Os brinquedos de miriti pelo olhar das crianças de Abaetetuba

Em Abaetetuba, no Pará, o artesanato feito de palmeira regional embala as infâncias, ativa a memória dos adultos e perpetua uma tradição

Élida Cristo Publicado em 03.04.2023
Foto de duas crianças pintando uma embarcação feita de miriti
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Resumo

Patrimônio cultural imaterial do estado do Pará, o brinquedo de miriti é uma expressão da tradição do município de Abaetetuba que continua a inspirar o aprendizado do ofício pelas novas gerações e a encantar crianças de todas as idades.

Na natureza, muitos elementos podem virar brinquedo nas mãos de uma criança. Basta uma imaginação fértil e a disposição para explorar possibilidades. No município de Abaetetuba, no estado do Pará, a transformação acontece a partir da parte interna do caule de uma palmeira chamada miritizeiro e logo barcos, bichos, bonecos e outros objetos leves como isopor estão prontos para encantar e divertir as crianças – mas não só. Adultos também se interessam pela arte que são os brinquedos de miriti e levam para casa como lembrancinhas de viagem ou itens de decoração.

Os brinquedos de miriti também são utilizados como ex-votos, presentes religiosos oferecidos à Nossa Senhora de Nazaré para agradecer graças alcançadas em promessas feitas durante o Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações religiosas do mundo que acontece em Belém. “Meu pai me levava desde os meus seis anos para Belém no período do Círio. De lá pra cá, são 41 anos na arte que me foi repassada pelo meu pai, meus tios e avô, pois sou de uma família tradicional de artesãos de brinquedos de miriti”, conta o presidente do IMMA (Instituto Multicultural Miritis da Amazônia) Rivailson Peixoto, mais conhecido em Abaetetuba como mestre Riva.

Segundo o escritor e professor de estética, história da arte e cultura amazônica João de Jesus Paes Loureiro, “acredita-se que crianças começaram a utilizar o miriti para fazer pequenos brinquedos, sobretudo pela maciez do material para entalhe e sua possibilidade de flutuar nas águas dos rios, igarapés, lagos e poças d’água deixadas pela chuva. Eram pequenas montarias e vigilengas [tipos de canoas] navegando por entre as inúmeras atividades lúdicas infantis”.

Tradição que atravessa gerações

Como filho de artesão, mestre Riva relata que, quando criança, sua primeira atividade foi brincar bastante com o miriti. Até mesmo quebrar os brinquedos por acidente era um processo necessário, pois significava “o começo da arte em nossas vidas”, comenta.

Hoje, as netas Rita Beatriz, 11, e Ryanne Sofia, 9, também brincam e até participam da produção dos brinquedos de miriti. “Mas elas entram apenas no processo de acabamento, especificamente na parte da pintura. Somente a partir dos 16 anos elas terão autonomia para manusear as facas, que são bastante perigosas por serem extremamente afiadas”, ressalta.

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Arquivo pessoal

No Instituto Multicultural Miritis da Amazônia, Mestre Riva posa com a onça feita de miriti

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Arquivo pessoal

As netas do Mestre Riva, Rita e Ryanne, pintam uma colorida canoa

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Arquivo pessoal

O artesão Mestre Riva talha uma embarcação em miriti

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Ryanne Sophia se concentra para pintar um dos brinquedos talhados por seu avô

A historiadora Claudete da Silva, pesquisadora das relações de trabalho e aprendizagem no processo de produção dos brinquedos de miriti, explica que o artesanato é constituído por uma relação familiar, o que permite a transmissão do conhecimento de uma geração a outra. “Desde os dois anos, a criança já está na oficina junto com o pai, com a mãe, a tia, o avô… Ela vai para a oficina e pergunta: ‘Vovô, como é que faz aqui?’. Aí ele começa a ensinar. Assim essa atividade cultural permanece como uma tradição dentro do município”.

Preocupados com a preservação do brinquedo de miriti, que é considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Pará desde 2010, os artesãos realizam atividades em busca da valorização da produção artesanal com o miriti, sobretudo entre as novas gerações.

