Athena escreveu o próprio nome pela primeira vez aos dois anos de idade. Aconteceu tudo muito rápido. Ela viu a irmã mais velha, de sete anos, colocar o nome num desenho e resolveu copiar. “Foi um susto”, lembra o pai, Daniel Silveira, 41. No entanto, a menina já tinha dado outros sinais de que era uma criança superdotada.
Em primeiro lugar, ela tinha menos de seis meses quando começou a tentar articular palavras. Em vez de chorar, sinalizava o que queria. Com quase dois anos, já andava ereta, com equilíbrio e era capaz de fazer toda a compra sozinha em um comércio, se os pais deixassem. “Toda semana aparece uma coisinha nova e a gente se diz: ‘pera aí, não era para você já estar fazendo isso!”, lembra o pai.
Constantemente, escutavam o questionamento: “uma criança dessa idade fazendo isso?”. Foi então que Silveira e a esposa, Daniela Macário, 39, resolveram levar a menina a uma neuropsicóloga. Após uma série de testes e avaliações, veio a confirmação: Athena tem um QI (quociente de inteligência) acima da média. Assim, ela pode ser considerada uma criança superdotada ou superinteligente.
A psicóloga Denise Arantes-Brero, diretora do Núcleo Paulista de Atenção à Superdotação e ex-presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD), explica que a condição não é uma doença, nem transtorno ou deficiência. Mesmo assim, além de permitir o acompanhamento profissional adequado, quanto antes identificar essas altas habilidades ou superdotação, mais fácil poderá ser o desenvolvimento pedagógico e relacional da criança.
Características mais comuns entre crianças superdotadas
Como perceber se a criança é superdotada?
Para ter a certeza da superdotação, é preciso passar por testes que são solicitados por um neuropsicólogo. Além disso, os protocolos desses testes devem atender diretrizes da Resolução CFP nº 009/2018, que regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI). O ideal é uma avaliação multidisciplinar.
Existem exames para criatividade e capacidade de foco. Porém, os mais conhecidos são os testes de QI, que medem o potencial intelectual de acordo com a média por idade. Neles, há uma escala que avalia habilidades em matemática básica, raciocínio ou lógica. Assim, aqueles com QI acima de 140 são superdotados. Enquanto os que atingem mais de 180 de QI são considerados gênios. Especialistas consideram superinteligentes ou superdotados aqueles que estão na faixa dos 5% melhores resultados.
Quando a criança tem alguma doença de saúde mental e a superdotação, há a dupla excepcionalidade, ressalta Rodrigo Sauaia, presidente da Mensa Brasil, entidade que reúne pessoas com altas capacidades intelectuais. Consequentemente, segundo ele, é comum confundir as características com autismo ou hiperatividade.
O que fazer depois da descoberta?
Embora crianças a partir dos dois anos e meio de idade possam fazer testes para superdotação, a maioria dos diagnósticos vem por volta dos sete anos. O caso de Athena é raro. Com o diagnóstico, a família começou a preparar o entorno para lidar com as minúcias de ter uma filha superdotada.
A primeira decisão foi garantir o espaço para o fracasso e a frustração, “como acontece na vida de todo mundo; na dela não seria diferente”, diz o pai. A medida também procurava evitar comparações. “Para ela não pensar que por ser superdotada precisa ser a melhor em tudo.”
O desafio é estimular as potencialidades e equilibrar o cuidado para que a criança não adoeça pela cobrança ou superexposição às quais foi submetida. Athena entende as coisas rápido e o ritmo com que aprende novas habilidadess é surpreendente”, diz Silveira. Por isso, eles já a incentivaram a diferenciar cores, identificar letras, a montar quebra-cabeça, como forma de “gastar o tempo”. Mas, se você não parar para ensinar, ela não aprenderá.”
Entre o acolhimento e o respeito ao ritmo acelerado
Segundo Sauaia, é comum que se coloque muita pressão em cima de crianças com altas habilidades e superdotação, o que pode ter impactos negativos na autoestima e no desenvolvimento socioemocional delas. “Muitas vezes, a transferência de expectativas dos próprios pais em vez de ajudar, prejudica a criança”.
Por isso, é preciso evitar o isolamento e o bullying na escola, por funcionarem diferente da média da população. Nesse sentido, ele recomenda que a família envolva as crianças no convívio com outros meninos e meninas superdotados.
Para Arantes-Brero, “é preciso estimular o desenvolvimento saudável focando não só nas facilidades, mas apoiando o desenvolvimento global e auxiliando no desenvolvimento das áreas que podem estar mais fragilizadas”. Recomenda-se, então, cuidar para não elevar as expectativas e respeitar o ritmo da criança.
“Apesar de terem algumas facilidades, essas pessoas são como todas as outras e também têm dificuldades”, afirma a psicóloga. “Pessoas superdotadas são altamente sensíveis e precisam se sentir amadas como são, com suas forças e fragilidades.”
Lidar com a frustração é o ponto principal
O neuropsicólogo e pedagogo Damião Silva, especializado no atendimento de crianças com altas habilidades e superdotação, explica que elas geralmente apresentam um desenvolvimento assíncrono entre o raciocínio lógico e as emoções. “Crianças superdotadas podem pensar como um adulto, mas também podem agir como uma criança muito mais nova.”
