Como a intolerância religiosa afeta os direitos das crianças?

Educação laica e antirracista pode ser uma das chaves para garantir o combate ao racismo religioso e a proteção das crianças de terreiro

Camilla Hoshino Publicado em 21.01.2022
Foto em preto e branco mostra uma criança com turbante branco enrolado na cabeça, e pele pintada com pontinhos brancos. Ela está deitada de bruços no chão, com as palmas das mãos unidas.
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Resumo

Dia 21 de janeiro marca o combate à intolerância religiosa. Com casos crescentes de agressões a famílias de comunidades tradicionais de terreiro, é urgente discutir os impactos às crianças, buscando caminhos de proteção e garantias ao seu pleno desenvolvimento.

Apesar dos 12 anos, Ykharo Miranda de Oliveira impressiona pela força e precisão com que ensaia batuques no balde de plástico, manifestando um gesto ancestral de convite aos Orixás. Talvez a ginga seja herança do pai, que está à frente dos atabaques no terreiro de candomblé Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, em Curitiba (PR). Em meio à brincadeira e à alegria da festa, o menino confessa aos mais velhos que quer se tornar promotor de justiça para defender o seu povo. “De onde veio isso?”, questiona o pai de santo Ubaldino Teixeira Bomfim. 

“Porque vidas negras importam”

A motivação de Ykharo pode ser comum a de muitas crianças de religiões de matriz africana, que presenciam ataques em seus terreiros ou são vítimas de intolerância religiosa em espaços de convívio, como escolas, pracinhas públicas ou postos de saúde. A pesquisadora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), Paola Odònílé, autora do livro “Nascer do rio: o direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente no terreiro de candomblé da Ìyálórìxà Idjemim”, conta que a omissão em casos como esses pode levar crianças ao abandono dos estudos, ao isolamento e à depressão. “A intolerância religiosa viola muitos direitos da criança, entre eles o direito à liberdade, à educação, à saúde, ao lazer e à convivência familiar e comunitária”, afirma. 

Dia de Combate à Intolerância Religiosa
Faz 22 anos desde a morte da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, em Salvador (BA). Vítima de atos de racismo religioso após ter sua foto publicada num jornal, Mãe Gilda teve sua casa atacada, seus filhos de santo foram agredidos, e ela sofreu um infarto no dia 21 de janeiro. A data ficou registrada no Brasil como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituída pela Lei 11.635/2007.

O cenário jurídico marcado pela Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre outros dispositivos nacionais e internacionais, garante a proteção da criança enquanto sujeito integral, prevendo seu direito à liberdade, tanto de crença quanto de culto. Apesar disso, de acordo com Paola, os mecanismos do poder público ainda são insuficientes para evitar os prejuízos da intolerância religiosa às crianças. “Precisamos do cuidado conjunto entre as famílias, a sociedade e o Estado”, diz. 

Racismo, o componente nuclear da intolerância religiosa

Entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre de 2019, o Brasil registrou uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas, segundo dados do extinto Ministério dos Direitos Humanos. O balanço do Disque 100 também aponta que os casos de agressão a comunidades tradicionais de terreiro foram crescentes ao longo dos anos. Em 2018, de 506 denúncias, 152 tinham praticantes da umbanda, candomblé ou outras religiões de matriz africana como vítimas, e 261 sem religião informada, o que muitas vezes revela o medo de identificar-se. Como relata o babalorixá e Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela FFLCH-USP, professor Sidney Barreto Nogueira, no livro “Intolerância religiosa”, considerando a invisibilidade, a marginalização e a vergonha de grupos em assumirem ser praticantes de tradições religiosas de origem africana, é possível estimar que 80% do total das denúncias sejam relativas a comunidades tradicionais de terreiro. Ele usa o termo “racismo religioso” para nomear um processo histórico de exclusão e negação dessas religiosidades. 

 “O racismo atua no apagamento de tudo cuja origem for ligada à identidade afro-brasileira”

A pesquisa publicada em 2017 pelo professor e babalorixá Patrício Carneiro Araújo, no livro “Entre ataques e ataques: intolerância religiosa e racismo nas escolas”, não deixa dúvidas de que a vergonha também é uma barreira para a afirmação da identidade das crianças.Ao investigar cinco escolas estaduais em São Paulo, com 315 alunos e 59 professores (374 informantes), ele não encontrou adeptos das religiões de matriz africana, exceto por um aluno da Escola Estadual João XXIII. O que chama atenção é o fato de as escolas visitadas estarem justamente em bairros com terreiros que abrigam grande população de pessoas em idade escolar. 

