O que o Ronald McDonald está fazendo no pátio das escolas?

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrou na Justiça contra o McDonald’s por conta de apresentações de Ronald McDonald dentro de escolas

Camilla Hoshino Publicado em 07.02.2017
Fundo em preto e branco, no centro da foto vemos o palhaço Ronald McDonald, cercado por intervenções de giz em vermelho e amarelo.

Resumo

O termo 'publicidade infantil' desperta muita dúvida, também porque há formas muito sutis de estruturar uma ação de marketing com foco no público infantil.

Vai começar o show. A plateia, animada, composta por crianças, alunos da escola, aguarda ansiosa pelo convidado do dia. Em poucos instantes, todos estarão desfrutando de uma divertida apresentação, dando risada e aprendendo muito com os jogos e mágicas que serão apresentados por uma figura bastante conhecida internacionalmente, e mascote de uma marca mundial de fast food: é hora do show educativo do Ronald McDonald.

O que pode parecer uma piada de mau gosto – afinal, o que pode haver de educativo em um show do Ronald McDonald ?- aconteceu em escolas particulares e privadas de São Paulo e de outros estados, e se tornou o centro de um embate jurídico envolvendo a empresa proprietária da marca que leva o mesmo nome e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. No final de 2016, o órgão entrou na Justiça contra a rede de fast food McDonald’s por conta de apresentações do show dentro de escolas. A acusação? Publicidade infantil.

A Defensoria pediu à justiça a proibição da realização da ação mercadológica “O Show do Ronald McDonald” nas escolas; a retirada de divulgação do show na página oficial da marca na internet e  a condenação da empresa ao pagamento de danos morais coletivos no importe de R$ 1.883.758,70. O processo ainda está em andamento.

Mas, há quem diga que condenar uma iniciativa como essa seja um grande exagero: afinal, que mal pode haver em uma apresentação lúdica de um personagem bastante conhecido, principalmente se ele estiver abordando temas educativos?

Para especialistas na área, existe, sim, um problema com esse tipo de apresentação e não é dos pequenos. “O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor explicam que esta prática de publicidade infantil é considerada abusiva por se aproveitar da inocência e da maior dificuldade de compreensão das crianças”, disse Rodrigo Serra, defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor de São Paulo, órgão que entrou com o processo contra a marca, em entrevista à Rede Peteca.

A partir de uma experiência prazerosa, como um show divertido na escola, por exemplo, a criança cria memórias desse sentimento, que permanecerão com ela influenciando, gostos, opiniões, escolhas e decisões futuras.

“Quando a criança se deparar com a marca ou com o personagem, vai reconhecer aquele momento de prazer como algo que aquela marca proporciona”

É o que explica Ekaterine Karageorgiadis, advogada do projeto Criança e Consumo. “O que a criança aprende na escola é muito importante. Se ela aprende um conteúdo comercial, ela vai reproduzir isso. As marcas estão na televisão, no Facebook, na escola e em praças e parques públicos”, completa a especialista. 

Muitas vezes, de acordo com a especialista, é difícil até para os próprios educadores identificarem esse tipo de conteúdo, travestido de uma ação educativa pelas empresas, como sendo publicidade infantil. Imagine, então, para uma criança.

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Criança e Consumo

As regras da publicidade infantil, segundo o Criança e Consumo, do Instituto Alana.

Afinal, o que é publicidade infantil?

Publicidade infantil é toda ação de comunicação mercadológica dirigida ao público infantil. Fato é que o termo ‘publicidade infantil’ ainda desperta muita dúvida, também porque há formas muito sutis -que comumente passam despercebidas- de estruturar uma ação de marketing com foco no público infantil.

Um brinquedo ou brinde no chocolate -que rapidamente se torna um dos preferidos da criança-, um show educativo com um personagem atrelado a alguma marca, uma experiência lúdica ou sensorial “oferecida” por uma marca, um anúncio publicitário no intervalo de uma programação voltada ao público infantil, produtos “oficiais” (conhecidos como produtos licenciados) daquele personagem preferido do desenho animado, vídeos na internet que mostram crianças manuseando produtos (prática conhecida como unboxing): algumas abordagens bastante utilizadas pelas marcas para se relacionar e apresentar seus produtos às crianças, mas que muitas vezes podem ser de difícil identificação.

Por que devemos nos preocupar tanto com a publicidade infantil? 

Em primeiro lugar, porque publicidade infantil é crime e fere os direitos da infância. “Esses direitos são protegidos e asseguram que a criança, que está numa fase crucial do desenvolvimento, não esteja à mercê do mercado”, diz Ekaterine.

Não é segredo para ninguém que a publicidade tem o objetivo de fomentar o desejo de consumir algo, é uma ferramenta usada por marcas para divulgar produtos e serviços e aumentar vendas.

Embora caiba aos pais ou responsáveis pela criança definir o que a mesma consumirá ou não, de acordo com especialistas, a publicidade causa efeitos muito nocivos às crianças, entre eles: consumismo de produtos, mas também de alimentos não saudáveis, endividamento de famílias, e fomento à cultura da violência.

