Mais de uma entre quatro mortes na primeira infância estão associadas a riscos ambientais
Mais de uma entre quatro mortes de crianças na primeira infância são associadas a riscos ambientais. Os impactos aumentam dependendo da cor, grupo étnico e classe social.
Mais de uma entre quatro mortes de crianças até cinco anos estão direta ou indiretamente relacionadas a riscos ambientais. Este e outros dados sobre o impacto das mudanças climáticas para esta faixa etária são apresentados no levantamento da OMS (Organização Mundial da Saúde) “Poluição atmosférica e saúde infantil: prescrevendo ar limpo”, publicado em 2018. O documento também indica que 93% das crianças do mundo vivem em ambientes com níveis de poluição do ar acima do recomendado pela organização. No Brasil, essa tem sido a causa da morte, por ano, de pelo menos 633 crianças na primeira infância. Como a justiça ambiental se relaciona com isso?
“Se os adultos são afetados pelas mudanças climáticas, as consequências para crianças e adolescentes são ainda mais intensas”, afirma a advogada do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, Thais Dantas.
Pela primeira vez, evidências científicas indicaram que os poluentes presentes no ar atingem a placenta após passar pelos pulmões e cair na corrente sanguínea. Pesquisadores da Universidade Queen Mary, no Reino Unido, defendem que a exposição de gestantes e bebês à poluição eleva o risco de mortes fetais e agrava o risco de mortalidade infantil, além de ocasionar doenças respiratórias crônicas e doenças pulmonares.
Outro estudo britânico relacionou passeios em carrinhos a maiores níveis de exposição dos bebês à poluição do ar (60% maior que adultos) nas grandes cidades, por estarem no mesmo nível do escapamento dos carros.
É no contexto dos riscos e impactos das mudanças climáticas, somados a outras crises ambientais, que a advogada Thaís Dantas destaca o princípio da justiça ambiental e intergeracional, que defende que o Estado e os indivíduos têm o dever de responder aos anseios das gerações presentes sem comprometer as necessidades das gerações futuras.
“Diversos estudos internacionais correlacionam a maior vulnerabilidade das crianças no cenário das crises ambientais, desde os efeitos diretos ocasionados pelo aumento das ondas de calor e doenças por conta de mudanças climáticas até os efeitos indiretos, como os deslocamentos por estados que causam evasão escolar e perda dos vínculos com a comunidade”, afirma a advogada.
O cenário das migrações decorrentes do clima expõe um dos grandes desafios da agenda ambiental: o desequilíbrio de poder entre países. Enquanto alguns se beneficiam – geralmente os próprios formuladores das principais políticas ambientais e industriais -, outros pagam o preço.
Atualmente, de acordo com o Inventário de Migração Internacional 2019, conjunto de dados divulgados pela Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais (DESA) da ONU (Organização das Nações Unidas), o número de migrantes internacionais alcançou 272 milhões de pessoas em 2019. Deste número, 14% correspondem a menores de 20 anos. Entre as causas mais significativas deste deslocamento forçado da população está a mudança climática, que tem dado sinais cada vez maiores de aquecimento global pela concentração de gases de efeito estufa, segundo o relatório mais recente da Organização Metereológica Mundial (OMM).
Ambos os documentos apontam que as populações de países mais pobres, especialmente as que dependem de meios de subsistência pastoril, da agricultura e do acesso direto aos recursos naturais, por viverem em territórios isolados ou de difícil acesso, são as mais prejudicadas pela crise climática, caso das regiões áridas e semiáridas da África, afetadas pela desertificação.
Da mesma forma que as migrações decorrentes da crise climática, situações como o vazamento de petróleo que atinge o litoral do Nordeste há quase 60 dias trazem consequências desiguais para grupos distintos. Os filhos de turistas paulistanos que desfrutam das praias e as famílias de pescadores locais não sofrem do mesmo modo com essa realidade. Isso, porque, de acordo com os especialistas consultados pelo Lunetas, os riscos e impactos das crises e dos desastres relacionados ao meio ambiente são desigualmente distribuídos entre a população.
Afinal, sobre quem recai o ônus do desenvolvimento baseado na exploração desenfreada de recursos naturais, no desmatamento, na agricultura movida por agrotóxicos? Onde são instalados os empreendimentos que mais poluem e depositam rejeitos tóxicos? Em quais regiões das grandes cidades estão localizados os lixões e as piores condições de saneamento?
A resposta a esses questionamentos vincula degradação ambiental e injustiça social como processos correlatos e que se retroalimentam. Essa relação tem sido denunciada pelo menos desde os anos 80 pelo Movimento de Justiça Ambiental, nascido nos Estados Unidos.
Em 1987, uma pesquisa realizada pela Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ mostrou que “a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial em uma área”. Os resultados levaram o reverendo Benjamin Chaves a cunhar a expressão “racismo ambiental” para tratar da “imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos às comunidades de cor”.