Racismo religioso nas escolas

As suspeitas de Patrício Araújo vão ao encontro dos relatos apresentados pela doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Stela Caputo Guedes, autora do livro “Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé”. Para ela, o conceito de intolerância é insuficiente para descrever as agressões às crianças, caso de Joyce de Iemanjá que, aos 13 anos, lhe relatava insultos raciais que recebia na escola por ser iniciada em sua religião. 

“A principal dificuldade é o racismo que leva à ausência de laicidade nas escolas, normalizando a escola branca e cristã, e expulsando as religiões negras”, diz Stela. Para ela, a única forma de garantir escolas livres de discriminação é travar uma luta cotidiana por uma educação antirracista e laica. 

A implementação da Lei ​​10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, pode ser um caminho rumo ao respeito às crianças de terreiro. Isso não significa, no entanto, tratar do assunto apenas no mês da consciência negra, em novembro, ou em datas comemorativas. “Precisamos de projetos pedagógicos anuais, que tragam as referências dessa cultura para o dia a dia das salas de aulas, possibilitando que essa educação se expanda para a sociedade”, defende Paola Odònílé. 

Convivência comunitária e rede de apoio

Owó omodé ò tó pepe; ti àgbàlagbà kò wo akèrègbê.” Diz o provérbio yorubáque a mão da criança não alcança uma prateleira alta, mas a mão do adulto não entra pelo pescoço da cabaça. No candomblé, assim como em outras religiões de matriz africana, a criança aprende por meio de relações de cooperação e interdependência com os mais antigos da casa. “Tudo é ensinado em seu tempo”, garante Mãe Nilce de Iansã, coordenadora da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro). 

Do preparo ritualístico das comidas até o xirê, as crianças aprendem mais pela palavra cantada ou pelas brincadeiras que pela escrita, vivenciando o modo de vida africano por meio de uma dinâmica que não atropela as etapas da vida. 

“Repassamos os saberes ancestrais do nosso povo para que as crianças possam proteger os mais velhos e a si mesmas”

A atenção oferecida às crianças é a garantia de sobrevivência das memórias dessa ancestralidade às próximas gerações, bem como de fortalecimento de uma identidade religiosa hostilizada em outros espaços de convívio, como a própria escola. Iyaegbêde uma casa de candomblé com mais de meio século de história, o Ilê Omolu Oxum, no Rio de Janeiro, Mãe Nilce lamenta que muitas crianças ainda tenham vergonha de usar seus fios de conta ou roupa branca na última sexta-feira do mês, em homenagem a Oxalá, ambos símbolos de proteção para a sua tradição. “A intolerância religiosa é um determinante da saúde das crianças”, alerta. 

Para grande parte dessas famílias, o terreiro passa a ocupar um lugar que vai além dos cultos e do ensino religioso, mas de escuta e acolhimento em casos de problemas de saúde, financeiros e até intrafamiliares. Em muitos casos, como relata Mãe Nilce, os “irmãos e irmãs de santo”, iniciados nas casas de candomblé, se tornam rede de apoio para mães solo, vítimas de violência doméstica ou até adolescentes LGBTQIA+ expulsos de casa. 

“O terreiro também acolhe adultos e crianças que estão em situação de risco, orienta e encaminha para algum órgão, quando necessário”

Mãe Nilce enfrenta o cenário crescente de agressões a seu povo como quem carrega uma missão educadora: “Converso com as crianças sobre bullying, racismo e como elas podem se proteger, mostrando sua religião com respeito” – afinal, “mãe” e “pai de santo” não receberam o nome à toa. Para ela, a mensagem esperançosa neste dia 21 de janeiro é a de que combater a intolerância religiosa também significa preservar a vida e o desenvolvimento integral das crianças pertencentes a comunidades tradicionais de terreiro e, sobretudo, evitar o apagamento de uma cultura fundante do país. Dos antepassados aos que ainda estão por nascer, todos somos herdeiros e corresponsáveis pelo dom precioso da vida.

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