Sentada na cama, frente a frente com a filha já crescida, uma mãe conta o ideal de maternidade que construiu ainda jovem e a realidade de ter enfrentado uma depressão pós-parto. “Você tinha raiva do bebê ou raiva de si mesma?”, questiona a menina. “Sim, tudo isso”, responde Karla.
“Entendi que aquilo que eu sofria em silêncio, milhares de outras mulheres sofriam também”, diz. O depoimento dela está ao lado de três outras histórias no documentário “Eu deveria estar feliz”.
Foi a partir de um exercício de escuta sensível durante quatro dias de convivência com cada entrevistada que a diretora Cláudia Priscilla buscou quebrar um dos tabus da maternidade: a depressão pós-parto, que atinge uma em cada quatro mulheres no país, segundo a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz.
“Acessar a memória e a dor dessas mulheres foi o ponto mais delicado do filme. Sei que a delicadeza não tira a dor, mas construímos uma parceria de confiança nas conversas em que eu pedia para abrirem as memórias da vida delas”, conta Priscilla. Os relatos sobre o que ainda carregam da experiência pós-parto mostram que cada vivência é única. Eles vão desde o yoga e a busca espiritual à vida agitada em uma grande metrópole, ou da realidade de uma mãe indígena às conexões com o axé de uma mãe preta.
A depressão pós-parto também está presente no premiado curta-metragem “Duda”. Baseado em um diário de puerpério da própria diretora e de experiências pessoais da atriz principal, o filme acompanha a aflição de uma grávida a poucas semanas de dar à luz. Entre delírios e realidade, Maria não consegue mais dormir porque todos os medos que viveu na primeira gravidez voltam à tona com a gestação do segundo filho.
‘Por que não estou 100% feliz depois do nascimento?’
Com uma linguagem próxima do terror, as situações de “Duda” refletem as dores de uma maternidade não romantizada, diz a diretora Carolina Lobo. “O cinema influencia a forma como vemos o mundo. Por isso, o filme abre possibilidades de nos apoiarmos e enxergarmos o outro.”
“Eu deveria estar feliz” também questiona a romantização da maternidade e como os julgamentos a que uma mãe está sujeita após parir um bebê podem impactar a sua saúde mental. Para Priscilla, “enquanto corpos com útero forem associados ao destino da gestação ou que só terão felicidade quando tiverem filhos, a sociedade patriarcal sempre vai nos silenciar”.
Rede de apoio é fundamental
Em um cenário em que 85% das mulheres são as que desempenham o papel de cuidadoras do lar e da família, segundo a plataforma “Vale do cuidado”, desvincular a ideia da mãe como principal responsável pelos filhos é mais difícil. “Isso denuncia uma fantasia do que, na verdade, é um trabalho não pago e que carrega a sociedade e o mundo nas costas”, afirma Priscilla. Isso porque, para ela, a naturalização da mulher no papel de cuidadora implica diretamente na pressão que todas sentem após a maternidade. “É preciso questionar como foi construída a ideia de que ser mãe é a maior conquista de uma mulher”.
Para a psiquiatra Julia Trindade, “toda mãe precisa de cuidados e apoio emocional”. Nesse sentido, se não houver uma rede de apoio para mãe e bebê, ambos podem ter a saúde diretamente prejudicada. Ela ainda ressalta que há uma série de fatores que levam ao esgotamento materno. Eles vão “desde a falta de apoio da família e amigos até a pressão social para ser uma mãe perfeita”.
“A gente não teve medo de colocar na tela o que passamos na depressão pós-parto. Mas, tivemos medo de como seria a receptividade por causa da imagem sacralizada que a sociedade tem da mãe”, conta Lobo. Mesmo assim, o filme deu a oportunidade para outras pessoas falarem sobre o assunto. “Algumas mães só perceberam que passaram por uma depressão pós-parto depois de verem o filme. Além disso, irmãos, maridos e filhos contaram que não sabiam que isso existia. A troca foi muito rica e significativa.”
Confundido com a depressão pós-parto, o “baby blues” mistura cansaço e tristeza e pode durar duas semanas, mas não é considerado patológico. Já os principais sintomas da depressão pós-parto são insônia ou excesso de sono, agitação incomum, sentimento de culpa ou de inutilidade, dificuldades nas relações com o bebê e pensamentos recorrentes de morte. Por isso, o diagnóstico precisa ser adequado e o tratamento contínuo, recomendam os especialistas.
Um lugar seguro para as mães
Com uma proposta de impacto social, “Eu deveria estar feliz” terá sessões de debates e participará da comissão de um projeto de lei para homologar o Dia Nacional do Combate à Depressão Pós-Parto. Além disso, a produção desenvolveu junto à Unifesp um aplicativo que leva o mesmo nome do filme para auxiliar mulheres com o diagnóstico. Assim, elas podem acessar uma lista de lugares para acolhimento e também se conectar com outras mães. “A ideia é propor ações complementares para as mulheres terem uma ajuda no aqui e no agora”, explica Priscilla. A partir dessa semana, o documentário terá exibições ao longo da programação do canal GNT e estrá disponível também na Globoplay.
A maioria das mulheres manifesta os sintomas da depressão pós-parto dos seis aos 18 meses após o nascimento do bebê. Desse modo, o vínculo entre mãe e filho é afetado e pode desencadear consequências no desenvolvimento da criança. Por isso, para apoiar mulheres e recém-nascidos no período pós-natal, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os sistemas de saúde façam uma triagem específica para a depressão entre as pacientes puérperas.