“O que eu estou comendo?” foi a pergunta que Brunna, 13, fez à mãe Sandra Sachs com apenas dois anos de idade. Sachs disse que era carne. “E o que é carne?”, a menina replicou. “É vaca”, respondeu a mãe. Esse breve diálogo foi suficiente para levá-la a decidir não comer mais animais. Mais tarde, ao estudar a pirâmide alimentar na escola, ficou horrorizada ao descobrir que frango é galinha. Depois, percebeu que ficava triste quando comia peixe. Então, durante um almoço, falou para a mãe:
“Não quero que mais nenhum animal tenha que morrer ou sofrer para eu viver”
Brunna percebeu muito cedo que, para ela, não era certo colocar no prato animais; eles deviam ser amados e protegidos. “Eu nasci com alergia à proteína do leite de vaca e isso sempre me fez perguntar sobre a minha alimentação. Foi assim que descobri sobre os animais que estavam no meu prato.” Desde então, as refeições em sua casa são preparadas sem nenhum derivado animal.
No Brasil, o número de pessoas que se autodeclaravam vegetarianos em 2018 era de 30 milhões. Isso significava 75% a mais do que em 2012, de acordo com uma pesquisa encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira ao Ibope. Para a nutricionista Marina Schneppendahl, a decisão da criança não deve ser motivo de preocupação. Além da Organização Mundial da Saúde afirmar que uma alimentação predominantemente à base de vegetais e frutas é mais saudável, Schneppendahl garante que a alimentação vegetariana é segura em qualquer fase da vida. “Uma criança que come mal pode ter seu desenvolvimento prejudicado. O que importa é comer bem.”
O protagonismo das leguminosas
O feijão, presente não apenas no prato diário da família de Brunna, mas de muitas famílias brasileiras, deve ser o protagonista de um prato vegetariano. “A carne não precisa ser substituída, porque ela não é essencial”, explica a nutricionista. “Mas, ao se tirar a carne, é necessário colocar outra proteína no lugar, para manter uma alimentação saudável. É aí que entram as leguminosas [grão de bico, ervilha, lentilha e tofu (feito de soja)], que são ricas fontes de proteínas vegetais.”
Mas, será que a criança ficará fraca?
Schneppendahl explica que uma alimentação vegetariana oferece a quantidade adequada de cálcio, proteína, carboidrato e todas as vitaminas que uma pessoa precisa, exceto a B12. Como as carnes são as principais fontes dessas vitaminas do complexo B, importantes para o desenvolvimento do sistema nervoso central e responsáveis pelos comandos do corpo, “é aconselhável que crianças vegetarianas façam a reposição delas, inclusive para bebês cujas mães optaram por fazer a introdução alimentar sem carne e nada de origem animal.” Em alguns casos, também pode ser indicado fazer reposição de ferro.
É nessa direção que Débora Sá, 33, pretende seguir com a introdução alimentar do filho de cinco meses. “Quando criança, escolhi ser vegetariana. Depois de alguns anos, acabei desistindo por falta de apoio familiar. Há cerca de 10 anos, sou vegana, e isso faz parte do que quero passar para minha família. Meu filho não vai comer alimentos de origem animal e darei atenção às reposições necessárias.” O tradicional pirão de peixe do nordeste adaptado com vegetais estará presente na dieta do filho junto de outros alimentos como cuscuz, tapioca, arroz, feijão, grão de bico e coco.
Quanto às crianças vegetarianas que optam por não comer laticínios, a nutricionista comenta que a ingestão de vegetais verdes escuros e de feijão branco suprem essa falta, pois são alimentos ricos em cálcio, ou leites vegetais enriquecidos com cálcio, por exemplo. Uma das coisas que Brunna mais gosta de comer no recreio é “pão de beijo” (diferente do pão de queijo, ele é feito com batata-salsa ou mandioca, por exemplo, em vez do laticínio).
Ultraprocessados podem sair caro demais
Segundo a nutricionista, ultraprocessados podem ser mais prejudiciais para a saúde das crianças. É um engano achar que é uma boa opção substituir a carne animal por carne de soja (Proteína Texturizada de Soja – PTS) ou carnes vegetais industrializadas para manter um nível adequado de proteína na dieta.
Como lembra Ariela Doctors, autora do livro “O que vai ter para comer? O que você coloca no seu prato pode mudar o planeta”, ultraprocessados são alimentos feitos em laboratórios, com muitos corantes e conservantes, além de alta quantidade de açúcares, sódio e gorduras.
