Uma década depois de sofrer um atentado, a ativista paquistanesa segue fazendo da palavra sua arma para que todas as meninas possam frequentar a escola
Há 10 anos, a ONU instituiu 12 de julho como o Dia de Malala. Apesar dos avanços e da luta da ativista pelo direito das meninas à educação, o acesso ainda não é universal. Conheça 3 livros para apresentar às crianças a história e a causa de Malala.
“Eu conto minha história não porque ela é única, mas porque é a história de muitas meninas.” A frase foi dita por Malala Yousafzai, quando recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 2014, por sua luta para que meninas tenham direito à educação.
No Paquistão, onde Malala vivia, as meninas eram proibidas de irem à escola. Inconformada, aos 11 anos, começou a relatar as violações de direitos de seu povo para se opor ao regime no poder, formado por um grupo de fundamentalistas islâmicos, o Talibã. Malala fez da palavra sua arma. Ela escrevia sob o pseudônimo de Gul Makai, em um blog no site da BBC, mas ficou conhecida ao revelar sua identidade. Isso trouxe sérias consequências.
Em outubro de 2012, ela e mais duas meninas sofreram um ataque a tiros quando voltavam da escola no vale do Swat, fundada por seu pai. Malala tinha 15 anos. Ficou gravemente ferida na cabeça e passou dias em coma, no Reino Unido, para onde foi transferida depois de socorrida. Foi a primeira vez que saiu de seu país. Meses depois de passar por diversas cirurgias e reabilitação, Malala voltou à escola.
“Qual de vocês é Malala?”, perguntou.
Seu tom era grave, embora não estivesse exatamente esbravejando.
[…]
Mas antes mesmo de terminar a frase, ele reconheceu Malala. Ao ouvir seu nome na voz do estranho, ela tinha se virado intuitivamente na direção dele.
Era a única, entre as meninas, que não tinha o rosto coberto pelo shawl*.
Então ele atirou.
Três vezes!
O primeiro tiro atingiu Malala.”trecho de “Malala, a menina que queria ir para a escola”, de Adriana Carranca
*Shawl é um véu longo, de pontas até o chão, que as mulheres do vale do Swat usam para cobrir o rosto e o corpo ao sair de casa.
Em 2013, um ano após o atentado contra Malala, a ONU (Organização das Nações Unidas) recebeu a ativista paquistanesa em uma conferência. Era 12 de julho, dia do seu aniversário. Na ocasião, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou que ao escolher Malala como alvo, os extremistas mostraram o que mais temem: uma menina com livro.
“Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo” – Malala Yousafzai, em discurso na ONU no seu aniversário de 16 anos
Naquela ocasião foi instituído o Dia de Malala. Após 10 anos, a ativista concluiu sua graduação pela Universidade de Oxford e segue ecoando sua voz, que se junta em coro a tantas outras personalidades e organizações conscientes do poder transformador da educação.
“Diga às meninas de todo o mundo que se tornem Malalas e lutem por educação até que todas possam ir à escola”, pediu Kainat, uma das meninas que também foi atingida no dia do atentado junto da Malala, durante entrevista à jornalista Adriana Carranca.
Para honrar esse pedido de Kainat e ecoar a voz de Malala, o Lunetas selecionou três livros para apresentar a história de Malala às crianças e propor a reflexão do porquê o direito à educação nem sempre é cumprido. Em comum, as obras convidam a pensar sobre representatividade, resiliência, a importância de sonhar e os impactos de regimes autoritários.
A jornalista Adriana Carranca foi ao vale do Swat dias depois do atentado contra Malala. Em uma região onde a imprensa não é bem-vinda, ela se abrigou na casa de uma família paquistanesa. O que viu e viveu lá virou o primeiro livro-reportagem para crianças do Brasil. Ela não sabia como terminaria a história, porque Malala estava entre a vida e a morte. Notas de rodapé ajudam na compreensão do contexto, da cultura e dos costumes locais em linguagem acessível aos pequenos leitores e, no fim, um caderno de fotos registradas nesta viagem, inclusive o quarto da Malala. Para ilustrar a obra, Bruna Assis Brasil usou colagens, fotografias e desenhos, apresentando aos leitores lugares onde se passa a história.
