para as mulheres que vêem a vida mudar completamente após a maternidade. “Antes era tudo ‘eu’ e depois se tornou tudo ‘elas’. Quando escuto alguém dizer que não se lembra da vida antes dos filhos, acho engraçado, porque eu me lembro e sinto muita saudade”, conta.
Em 2020, no auge da pandemia, Lucena foi diagnosticada com a síndrome do burnout parental, que é o esgotamento físico e emocional de mães e pais. “Me sentia completamente esgotada, irritada e frustrada por não conseguir conciliar o cuidado das minhas filhas com o trabalho e demais tarefas. Os dias eram muito estressantes, tentando equilibrar os pratinhos”, lembra. Na época, ela e o marido estavam em home office e dividiam a atenção com as tarefas domésticas, responsabilidades de trabalho e os desafios da criação das filhas, então com dois anos.
Uma pesquisa da comunidade materna Portal Mommys mostrou que 49% das 634 mães entrevistadas se sentem em um “limbo emocional” e 80% disseram estar “exaustas”, mesmo não tendo nenhuma doença mental ou física diagnosticada. A mesma pesquisa revelou dados que confirmam a relação entre as tarefas da economia do cuidado e a sobrecarga mental materna: 82% delas fazem as atividades domésticas, 91% levam os filhos a consultas e tratamentos médicos, 81% acompanham as tarefas escolares dos filhos e 75% levam os filhos para as atividades extracurriculares.
“Sinto falta de quando as minhas preocupações eram o roteiro da próxima viagem ou a roupa para uma festa que ia acontecer no final de semana. Pode parecer bobagem, mas eu vivi aquela vida e isso fez parte de mim antes de me tornar mãe de gêmeas”, recorda Lucena.
Maternidade real e exaustão não podem ser romantizadas
Apesar do costume de normalizar as duplas e triplas jornadas de mães e até romantizar essas mulheres como “guerreiras” ou “fortalezas” de seus lares, a realidade parece ser uma só: mães estão exaustas. Depressão, ansiedade e sintomas agudos de cansaço que culminam no “burnout materno” são os principais casos avaliados em mães sobrecarregadas, de acordo com a psiquiatra Julia Trindade, membro da Sociedade Brasileira de Psiquiatria. “O esgotamento materno pode ser causado por uma série de fatores, desde a falta de apoio da família e amigos até a pressão social para ser uma mãe perfeita”, explica.
Embora o burnout materno não seja um termo oficialmente reconhecido no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, profissionais passaram a ter um cuidado especial para esse recorte a partir da observação do esgotamento das mães. “A sensação constante de culpa, irritabilidade, desânimo, cansaço mesmo depois de descansar, tristeza e até falta de interesse em estar com os filhos são alguns dos sintomas que devem ser investigados”, pontua.
Para prevenir o desgaste mental e físico, a psiquiatra defende que a rede de apoio é fundamental, para que a mulher possa ter momentos de descanso e de atividades prazerosas. “Ela não pode ser esquecida na sociedade, principalmente logo após o nascimento de seu bebê”, ressalta. Para Trindade, ações como preparar um lanche para a mãe, cuidar da louça, segurar o bebê para que ela tome um banho mais demorado, e simplesmente ouvi-la para validar o que está sentindo são atitudes que fazem a diferença. “Toda mãe também precisa de cuidados e apoio emocional”, conclui.
Sobrecarga é um fator comum entre as mães
Conciliar as tarefas da casa, o cuidado com o filho Lohan, 1, e o trabalho como criadora de conteúdo torna os dias de Rafela Lyma muito cansativos. “É difícil sobrar um tempinho só pra mim, mas sempre procuro ter o meu momento de autocuidado. Não é todo dia que dá certo porque só consigo à noite, depois que meu filho dorme”, conta.
Seus vídeos confirmam como a carga materna pesa para todas as mulheres e quebram os preconceitos sobre o nanismo, que não muda em nada o trabalho e a responsabilidade de cuidar de uma criança. Para ela, a única diferença em ser mãe com nanismo é que algumas tarefas precisam ser adaptadas, como o banho e a troca de fraldas. “Para dar banho, coloco a banheira em cima da cama, pois fica numa altura legal. A única dificuldade é que meu filho não tem o nanismo e já está quase do meu tamanho. Fica difícil carregá-lo no colo”, diz.
“Eu esqueci de como eu era”, diz ao se lembrar da época do puerpério, a fase mais difícil que passou física e mentalmente. “Eu não dormia direito e a qualidade de sono ruim me prejudicava. Não tinha prazer em me cuidar e, como trabalho com internet, recebia críticas de pessoas que diziam que eu estava acabada. Isso foi muito difícil pra mim”, desabafa.
