Começar uma conversa com as crianças sobre a morte, por que as pessoas vão embora e as coisas chegam ao fim é delicado. Requer sensibilidade e empatia para acessar o estágio de elaboração do mundo em que a criança está. A literatura, por seu potencial de representatividade, pode ajudar muito nestes momentos. Os livros infantis auxiliam a falar sobre a morte com crianças, como clareiras no meio de uma floresta fechada. Precisamos abrir essas clareiras para abordar sobre o fim da vida.
“Pode morrer uma ideia, uma certeza, uma pessoa. Nos começos e nos finais de tudo, tem morte. E cada recomeço está repleto dos vestígios daquilo que passou. A morte é ciclo. É ao mesmo tempo da vida, do susto, do mistério. Natural, inevitável, tabu, susto, vendaval. A morte é o que não conseguimos dizer. Que coisa estranha é esta. Está em tudo, e mesmo assim fugimos dela todos os dias.”
“As crianças não entendem e os adultos ignoram, e nesse movimento amedrontado, crescemos traumatizados antes mesmo de vivenciar o trauma”
A seguir está uma lista de livros infantis para introduzir o tema da morte com leveza, lirismo e sensibilidade. Dessa forma, ajudar a naturalizar o assunto com as crianças, e desconstruir medos e tabus em torno do tema.
Livros para falar sobre a morte com crianças
Certeza, certeza absoluta, ninguém tem sobre a questão “para onde vamos quando desaparecemos”. Seja como for, se algum dia você ficar em dúvida se é possível falar de morte com poesia e brincadeira, a resposta é este livro. Escrito por Isabel Minhós com ilustrações de Bernardo P. Carvalho, o livro joga cor e luz sobre um tema tão castigado pela sombra do desconhecido. Um narrador imaginário faz perguntas sobre todas as coisas, como “por que nossas meias desaparecem tão misteriosamente” ou “pra onde vai a areia da praia varrida pelo vento e o barulho quando tudo silencia”. Afinal, quando já não estivermos aqui, quem vai cuidar das nossas coisas? Dúvidas muito possíveis do ponto de vista de quem ainda está elaborando a complexidade do mundo. Isabel mantém sua marca bem-sucedida de tirar o peso das coisas. Este livro parece caber perfeitamente na definição do crítico português Luís Almeida Eça: “Um livro que ajuda a crescer”.
A obra aborda a morte de um ente querido de forma leve e delicada. No início da história, a lagarta, que é uma amiga muito querida de todos os insetos de um jardim, morre. Então, seus amigos têm uma série de dúvidas sobre o futuro sem a lagarta, como os sentimentos e as lembranças em relação à amiga. De forma simples e acolhedora, os autores propõem aos leitores uma série de reflexões sobre a morte.
Em “Íris”, da escritora alemã Gudrun Mebs, a morte chega com uma certa secura indispensável, como alguns acontecimentos da vida que nos atingem com a força de um furacão. A morte, às vezes, é esse furacão. É preciso pelo menos não ignorá-lo para sobreviver a ele. Se as imagens do livro feitas pela espanhola Beatriz Martín Vidal são puro lirismo e simbologia, a linguagem é mais incisiva. Apesar de não se tratar propriamente de um livro ilustrado, as imagens guardam a delicadeza de que o texto desvia: Íris está doente e quem vivencia a iminência da perda é sua irmã mais nova. A doença é metaforizada por flores de pétalas azuis que vão brotando do corpo da menina e pouco a pouco se apropriando dela. A morte, em Íris, é mais um movimento em torno da vida, e vai viravolteando através das percepções da menina: a cama vazia, o silêncio dos pais, a melancolia do avô.
Duas irmãs, Serena e Curiosa, observam a vida pela janela. Ao olhar os ciclos da natureza, elas conversam a respeito de uma série de temáticas relacionadas às fases da existência, da vida à morte. O livro marca a estreia da cantora e compositora Anelis Assumpção na literatura, que homenageia sua irmã, Serena Assumpção. Em sua escrita, a autora busca de forma lírica e poética estimular o leitor a compreender as razões das coisas, dentre elas, a finitude.