Primeiro livro infantil da autora, conta a história de sua luta pela educação a partir das memórias de infância. Seu sonho quando criança era ter um lápis mágico que realizasse desejos. Quando seu direito à educação foi posto à prova, entendeu que poderia provocar mudanças reais no mundo. Esta narrativa aproxima as crianças da história de Malala de forma leve, sem deixar de falar sobre os conflitos, a pobreza e a discriminação de gênero de sua terra natal. É um convite a conversar sobre a importância de lutar pelos próprios direitos e nunca deixar de sonhar.
Esta edição da autobiografia de Malala é ilustrada e adaptada aos jovens leitores, de 8 a 12 anos, conforme sugestão da editora. Com suas próprias palavras, ela conta sobre sua vida antes da chegada do fundamentalismo religioso ao seu território, sobre como levantou a voz para defender seus direitos e quais foram as consequências. “Saí da minha adorada casa no Paquistão naquela manhã — planejando voltar para a cama assim que chegasse da escola —, mas fui parar a um mundo de distância.” A obra traz uma linha do tempo e um glossário que ajuda a entender o contexto, termos e costumes.
Guerras, desastres naturais e pobreza extrema são os principais motivos que impedem crianças de frequentar a escola ao redor do mundo. Quando se trata das meninas, questões como trabalho infantil, casamento precoce e gravidez, além de discriminação de gênero motivada por questões culturais, políticas ou religiosas, compõem a barreira à educação.
Atualmente, 118,5 milhões de meninas estão fora da escola no mundo, de acordo com o “Global Education Monitoring Report”, da Unesco. Em 2000, eram mais de 200 milhões. O maior número de meninas privadas de seu direito de estudar está em países da Ásia e da África. Como indica o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) Nações Unidas, 1 a cada 4 meninas não frequenta a escola nos países em desenvolvimento.
No Brasil, apesar dos importantes progressos desde que a educação foi considerada um direito de todos em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Fundo Malala estima 1,5 milhão de meninas fora da escola.
“A educação das meninas pode transformar o mundo”, afirma Ana Nery Correia Lima, especialista em gênero e inclusão da Plan International Brasil, organização que promove os direitos das crianças e a igualdade para as meninas. Interromper os estudos compromete o futuro que desejam construir: elas querem fazer faculdade e sonham com uma carreira, não apenas um emprego. “Não há como ter uma sociedade justa e igualitária sem olhar para a educação com foco nas questões de gênero e raça”, afirma Lima.
No Brasil, 64,6% das meninas consideram que as atividades que realizam hoje as levarão ao futuro que desejam, mostrou a pesquisa “Por ser menina”, realizada pela Plan International, em 2021. Segundo o Fundo Malala, meninas instruídas resultam em mais mulheres atuantes no mercado de trabalho, com potencial para adicionar até 12 trilhões de dólares ao crescimento global. Além disso, maiores níveis educacionais das mulheres estão relacionados a menores taxas de fertilidade, revelou um estudo da Brooking Institution, em 2017.
A educação é um dos meios – ou a única solução, como afirmou Malala em seu discurso na ONU – para quebrar ciclos de pobreza, gerar renda e garantir uma vida digna. Mas, além de garantir o acesso, é preciso batalhar pela qualidade e pela permanência das meninas na escola, comenta Lima. “Se uma menina, sobretudo negra, consegue concluir os estudos e desenvolver uma carreira é porque toda uma estrutura social mudou e ofereceu as condições necessárias”.
Contudo, no ritmo atual, os líderes não alcançarão educação universal de qualidade no prazo até 2030, estipulado pela Agenda para o Desenvolvimento Sustentável proposta pela ONU. Entre os 17 objetivos para orientar ações globais com foco em acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e garantir condições dignas a todos os cidadãos, a educação de qualidade está em déficit. Segundo um boletim produzido pelo Fundo Malala, em 2022, “as taxas atuais de progresso indicam que ainda estamos a 100 anos da educação para todas as meninas”.
Essa emergência global na área de educação terá impactos devastadores nas próximas gerações, principalmente enquanto meninas e jovens mulheres permanecerem privadas do direito de frequentar a escola, um dos primeiros espaços de socialização da criança com o mundo. Como as crianças reagiriam ao saber que alguém que quer ir à escola não pode simplesmente porque é menina?
O Fundo Malala é uma organização sem fins lucrativos criada em 2013 por Malala e seu pai, Ziauddin Yousafzai. Atua em nove países, entre os quais o Brasil, apoiando projetos em defesa da educação e do empoderamento de meninas para criar as lideranças do futuro. O Fundo Malala defende 12 anos de educação segura, gratuita e de qualidade para cada menina.