É o caso de Nildo Farias, artesão de miriti há 21 anos em Abaetetuba que promove diversas oficinas em colégios da cidade, em outros municípios e na capital paraense com a finalidade de “formar novos artesãos, para que as crianças conheçam e se interessem pela cultura do nosso município, do nosso estado, e possam dar continuidade a essa atividade”, relata. “Elas adoram. Pegam para lixar e pintar, ficam superempolgadas e alegres de fazer e depois levar para casa os brinquedos”, completa.

Árvore sagrada

O miritizeiro, comum na cidade de Abaetetuba, nasce nas regiões de várzea da Amazônia. As inúmeras possibilidades de uso da palmeira do miriti lhe renderam o título popular de “santa” ou “árvore da bênção”, porque dela tudo se aproveita. “A bucha, polpa do caule, se transforma nos famosos brinquedos. As raízes e cascas são usadas na medicina natural. As talas do caule servem para fazer tipitis, tipo de prensa utilizada para a fabricação de farinha. As folhas são usadas em tecelagem de cestas, redes, bolsas, abanos etc. Do fruto são feitos mingau, bolo, salgados, cremes, doces, sobremesas, suco, pudim, brigadeiros. A bucha do caroço do fruto vira ração animal. A casca do fruto, assim como os caroços e sementes, tornam-se biojoias; a flor do miriti, licores. O cacho sem o fruto serve como repelente para insetos; o óleo extraído da polpa do fruto entra em larga escala na área de cosméticos. E, no final de sua produção, quando seus frutos começam a falhar, o miritizeiro, por seu tamanho generoso, é cortado para servir como porto na frente das casas ribeirinhas”, descreve mestre Riva.

A potência da simplicidade que se reinventa, mas permanece única

Os brinquedos mais tradicionais de miriti retratam a realidade local, como as embarcações, as casas e a fauna regional. Mas, atualmente, existem inúmeros outros objetos e situações representadas nos brinquedos da matéria-prima macia de talhar e modelar.

Mestre Riva, que já levou suas produções para outros estados e até para fora do Brasil, partilha algumas das suas criações. “Faço quase todos os objetos de miriti, como brinquedos tradicionais (barco, cobra, pássaros, pila-pila, casal de dançarinos, pombinha, jacaré, tatu), avião, utilitários, objetos decorativos etc. Mas o primeiro e principal brinquedo que aprendi a fazer e que faço até hoje é a canoa”.

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Arquivo pessoal

Os brinquedos de miriti têm lugar garantido nas brincadeiras das crianças de Abaetetuba

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Arquivo pessoal

A canoa é um dos brinquedos mais produzidos pelos artesãos de Abaetetuba

A historiadora Da Silva explica que, embora seja uma expressão da tradição cultural popular, isso não significa que a produção artística tenha ficado parada no tempo.

“Trata-se de uma tradição movente, que acompanha a dinamicidade do tempo presente, que se reinventa de acordo com o contexto histórico vivenciado pelos artesãos”

Ela conclui que por isso o brinquedo de miriti é fascinante para as crianças ainda hoje, mesmo diante da predominância, por exemplo, dos brinquedos industrializados.

Existe uma infância contida nos brinquedos que envolve as crianças, e também os adultos e idosos que revisitam os sentimentos de outrora. “Mesmo com os mais sofisticados brinquedos eletrônicos da atualidade, ainda assim nossos brinquedos não perdem sua essência. Sua leveza, sutileza e cores vibrantes exercem um encantamento sem igual”, pontua mestre Riva.

Quando questionada se preferia os brinquedos de plástico ou os de miriti, a pequena Rita evidencia que a simplicidade do miriti é o que mais lhe atrai. “Prefiro os de miriti, porque é fácil de fazer e não custa muito dinheiro”. Além de brincar, ela também gosta de pintar “porque é legal ver as cores neles e eu acho que eles ficam bonitos”, conta.

O brinquedo de miriti, embora simples, carrega algo de complexo e profundo para artesãos, suas famílias e admiradores, que mestre Riva não consegue traduzir. “Ser artesão de miriti é como se fosse uma extensão de minha alma. Palavras são poucas e difíceis de expressar o amor que temos por essa arte”. Em contrapartida, sua neta Rita sabe explicar numa frase bem resumida toda a potência do porquê gosta de brincar com o miriti: “Porque representa o legado da minha família”.

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