A história da luta por justiça ambiental, que uniu perspectivas das demandas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis, é explicada pelo pesquisador e professor do Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ), Henri Acselrad, no artigo “Justiça ambiental e construção social do risco“.
Entre os fatores que explicam o racismo ambiental, Acselrad aponta a disponibilidade de terras baratas em comunidades vulneráveis, a falta de oposição da população local por fraqueza organizativa e carência de recursos públicos, a seletividade dos investimentos e a estigmatização social, a dificuldade de mobilidade e a sub-representação dessas minorias em órgãos e agências governamentais responsáveis por decidir a localização dos rejeitos.
As consequências do extrativismo minerário no Brasil são dos maiores exemplos a colocar em xeque a ideia de que os desastres ambientais são distribuídos igualmente, afetando da mesma maneira grupos racial e socialmente variados. Um levantamento de dados realizado pelo Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sobre o rompimento da barragem de rejeito de Fundão da Samarco Mineração, no município de Mariana, Minas Gerais, indicou que a carga dos riscos e dos impactos sociais ambientais recai principalmente sobre a população negra e indígena.
A pesquisa seguiu o rastro de destruição da lama oriunda das barragens da Samarco para identificar o padrão racial da população nos três povoados dos territórios que mais apresentaram perdas humanas, impactos materiais, simbólicos e psicológicos: Paracatu de Baixo, em Mariana (80% de população negra); Gesteira, no município de Barra Longa, às margens do rio Gualaxo do Norte (70,4%) e a sede municipal de Barra Longa (60,3%), que teve grande parte da cidade inundado pelo rejeito.
“Há uma tendência de intensificação do predomínio de população negra quanto maior a exposição às situações de riscos relacionadas à proximidade com a exploração mineral de ferro e das barragens de rejeito da Samarco”, afirma o estudo.
Portanto, são essas as infâncias mais afetadas, considerando que entre as consequências desse tipo de desastre estão a escassez de água em virtude da contaminação dos rios, deslocamento de famílias desabrigadas para outras regiões, estudantes sem aula, doenças e falta de atendimento médico adequado.
“É angustiante acompanhar as notícias sobre o clima e perceber que o futuros dos filhos está em jogo”, diz Mariana Menezes, ativista do movimento Famílias pelo Clima (Parents for Future, internacionalmente). Mãe de três filhos, ela faz parte daqueles que não aguentaram ficar de braços cruzados diante das tragédias ambientais que têm ocorrido de forma cada vez mais frequente.
Para Mariana, a crescente liderança de jovens engajados neste tema é inspiradora, como a atuação internacional da sueca Greta Thunberg, que tem se tornado uma das principais vozes de cobrança das autoridades internacionais sobre assuntos climáticos.
Em setembro de 2019, o Brasil também se tornou alvo da ativista, quando foi acusado, junto a outros quatro países (França, Alemanha, Argentina e Turquia), de não fazer o suficiente para combater o aquecimento global. A queixa foi apresentada à ONU, durante a Greve pelo Clima, em conjunto com outros 15 jovens ativistas, por meio do Comitê dos Direitos da Criança. Eles pedem que países criem medidas para proteger as crianças dos efeitos da crise climática. (Não deixe de ler: ‘Nós também queremos ter direito ao futuro’, diz Catarina Lorenzo)
Esse também tem sido o esforço do movimento Famílias pelo Clima, que está se estruturando no Brasil. O grupo está organizando ações políticas para pressionar o poder público, influenciar formadores de opinião, além de exigir que empresas assumam responsabilidades na garantia de direitos, especialmente das populações mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos.
Para que se possa equilibrar de fato a balança de riscos e impactos, Thais Dantas defende que as políticas públicas e recursos destinados ao meio ambiente sejam mantidos. “O Brasil conta com plano de enfrentamento a mudanças climáticas, ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado, por exemplo, mas estamos diante de uma violação sistemática, com graves cortes de investimentos nesta área”, denuncia a advogada.
Sobretudo, ela recorda que, dentro de qualquer temática, por apresentarem condições peculiares de desenvolvimento que as tornam mais vulneráveis, crianças e adolescentes precisam de proteção integral, condição assegurada pela Constituição, devendo ser o principal foco da formulação destas políticas.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Artigo 227, Constituição Federal).
E se por um lado é urgente a implementação dessas normas, por outro é indispensável que se considere a relação entre a degradação ambiental, racismo estrutural e desigualdade social, considerando que riscos e impactos ambientais afetam seletivamente territórios e populações.
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O Prioridade Absoluta é um programa do Instituto Alana criado com a missão de dar efetividade e visibilidade ao Artigo 227 da Constituição Federal do Brasil, que estabelece os direitos e o melhor interesse de crianças e adolescentes como absoluta prioridade das famílias, da sociedade e do Estado.