Para Juliane Bitar, mãe de Theo, 7, pesquisar sobre as particularidades de quem tem superdotação e altas habilidades foi essencial. Antes da conclusão do laudo do filho, ela percebeu que, além da inteligência acima da média, o menino também se cobrava muito. “Como ele ainda não sabe lidar muito bem com as emoções, as frustrações são mais difíceis. Tudo tem que sair como planejado”, conta.
Para amenizar a autocobrança de Theo e entender de que forma isso atingia a autoestima dele, a escuta foi a melhor maneira. “Como ele tem muitos hiperfocos e paixões, preciso entender o grau de envolvimento, como a escola. Explico os contras que a ansiedade pode gerar e peço para desacelerar, dando sempre outras opções.”
É fundamental que a família acolha suas dificuldades, respeitando o tempo e as emoções muitas vezes exageradas, assim como seus conhecimentos. “Às vezes, essas crianças são colocadas sob uma grande pressão para alcançar um desempenho excepcional em várias áreas, o que pode gerar estresse e ansiedade”, explica Silva.
É preciso cuidar do emocional das crianças superdotadas
Acompanhar uma criança superdotada requer paciência. Os desafios ultrapassam questões intelectuais; estão relacionados também às dificuldades emocionais que ela enfrenta, uma vez que a sensibilidade e a intensidade de quem tem superdotação são mais aguçadas. Por isso, o neuropsicólogo Damião Silva sugere caminhos para lidar com eventuais frustrações que afetam o perfeccionismo:
- Usar palavras de incentivo, como “vai passar”, “eu entendo o que você está sentindo e estou aqui para te ajudar”, “pode chorar, depois você me conta o que aconteceu”;
- Esperar que ela se acalme para conversar após uma crise;
- Evitar dar ênfase aos elogios e buscar lembrar de como ela superou desafios e sentimentos;
- Encorajar o processo, não o resultado final;
- Sempre mostrar o lado positivo, apontando os ganhos que ela pode ter com pequenas decepções;
- Pesquisar sobre educação emocional para reconhecer sentimentos básicos como raiva, decepção e tristeza;
- Dar exemplos de vivências deles mesmos ou de amigos, explicando que são sentimentos normais que vão acompanhá-la até a velhice e que todos precisam lidar;
- Oferecer apoio e deixar claro que sempre haverá alguém disponível para acolher a criança, independente do resultado.
Como é o ensino para crianças superdotadas?
Conforme a Lei nº 9.394 de Diretrizes e Bases (LDB), o Estado é responsável pelo atendimento educacional especializado gratuito a esses estudantes. Portanto, cabe ao MEC manter e gerenciar os Núcleos de Atividades de Altas Habilidades e Superdotação (Naahs), nas secretarias de educação de alguns estados.
De acordo com o Censo Escolar de 2020, mais de 24 mil estudantes estão matriculados na educação especial por se encaixarem no perfil de altas habilidades. Mas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 5% da população tem algum tipo de alta habilidade ou superdotação, esse número pode chegar a 2,3 milhões de alunos, segundo o Ministério da Educação (MEC).
Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí, Santa Catarina e Pará desenvolvem trabalhos específicos com os alunos, promovem a formação continuada de professores e atendimento familiar. No Pará, por exemplo, 80 estudantes do ensino público têm aulas regulares e, no contraturno, participam de atividades específicas para cada área de conhecimento de suas habilidades, como artes visuais, língua portuguesa, literatura, matemática, música, língua inglesa e ciências naturais e biológicas.
“O programa também envolve a participação ativa dos pais, porque eles devem reconhecer e respeitar as particularidades dos filhos, além de desmistificar o que o imaginário social traz acerca das altas habilidades e superdotação”, explica Liliane Fiúza, diretora do Centro de Atendimento Educacional Especializado da secretaria de educação do estado.
Avançar a série nem sempre é a solução
Para Sauaia, as escolas devem promover o enriquecimento curricular e evitar a frustração. Afinal, é o ponto crítico para o desenvolvimento emocional de alunos com altas habilidades e superdotação. Já que facilmente aprendem o conteúdo das aulas regulares, a vivência escolar pode se tornar monótona e desmotivar o aprendizado. Por isso, “o mais importante é nutrir os talentos e valorizar o potencial cognitivo, sem descuidar do socioemocional e preservar o direito da criança em se desenvolver nas áreas que tem interesse.”
Outra possibilidade é acelerar séries. Porém, isso deve ser previsto sob regras. “Cada caso deve ser analisado de forma rigorosa, com o apoio de especialistas em educação”, diz. Isso porque, além da capacidade cognitiva, ao passar a interagir com pessoas de outras faixas etárias, é preciso acompanhar o desenvolvimento socioemocional da criança.
Athena, por exemplo, poderia estar um ano à frente, mas os pais não pensam em avançá-la. “O mais importante nesse caminho é balancear. Athena ainda não tem sofrimento no aprendizado e também é apaixonada pelos amigos de sala dela. Mas, se chegar uma hora em que ela esteja entediada e deseje pular de série, aí a gente vai querer isso”, afirma Silveira.
* Colaborou para esta reportagem Célia Fernanda.
Fontes: E-book 10 perguntas e respostas para compreender a superdotação e Mensa Brasil
* Esses indícios não são garantia da existência da superdotação nem os superdotados configuram um grupo homogêneo.