O caso da menina de 10 anos, grávida e abusada pelo tio, alerta para a urgência de garantir a crianças e adolescentes o direito à educação sexual
Com 500 mil casos de violência sexual estimados por ano no Brasil, “quem não abre espaço para a educação sexual está colaborando para a manutenção da cultura da violência”, diz Viviana Santiago.
O Brasil acompanhou, como quem assiste a uma transmissão de um front de guerra, os desdobramentos da notícia de uma menina de 10 anos, grávida de 22 semanas, estuprada pelo tio há quatro anos.
Segundo dados do Relatório Luz do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil, 2018 teve um dos mais altos índices de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes: foram registrados 32 mil casos – 92% da violência é contra meninas, em sua maioria negras. Este ano, durante o isolamento domiciliar como medida preventiva à pandemia do coronavírus, o número de casos de abuso sexual infantojuvenil deve ser ainda mais elevado, já que algumas regiões do país apresentam aumento de 50% nas denúncias de violência doméstica e 40% nos casos de feminicídio.
É urgente que se trate com seriedade a importância da educação integral para a sexualidade, inclusive como mecanismo de apoio a crianças e adolescentes para desenvolver ferramentas de autoproteção.
Reposicionar os direitos sexuais no campo da sociedade brasileira é fundamental, para que, de uma vez por todas, as pessoas possam compreender que direitos sexuais são direitos humanos e não podem ser suprimidos por enviesamentos morais.
Para isso, precisamos ter certeza de que as pessoas de fato compreendem o significado de sexualidade. Sexualidade é uma dimensão do ser humano e está presente durante o curso de vida, assumindo características diferentes de acordo com cada etapa. É aquilo que traz para cada pessoa a possibilidade de cultivar o prazer, de endereçar afetos, de estabelecer relações íntimas; a sexualidade envolve mas não se resume ao ato sexual. O tabu e o desconhecimento em torno da sexualidade e a errônea vinculação de sexualidade exclusivamente ao sexo é profundamente prejudicial para a promoção da educação integral de sexualidade.
Quando se fala em educação integral para a sexualidade – ou educação sexual, como se convencionou chamar no Brasil – há um processo de ensino e aprendizagem que dá oportunidade a cada estudante o acesso ao conhecimento sobre sexualidade, a nomeação das partes do corpo, seu reconhecimento e o completo entendimento do começo da vida.
Uma característica da sociedade brasileira é a indiferença quanto à noção da privacidade na vida das crianças e adolescentes: quanto menor a criança, mais difícil para essa família resguardar seu corpo. Em algumas regiões do país, é com orgulho que se exibe e tecem comentários sobre órgãos genitais dos bebês, é comum trocar fraldas de crianças em público ou ainda obrigam crianças a dar beijos, abraços e sentar no colo de estranhos. São situações que as violentam no presente e não lhes permitem construir ferramentas de autoproteção.
Na vivência da educação sexual para crianças, na primeira infância, elas começam a entender a noção de privacidade, a aprender como seu corpo funciona, ao tocar em determinadas partes, a nomear sensações. Esse conhecimento é fundamental pois, em uma situação de violência sexual, é comum que as crianças não peçam ajuda por desconhecerem seu próprio corpo, não entenderem que determinadas partes não devem ser tocadas por pessoas que não estejam autorizadas (as responsáveis pelos seu cuidado) ou não saberem como seu corpo reage quando é tocado, pois esse ato pode envolver sensações prazerosas. Ao longo do tempo, a criança pode se sentir corresponsável e culpada pela violência que sofreu e não pedir ajuda.
A educação integral para a sexualidade é um direito de todo ser humano e faz parte do conjunto de direitos sexuais norteado por normas jurídicas de promoção e implementação, além de políticas públicas que assegurem a saúde sexual de todas as cidadãs e todos os cidadãos. Crianças são sujeitos de cidadania e devem acessar seus direitos sexuais, receber informações e educação que lhes permitam ter saúde sexual e contar ferramentas para autoproteção.
Quando as famílias tentam impedir o acesso de crianças e adolescentes à educação sexual, além de violar seus direitos sexuais, se esquecem que é dentro de casa, por parte de pessoas da família ou muito próxima delas, que as crianças sofrem violência sem reconhecer o que está acontecendo.
Crianças não são propriedades de suas famílias, o cuidado envolve respeitar os seus direitos e fortalecer a cultura de proteção e prevenção da violência.
No país em que se estima mais de 500 mil casos de violência sexual por ano, não é exagero dizer que quem não abre espaço para o debate e a implementação da educação sexual está colaborando para a manutenção da cultura da violência.
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Disque 100 – Disque Denúncia Nacional
O Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da SPDCA/SDH. Trata-se de um canal de comunicação da sociedade civil com o poder público, que possibilita conhecer e avaliar a dimensão da violência contra os direitos humanos e o sistema de proteção, bem como orientar a elaboração de políticas públicas.