As fotografias ajudam a construir a “memória social e afetiva de cada um”, diz a arquivologista Ana Clara Damasceno. Ao permitirem o resgate de momentos vividos, tradições e características de como a gente era em determinada época, álbuns de família guardam um montão de informações valiosas que nos ajudam a perceber as relações e as práticas familiares. Mais do que isso: álbuns de família contam histórias.
“Ao unir sujeitos e tempos, a fotografia possibilita a construção de narrativas históricas da família”
Por serem “um espelho do passado e uma projeção de futuro”, como diz Damasceno, a fotografia é um lugar que favorece o encontro. “Elas permitem o reencontro, a revelação e a presentificação do passado familiar, podendo nos fazer sentir pertencimento ou não-pertencimento com aquele grupo.”
Enquanto antes as coisas aconteciam e podiam virar fotografia, hoje, elas acontecem exatamente para isso, escreveu Susan Sontag, em seu livro “Sobre fotografia”. Porém, que narrativa está sendo construída nos álbuns de família virtuais? Para Damasceno, “com a volatilidade dos registros fotográficos nas redes sociais e o volume de registros temporários, os fatos a serem recobrados de uma memória familiar entram em ameaça de inexistência”.
Um breve histórico
“A memória é construída de restos, fragmentos e lembranças que nos levam a uma narrativa maior”
A reconstrução de histórias a partir de imagens
“Gosto da sensação de registrar um fragmento de tempo, de olhar, de sentimento”, diz a psicóloga e escritora Dauana Vale, 41. “As imagens são capazes de provocar minha curiosidade e me remeter ao que me constitui como sujeito.”
É por isso que, para ela, dói ter perdido os primeiros registros da filha Malu no processo de divórcio. “É como se uma parte bonita de sua vida fosse aprisionada. Ou como se tivessem lhe negado o direito àquelas memórias e registros de felicidade.” Apesar da psicoterapia lhe auxiliar a ressignificar essa dor, e com a possibilidade de imprimir algumas imagens salvas no computador, cenas como o primeiro banho de mar da filha, por exemplo, ficaram apenas na memória.
“Amo contar histórias para Malu e mostrar imagens que ilustram minha fala. Isso faz com que minha filha perceba que mudamos de cara, de jeito, de casa, o tempo todo”
Lucas Lima, 27, perdeu praticamente todas as fotos de infância em um incêndio, em 2015. “O que mais dói é que parte da nossa história foi embora”, diz. “É uma perda irreparável. Sinto muita tristeza principalmente porque tenho pouquíssimas fotos do meu pai, que faleceu alguns anos depois.” Junto das imagens, documentos e outras lembranças guardadas também queimaram.
“Um álbum de fotos de família é, em geral, um álbum sobre a família ampliada — e, muitas vezes, tudo o que dela resta” – Susan Sontag
Só algumas fotos, que estavam em filmes ainda não revelados, resistiram ao fogo. Por isso, agora, se algum momento o marca ou o diverte, já vale o registro. Além disso, o acontecimento serviu “como um lembrete para tirar mais fotos”. Lima perdeu a vergonha de fotografar e quer voltar a imprimir fotografias tiradas pelo celular, para materializar as novas memórias da vida adulta. Para ele, a fotografia é uma das melhores formas de contar histórias.
O tempo da cura e um olhar afetuoso para o passado
A fotografia pode fazer parte do processo de cura de vítimas de violência obstétrica, afirma Bruna Primo, fotógrafa de gestação e parto. “É comum uma mulher não conseguir ver as fotografias do parto por enxergarem nelas um lugar de dor. Mas ela pode, com o tempo, usar as imagens para se defender e para se curar.“
“É bem melhor fotografar um parto respeitoso, mas estou ali para registrar, seja qual for a história daquela mulher parindo. Por isso, quanto mais eu criar um vínculo com a pessoa ou a família fotografada, melhor”, diz. “A primeira coisa que pergunto à gestante é o que é importante para construir a história dela”.
Ruth*, 22, sofreu diversas violências psicológicas do companheiro durante a gravidez do primeiro filho. Numa tentativa de ressignificar essa experiência e apoiá-la na criação de novas memórias, o fotógrafo que registrou a sua gestação a presenteou com um novo ensaio após o nascimento da criança. “Desde então, estou tendo apoio psicológico e espiritual. Mas, no segundo ensaio, foi somente eu e meu bebê em todos os aspectos. É uma nova história, uma nova vida de um filho e de uma mãe”, diz.
“A fotografia é capaz de capturar pessoas, momentos e lugares que nos fazem relembrar coisas que, na nossa memória, parecem não existir mais”
Um documento da nossa história particular
João de Mari, 26, foi transportado para 15 anos atrás após revelar dois filmes empoeirados que encontrou na casa da tia Vera, considerada a “fotógrafa da família”. Para ele, as fotos lhe permitiram lembrar de momentos vividos apesar de passado tanto tempo. “Naquela época, mesmo tendo sido um período marcado por problemas de saúde, a família frequentemente se reunia para comemorar aniversários. Apesar dos problemas, o importante era celebrar a vida e estar junto.”
“Os lugares dessas imagens [na casa da minha avó ou de pessoas da família da minha mãe] acabam sendo um personagem, tem um papel muito grande na minha vida”, compartilha de Mari, que cresceu cercado por figuras femininas.
“É incrível como álbuns de família têm o poder de emocionar e te levar pros lugares que você nem lembrava que existiam na sua cabeça e no seu coração”
“O episódio me deixou muito pensativo sobre a importância do registro”, conta. “Isso me acendeu a vontade de ir atrás de mais arquivos que me façam entender a história e formação da minha família.“
Os nomes com * foram trocados para preservar a identidade das fontes.
O início dos registros familiares em meados da década de 1950, marcados pela figura do patriarca sentado no centro da foto e rodeado pelos filhos, mostrava o papel de cada um no grupo familiar, diz a historiadora Márcia Elisa Rendeiro. Hoje, com a popularização da fotografia, o registro dos eventos familiares ganhou um simbolismo ainda maior: “lembrar em detalhes de coisas que efetivamente não recordamos a não ser pelo que nos contaram”.