A pesquisa “Publicidade Infantil em tempos de convergência“, realizada pelo Grupo de Pesquisa da Infância, Juventude e Mídia, da Universidade Federal do Ceará, relaciona a publicidade infantil e o consumismo com a cultura de violência. Para o levantamento, pesquisadores analisaram depoimentos crianças sobre as emoções que nutrem a partir do desejo frustrado de consumir e adquirir produtos:

  • “Dá vontade de ficar um mês sem falar com a minha mãe”
  • “Eu tenho até vontade de ir embora e nunca mais voltar para casa”
  • “Bravo, não, fico triste”
  • “Eu fico com uma ira”
  • “Às vezes dá vontade de esganar os pais”

A pesquisa também questionou as crianças sobre como se sentiam em relação à não ter coisas que desejavam, anunciadas em propagandas, e seus amigos terem. Um relato resume a preocupação dos pesquisadores com o tema: “Com vontade de roubar dele”.

Nesse sentido, conclusão da pesquisa é contundente: “O consumo, portanto, vai além do fator mercadológico, possui um papel classificatório, promovendo inclusão e exclusão de indivíduos em determinadas categorias e grupos sociais. Essa característica pode ser ainda mais perversa para crianças da faixa etária deste estudo (nove a 11 anos), que se encontram numa fase de afirmação de quem são e a que grupos pertencem”.

Em agosto do ano passado, a ONU (Organização das Nações Unidas)  divulgou uma carta (leia aqui, em inglês) na qual pede que governos e autoridades de todos os países no mundo regulamentem a publicidade direcionada à criança.

Escrita pelo especialista em dívida externa e direitos humanos da ONU, Juan Pablo Bohoslavsky, e pelo Relator Especial sobre o direito à saúde também da ONU, Dainius Puras, a declaração aponta o risco que a publicidade infantil tem de “moldar a longo prazo o comportamento de consumo e financeiro das crianças”.

Na opinião dos especialistas, a publicidade dirigida às crianças pode levar ao endividamento das famílias, que muitas vezes, por conta dos pedidos dos filhos, adquirem itens que estão além do seu orçamento.

Mas os impactos da publicidade infantil vão além do estímulo ao consumo de brinquedos e objetos. No caso dos alimentos de baixo valor nutricional, a publicidade está diretamente ligada ao consumo de alimentos -e voltamos ao caso do show do Ronald McDonald nas escolas.

“Obesidade, sobrepeso e doenças crônicas associadas à obesidade. A publicidade é um dos fatores que contribui com esse cenário”, aponta Ekaterine, advogada do Criança e Consumo.

Essa também é a opinião do pediatra espanhol Carlos González, que acaba de lançar no Brasil o livro”Meu filho não come!”, que aborda alimentação infantil e os desafios que as famílias enfrentam para construir junto aos filhos um bom hábito alimentar. Para ele, os motivos para uma criança fazer escolhas ruins na hora de comer tem uma relação direta com o contexto em que ela está, o que inclui a influência direta da publicidade infantil.

“Que tipo de alimentos são dados junto a um brinquedo ou um jogo de cartas? Guloseimas. O fabricante sabe que nem mesmo uma criança iria comer essa porcaria se ele não oferecesse um brinquedo junto. Ninguém dá um jogo de cartas com castanhas ou maçãs, simplesmente porque não é necessário”, disse o pediatra em entrevista ao Lunetas.

Fato é que nos últimos anos a obesidade infantil vem se transformando em um problema de saúde pública. A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que cerca de 41 milhões de crianças com até cinco anos estão obesas ou apresentam sobrepeso no mundo. E, a realidade dessa estatística tem se tornado cada vez maior no Brasil.

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Restringir publicidade infantil é uma iniciativa efetiva para combater a obesidade infantil.

Avanços no combate à publicidade infantil

No final do ano passado, a Federação Holandesa de Indústria de Alimentos (FNLI) anunciou a retirada gradativa de personagens infantis famosos entre as crianças, como Dora a Exploradora, das embalagens de alimentos na Holanda. Na Inglaterra, por exemplo, os anúncios de junk food direcionados a crianças serão proibidos na internet, na mídia impressa e em exibições de cinema no país.

Acompanhando o exemplo desses países, indústria e governos têm debatido publicamente os impactos da publicidade infantil em alimentos e medidas para combater violações dos direitos da infância nesse sentido.

Aqui no Brasil, também no final do ano passado, 11 empresas multinacionais (Coca-Cola Brasil, Ferrero (dona do Ferrero Rocher, Kinder Ovo, Nutella e Tic Tac), General Mills (Häagen-Dazs e Nature Valley), Grupo Bimbo (Pulmann), Kellogg’s, Mars (M&Ms, Twix, Snickers), McDonald’s, Mondelez (Lacta, Toblerone, Oreo, Tang, Bubbaloo), Nestlé, PepsiCo e Unilever) anunciaram um compromisso com regras comuns relativas à publicidade infantil de seus produtos alimentícios.

Na opinião de Ekaterine, embora essa medida represente um avanço, o ideal é que houvesse uma regulamentação estatal para publicidade de alimentos que abrangesse produtos de todas as empresas. “Olhamos com ressalvas. Além da limitação em número de empresas, esse compromisso abre, por exemplo, a possibilidade de haver publicidade travestida em escolas”, alerta a advogada do Criança e Consumo.

Publicidade infantil, consumismo, direitos da criança: afinal, de quem é a responsabilidade?

A resposta para essa pergunta não é simples, principalmente porque não há um único responsável. Ekaterine, a coordenadora do projeto Criança e Consumo, ressalta que é preciso uma atuação forte do poder público, e a sensibilização da sociedade. “Estado, família e sociedade são responsáveis pelos direitos das crianças. É preciso uma sensibilização social para que se entenda esse tema e cada qual consiga analisar como protegera criança”.

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