“Para aumentar o tempo de prateleira dos produtos, diminui-se o tempo de vida de quem os ingere”
Além disso, uma alimentação sem carne não é mais cara, ao contrário do que algumas famílias acham, e até apelam para esse argumento para resistir a uma possível mudança. “A economia de mercado é real”, conta Sachs. “Para quem compra comida industrializada, vegetariana ou não, é sempre mais caro.” Segundo Schneppendahl, o quilo de qualquer leguminosa que é fonte de proteína vegetal é mais barato do que o quilo da carne, ou seja, o prato fica mais barato. “A melhor parte é que 1 kg de feijão triplica de tamanho. A carne, a gente perde no preparo.”
Os impactos ambientais do que se põe no prato
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde, o baixo consumo de frutas, hortaliças, grãos e leguminosas, assim como o alto consumo de alimentos de origem animal, aumentam o risco de doenças cardiovasculares, diabetes e alguns tipos de câncer. Além disso, estão diretamente relacionados a graves problemas ambientais, como desmatamento, emissão de gases poluentes e uso excessivo de água. Segundo o relatório “O valor da água”, lançado pela Unesco, a agropecuária é responsável por consumir 69% dos recursos hídricos no mundo.
Por isso, Sá se considera “uma ativista pelo veganismo popular”. “Ser vegano no Brasil é também político”, diz. “Ninguém deveria ser indiferente ao fato de que a água é um recurso finito e que tem relação com a criação de gado.”
Outra reflexão que está conectada com uma alimentação à base de plantas é o consumo local. Além de contribuir para a preservação do meio ambiente, a prática do locavorismo tem a ver com respeito às diferenças. “Não se pode querer que uma pessoa do Nordeste do país consuma as mesmas coisas do que uma pessoa do Sudeste”, diz Doctors. “Saber o que faz parte da biodiversidade em que se está inserido ajuda a diminuir a cadeia de abastecimento, valorizar a cultura e costumes locais, além de movimentar uma economia circular.”
Mais acolhimento e menos julgamento
A decisão de Brunna com apenas quatro anos em se tornar vegana motivada pela causa animal e ambiental foi uma lição para sua mãe. “Eu abracei a causa na hora, pois o que ela sentia vinha do coração e fazia todo sentido”, diz Sachs. Contudo, para Doctors, a diferença entre gerações pode tornar adultos resistentes a aceitar a alimentação vegetariana entre as crianças. “Muitos não entendem as razões pelas quais a criança toma essa decisão. Por isso, é importante que busquem compreender que existe uma nova consciência ambiental e alimentar em curso.”
Para Schneppendahl, “quando uma criança escolhe o vegetarianismo, comunicando que não quer mais comer carne ou não quer mais tomar leite, isso demonstra autonomia alimentar e isso é incrível”. Mas, será que os adultos estão mesmo dispostos a desenvolver essa autonomia, se escolhem o que as crianças comerão e já lhes dão tudo picado, questiona Doctors.
Além de ser um ato de respeito, acolher a decisão da criança em se tornar vegetariana é fundamental para estimular o desenvolvimento da autonomia, garantindo-lhes a capacidade de tomarem suas próprias decisões própria desde cedo e também as condições de assumirem as responsabilidades pelos seus próprios atos.
A importância de escutar a criança e a oportunidade de aprender juntos
“Estude com as crianças, pesquise sobre o assunto, assista a documentários”, recomenda Sachs. Além de fazer um breve passeio pela história da comida, o livro “O que vai ter para comer? O que você coloca no seu prato pode mudar o planeta”, das autoras Ariela Doctors e Maísa Zakzuk, pode ser um bom começo de conversa, pois traz dicas para colocar a mão na massa, estímulo a hábitos alimentares mais saudáveis e propostas que ajudem a natureza a reagir nesse combate desigual com a indústria dos alimentos.
“Adultos precisam descer do pedestal de achar que sabem mais do que as crianças e entender que têm muito a aprender com elas também”
Para inserir a comida vegetariana no dia a dia da casa de um modo leve, Sachs sugere que a família possa cozinhar junta. “Alguns adultos podem até se tornar flexitarianos (vegetarianos ocasionais) ao descobrirem receitas numa nova versão”, diz. Se a intenção é quebrar o estranhamento entre amigos e família estendida, um caminho, segundo ela, é levar pratos vegetarianos a eventos quando todos estarão reunidos. “Aos poucos, as pessoas vão percebendo que essa é uma alimentação inclusiva e deliciosa.”
Segundo levantamento realizado pelo programa Alimentação Consciente Brasil (ACB), refeições vegetarianas são até 65% mais baratas que as com carne em todas as 26 capitais do país. O ACB, que incentiva o consumo de alimentos de origem vegetal em instituições públicas que servem refeições junto a prefeituras, publicou o “Guia sobre a culinária vegetal” com receitas de pratos tradicionais recriados com ingredientes vegetais.