As “crianças-polvo” nos possibilitam enxergar a singularidade de cada criança e perceber as múltiplas e inúmeras infâncias que podem existir na nossa sociedade
Inspirada pelo livro infantil “O Menino Polvo”, de Claudia Mascarenhas, Ilana Katz reflete sobre as crianças que inventam formas de caber suas vontades e ideias, neste mundo comprimido por regras e demandas criadas por adultos apressados.
Ernesto é um menino tão cheio de ideias e vontades, que precisou ter mais braços na vida e, para conseguir realizar seus planos, tornou-se um menino-polvo. Sua história está contada em um livro infantil muito bonito chamado “O Menino Polvo”, escrito pela psicanalista Claudia Mascarenhas e ilustrado por Selma Maria.
Não deve ser um exagero dizer que meninos-polvo nasceram junto com a invenção da infância, porque, de um jeito ou de outro, desde que separamos o tempo da infância do tempo da vida adulta, as crianças sempre tiveram que nos mostrar o que precisam, e como é possível construir lugar para a sua experiência.
Ernesto tem seu jeito de fazer isso: está sempre em movimento e cheio de pensamentos. Os adultos que cuidam dele, por sua vez, estão sempre lhe dando bronca. Entre as palavras e o desenho que tecem o texto do livro, a gente consegue até sentir a tensão que se instala na vida daquela família: os adultos querendo cumprir os horários e organizar a rotina, e Ernesto correndo pra lá e pra cá, tentando escapar e inventando jeitos de acontecer com seus tentáculos.
Menino Polvo, entendi assim, é o nome que Claudia, a autora, inventou para falar sobre as crianças que prestam muita atenção em outras coisas para não prestar atenção nas ordens dos adultos. Apresentando Ernesto, o livro conta: “Estava sempre distraído… distraído… mas ele nunca se distraía das suas distrações”.
O Menino Polvo, de Claudia Mascarenhas e Selma Maria (Zagodoni) Existem muitos meninos e meninas-polvo. Eles são muito inteligentes, curiosos, podem passar horas olhando um ventilador, adoram objetos pequenos, nunca ficam muito tempo quietos e andam ou correm, ou sobem em tudo o tempo todo. Eles brincam e fazem confusão demais… mas sempre há um plano secreto.
Enquanto se apresenta entre cores e tentáculos para as crianças, inventando seu jeito para fazer caber tanta vontade, o Menino Polvo abre, para os adultos, uma boa pergunta: vocês já pensaram por que uma criança precisa adotar uma estratégia tão perspicaz quanto essa para conseguir brincar?
É que Ernesto tem um plano. Ele quer alguma coisa, mas, na pressa do dia que precisa acontecer, os adultos não conseguem entendê-lo. Na verdade, parece mesmo que os adultos não podem sequer percebê-lo. A sorte que o menino deu é que aquele dia era o dia da tia vir buscá-lo, e seria ela, sua parceira de farra, que o levaria para a escola. Ele estava todo carregado, tinha um monte de brinquedo em cada uma das suas oito mãos e a mochila, nas costas, estava vazia.
A tia não atravessou o samba de Ernesto, não mandou guardar as coisas na mochila, não apressou o seu passo. Enquanto acompanhava o sobrinho-polvo até a escola, ela estava curiosa sobre os planos do garoto para aquele dia: “O que será que essa criança está pensando?”
A pergunta da tia é, também, a boa pergunta que precisamos nos fazer, antes de decidirmos que a criança está fazendo tudo errado e precisa ser corrigida. Com ela, podemos, inclusive, andar um pouquinho mais:
O que será que esse jeito de fazer as coisas diz da criança e diz do nosso encontro com ela?
Existem muitos caminhos para enfrentarmos essas questões, mas, nenhum deles dispensa a escuta. Vale, inclusive, aprender com o livro que escutar o menino-polvo não é, necessariamente, fazer muitas perguntas sobre suas intenções e planos. Às vezes, o menino está tão assustado, que não encontra palavras para se explicar. Ele precisa primeiro fazer, e depois contar.
Nessa história, escutar Ernesto foi andar ao seu lado e apostar com ele num projeto. Como todo projeto, aquele podia dar certo ou dar errado, e nem era esse o ponto: o caminho pra escola já tinha graça, já tinha encontro. Naquele caminhar, Ernesto já tinha lugar.
A história de Ernesto nos faz pensar em quantos meninos e meninas-polvo encontramos na vida, em casa, na escola, na rua. O que será que elas estão querendo dizer?
No contexto clínico, a pergunta sobre o sintoma da criança assume muitas e diferentes formas, e se é verdade que, em algumas situações, essa pergunta nos faz decidir sobre a importância de que se inicie um tratamento, em outras tantas nos faz optar pelo contrário, porque o que a criança conta, com seu sintoma, é de outras necessidades e precisanças.
Quando conversei com a Claudia Mascarenhas sobre o livro, ela me disse que “O Menino Polvo” deve ser a primeira história de uma “coleção despatológica”. A boa notícia é que vem aí uma coleção de livros que pretende enfrentar, junto com as crianças, a patologização da vida e das infâncias. O Menino Polvo vai trazer uma coleção de livros para nos ajudar a pensar e problematizar as estratégias do mundo adulto para evitar a necessária crítica política da nossa época.
Eu perguntei à autora o que tinha motivado uma psicanalista a escrever um livro para crianças, e a resposta foi tão boa que vou transcrever aqui:
Para fazer isso, dessa vez, Claudia entendeu que “a nossa posição ética para a vida precisa atravessar os lugares em que estamos”, e o Menino Polvo chegou em forma de livro. “A ética no cuidado com as crianças, na prática, no encontro com elas, faz com que precisemos enxergar a criança como criança, e, para isso, é preciso estar junto delas, escutar o que dizem e o que fazem.”
Ernesto e as crianças-polvo nos permitem entender que enxergar cada criança é também um jeito de percebermos as múltiplas infâncias.
“O respeito profundo pelas tantas formas de ser criança faz caber cada vez mais gente no mundo”, aposta Claudia, e eu vou com ela.
Entre todas as aberturas que esse livro produz, há uma especial: as crianças foram incluídas na conversa. A oferta de um Menino Polvo para os Ernestos é também uma forma de lhes dar a mão, de lhes oferecer material para enfrentarem as excessivas demandas produzidas pelos adultos apressados. Na nossa conversa, Claudia me disse que, mesmo depois de tantos anos trabalhando com as crianças e com as infâncias, ainda se surpreende com suas sutilezas, com seus jeitos de se dizer e se mostrar.
É verdade mesmo que as crianças têm precisado resistir às nossas demandas de eficiência e, para isso, muitas vezes, se tornam especialistas em construir lugar nos tempos que comprimimos. Ao dar espaço para as invenções de Ernesto, sua tia se deixa surpreender. “E se deixar surpreender”, me diz Claudia Mascarenhas, “é um antídoto contra a previsão”.
“Estamos precisando de coragem para irmos contra a maré, e precisamos aprender com as crianças a deixar lugar para o inusitado”
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“A clínica psicanalítica é um espaço importante para os meninos polvo, e, ao mesmo tempo, é também um espaço restrito, porque a clínica sozinha ‘não existe’. A clínica é um dispositivo entre outros, e, portanto, precisa se engajar com todos os outros como dispositivo de promoção de saúde e de saúde mental” – Cláudia Mascarenhas