Conta da maternidade solo e atípica pode ser maior
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11 milhões de mulheres são mães solo e 64% delas estão abaixo da linha da pobreza. Maria Bertolino, mãe de Miguel, 12, precisou deixar o trabalho para se dedicar integralmente à rotina do filho quando ele recebeu o diagnóstico de autismo nível 2, hiperatividade e deficiência intelectual. A renda da família passou a ser de um salário mínimo, garantidos pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência.
Para quem vive uma maternidade atípica, as responsabilidades podem ser ainda mais complicadas, pois os tratamentos contínuos dos filhos demandam mais tempo na vida dessas mães. No caso de Miguel, além da escola e do atendimento especializado no contraturno, ele faz natação, treinamento de psicomotricidade duas vezes na semana e também participa de um projeto de arte e cultura de circo. “O Miguel precisa de cuidados o tempo todo. Quando está muito agitado, tenho que ficar na escola com ele”, conta.
Bertolino precisa estar de pé antes das seis da manhã para arrumar a casa, preparar o café e organizar o material das atividades do dia. Todo o deslocamento é feito de ônibus. Mãe solo, ela não tem mais a ajuda dos pais, que perdeu recentemente. “Na minha família, eu sou a rede de apoio e a pessoa que gere toda a estrutura de cuidado e de responsabilidades. Cuido do Miguel e do meu irmão mais velho, que também precisa de suporte e cuidados psicológicos”, declara.
A carga da maternidade atípica tem a conta maior não apenas pelas demandas específicas mas também por ser recorrente o abandono paterno após o diagnóstico de um filho. Segundo pesquisa do Instituto Baresi, de 2012, cerca de 78% dos pais brasileiros abandonaram as mães de crianças com deficiências e doenças raras antes dos cinco anos de vida dos filhos. Os índices revelam um descompasso gigantesco no equilíbrio do cuidado de crianças atípicas. Essa estrutura pode culminar em prejuízos físicos e mentais na vida de quem cuida, conforme aponta um estudo publicado no “Journal of Autism and Developmental Disorder”, de 2010, que mostrou que pais de crianças com transtornos do espectro do autismo têm níveis de cortisol, hormônio liberado em situações de estresse, similares a soldados de combate e sobreviventes do Holocausto. Ou seja, a tensão é imensa.
“No fim de semana, meu corpo e minha mente não respondem mais. Até tenho vontade de acessar espaços de cultura e lazer, mas são tantas demandas com a casa e com tudo que não consigo fazer mais do que já fiz. Na maioria das vezes eu me recolho e fico quieta para buscar energia para a outra semana”, desabafa Bertolino. Para ela, é necessário conscientizar a sociedade sobre a importância da empatia às mães e da divisão da carga mental com o Estado, a família e cada pai cumprindo seu papel. “Não precisa ter dó. Cada um pode ajudar apenas com uma escuta ou um abraço. Precisamos ter um momento de autocuidado, afeto e compreensão. Muitas mães não têm com quem falar de suas dores”, conclui.
Quem cuida de quem cuida?
Com o crescente debate sobre a necessidade de uma rede de apoio às mães, Lunetas já listou 11 coletivos que auxiliam mães solo e agora divide exemplos de redes independentes formadas por mulheres de vários lugares do país para compartilhar os desafios da maternidade, oferecer acolhimento e trocar informações:
- Coletivo de Apoio à Maternidade Solo: atua no acolhimento a mães solo em vulnerabilidade social ou vítimas de desastres (incêndios, enchentes) na grande São Paulo e capital. Além de arrecadar doações de alimentos, roupas e suplementos alimentares para as crianças, o coletivo disponibiliza apoio emocional e profissional com rodas de conversa e cursos de capacitação para reinserir mães no mercado de trabalho.
- Instituto Lagarta: oferece suporte emocional, apoio jurídico e material para famílias de pessoas com deficiência. Além de disponibilizar material didático para as crianças e informações sobre os direitos e as leis de inclusão para as famílias, o instituto promove encontros entre mães e filhos em espaços de lazer e grupos de debates. Está presente em vários estados como São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Alagoas, Santa Catarina e Paraná.
- Portal Mommys: comunidade materna que oferece conteúdos informativos, rede de escuta, projetos e encontros para o compartilhamento de experiências entre mães que começaram a se conectar em grupos de Facebook e hoje somam mais de 8 mil mulheres pelo país.
- Aplicativo Benditas Mães: plataforma digital para mães se conectarem a partir de interesses e necessidades em comum. O aplicativo permite o “match” de amizade entre mães que moram perto, a criação de grupos de interação, indicação de serviços especializados e espaço para divulgação de textos sobre maternidade e criação de filhos.
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