Escrito depois da partida do marido da autora Dulce Rangel, o livro evidencia temas como o luto e a saudade, na tentativa de elaborar emocionalmente dores e pensamentos diante da ausência de alguém e oferecer apoio ao longo do processo de reconstrução interna. Como lidar com a partida de alguém querido? Como encarar a solidão que vem depois que um ser amado parte para não voltar? Será que fiz algo errado ou deixei de fazer alguma coisa? Os desenhos aquarelados de Maria Diva que acompanham o texto fazem um contraponto delicado e sugestivo a cada fase desse processo, com espaços em branco e “silêncios” convivendo com cores que surgem aos poucos. Gradualmente, descobrimos como encontrar dentro da gente maneiras de guardar o que de melhor deixou quem partiu, resgatando o essencial dos laços afetivos. Encarando a ausência de modo lúdico e até mágico, “Onde Está Você” guia o jovem leitor numa jornada interior pelos caminhos da saudade.
Escrito por Renata Penzani e ilustrado por Renato Alarcão, o livro trabalha o tema da morte com a naturalidade do ponto de vista da criança, apostando em sua capacidade de elaborar metáforas e alegorias a partir da fantasia. Como o personagem percebe a morte na infância? Como ele vê os adultos que fogem do assunto? Cícero é um menino de 11 anos que precisa lidar com sentimentos desconhecidos. Sem saber o que é o amor, ele pensa estar apaixonado por Dona Maria, uma senhora que vive perto da sua casa. É a partir da relação de improvável identificação e afeto entre os dois que surge a oportunidade de aprender sobre o tempo das coisas e também das pessoas. A linguagem mistura elementos do imaginário e da realidade, e não faz concessões ao nomear sentimentos difíceis, como o luto e a tristeza. Finalista do Prêmio Barco a Vapor (2016), e vencedor do Prêmio Cepe Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (2017), “A coisa brutamontes” reforça a importância de desconstruir tabus.
A escritora lituana Agné Bruziene perdeu suas duas avós em menos de dois meses. Para reagir à dor, ela compôs essa história – texto e ilustrações. Por sua referência a um acontecimento real, ainda latente na vida pessoal de quem conta, valoriza-se a importância de transformar o livro infantil em um espaço de reconhecimento e identificação. Um lugar onde a criança possa elaborar sentimentos que ainda não conseguiu entender, como o medo de abrir os olhos e encontrar à frente um dia carregado de sensações ruins. “Gosto do modo como Agné enfrenta a depressão: olha fundo nos olhos dela e é transparente ao nos falar disso. Suas imagens são fortes e até duras. Você sente a dor dela e o esforço para entender o que se passava, com palavras afiadas, sempre no lugar certo”, conta a editora da edição brasileira Dani Gutfreund.
O autor Wolf Erlbruch faz neste livro uma espécie de fábula sobre a morte. Na história, o Pato é o escolhido para ser levado da vida. Em uma narrativa naturalista e singela, a Morte chega para buscá-lo e o encontra cheio de dúvidas e questões pessoais. O Pato não quer ir embora. Não demora para que os dois se tornem amigos, passando a compartilhar experiências que só alguém muito vivo pode conhecer. É dessa amizade incomum que “O Pato, a morte e a tulipa”parte para sugerir ao leitor a pergunta: afinal, para onde vamos?
“Sabe passarinho – o urso disse -, você não acha curioso que todas as manhãs sejam “esta manhã”? Foi assim ontem e anteontem. Amanhã teremos outra manhã e novamente depois de amanhã… E todas elas certamente serão “esta manhã”. Estaremos sempre “nesta manhã”. Sempre juntos. Não é? É com esse arroubo de lirismo que o livro começa. Um urso que reflete sobre a aparente monotonia da vida e de repente: PUM! Perde o melhor amigo. Então, ele entende que algumas manhãs nascem diferentes. Dos japoneses Kazumi Yumoto e Komako Sakai, a história é muito maior do que as palavras que a contam. A narrativa cheia de poesia é quase um ninar, e vai embalando o leitor num movimento de elaboração do luto: o urso não se contenta com as palavras de apoio que recebe dos outros, ele tem seu tempo de entender o acontecido e é só quando esse tempo chega que a história parece se justificar. Mais que um presente para uma criança que perdeu alguém, um livro para ensinar os pequenos desde sempre que cada manhã é sim diferente da outra, mas todas são inevitáveis.
*As descrições sobre cada livro foram elaboradas a partir de material disponibilizado pelas próprias editoras e pela curadoria do site Garimpo Miúdo.
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