Esta semana, em São Paulo, o 'Força de Pai' reuniu homens de diferentes perfis para discutir paternidades possíveis. O Lunetas estava lá e te conta como foi
O Lunetas acompanhou o evento "Força de Pai", que aconteceu em São Paulo nesta terça-feira. Durante o encontro, foram discutidos diferentes aspectos da parentalidade, focando nos diversos perfis presentes, como a paternidade negra e homoafetiva.
Uma frase como a que dá título a esta matéria, no contexto de uma sociedade que ainda culpabiliza e sobrecarrega mulheres em relação à criação dos filhos, ressoa como um fio de esperança. A tal equidade de gênero que tanto buscamos enquanto sociedade, pode não ser afinal uma utopia. Estaremos então diante de uma nova era da paternidade, na qual os pais estão mais conscientes da desigualdade de gênero e se assumem imperfeitos em uma sociedade machista? Por que ainda é preciso tão pouco para ser elogiado como pai, e também tão pouco para ser julgada como mãe?
De autoria do empresário Facundo Guerra, a frase foi dita nesta terça-feira, 6 de novembro, na última edição do evento Força de Pai, que reúne homens para discutir paternidades possíveis. Assim mesmo, no plural.
Idealizado pela coach Kika Moreira, e realizado pelo blogueiro Leandro Zitto, do 4Daddy, o encontro surgiu com o objetivo de acolher a paternidade de diferentes perfis de homens, e propor reflexões sobre o exercício da paternidade nos dias de hoje.
De periodicidade anual, o evento já aconteceu em Belo Horizonte e Goiânia, e agora chega a São Paulo, onde foi realizado na Cervejaria Nacional, em Pinheiros, zona oeste da cidade. Nesta edição, estavam presentes Facundo Guerra, André e Angelo Nunes, Hélio Gomes, Leonardo Piamonte e Rafa Andrade, com mediação de Leandro Ziotto.
Durante o encontro, foram discutidos diferentes aspectos da parentalidade, focando nos diversos perfis presentes, como a paternidade negra, a homoafetiva e a criação de filhos com necessidades específicas. Temas comuns ao desenvolvimento da criança e à vida em sociedade apareceram com força, como racismo, diversidade, educação sexual, bullying, vínculos afetivos e igualdade de gênero na divisão de responsabilidades em casa.
No papel de mediador da roda de conversa, o empreendedor Leandro Ziotto iniciou sua fala pontuando que seu projeto, o 4Daddy, nasceu da dificuldade de encontrar canais de diálogo diretamente com os pais. “Só encontrava matérias que falavam com as mães”.
“Homens não sentam em uma mesa de bar para falar sobre maternidade”
“E quando o assunto aparece, é para fazer piada”, provocou o empresário Facundo Guerra, pai de Pina, de oito anos, referindo-se ao fato de que no convívio social das mulheres, é comum reunir amigas para conversar sobre filhos; por outro lado, ele pontua que homens não fazem mesmo – ou por não terem o mesmo interesse, ou porque serão julgados segundo um padrão de comportamento socialmente construído do que é “ser homem”.
Com uma rotina atribulada à frente de seus empreendimentos que são referência da cidade de São Paulo, Facundo compartilha com o público seu método para estar sempre alerta a uma possível negligência na educação da pequena.
“Temos uma frase disparadora que ensinei a ela. Toda vez que ela diz ‘pai, você está perdendo a minha infância’, tenho que largar imediatamente o celular”
“Fico pensando o que ganharíamos se nossas relações não fossem mediadas pelo celular”, diz o empresário.
O assunto permeou a conversa toda, a fala de todos os convidados, e também as perguntas da plateia, foi a fatídica: “qual o papel dos adultos na vida de uma criança?”. Sem uma resposta única e nem receitas prontas, essa pergunta demanda uma vida inteira de observação atenta, e disso os convidados falaram bastante, cada qual segundo a sua experiência de vida e lugar de fala.
“O maior dever de um pai e de uma é não trazer mais um babaca para a sociedade”, brincou Facundo, no início de seu depoimento, que passou por relatar a própria educação que recebeu, marcada por preconceitos e preceitos de exclusão.
“Não perpetuar preconceitos é papel de todos nós, principalmente dos pais”
“Por exemplo, fui assistir ao filme do Queen no fim de semana, onde aparece o Fred Mercury beijando o companheiro, e isso não chocou a minha filha, porque conversamos sobre isso em casa”, disse o empresário.
Psicólogo da Universidad Konrad Lorenz, de Bogotá, na Colômbia, Leonardo Piamonte é pai de Pipe, de 19 anos, Pedro, de 11 anos, e Guto, de cinco anos. Em sua fala, ele trouxe as questões que observa no consultório, e reforçou a importância de compreender que muitos pais de hoje são parte de uma geração que foi criada com muitas limitações do que é diversidade e respeito ao outro.
“Precisamos urgentemente ampliar as diversidades da criança, e ela não aprende isso sozinha. A diversidade intelectual também faz parte disso, ou seja, como falamos o que falamos para a criança”, afirma o psicopedagogo. Sobre a relação que tem com os pais de seus pacientes, ele conta que o diálogo começa no ouvindo, recebendo o que eles trazem e acolhendo suas limitações.
“Muitos pais chegam no meu consultório dizendo que têm um filho ‘especial’, e eu faço questão de corrigir e explicar”, diz Leonardo.
“O aprendizado acontece junto com seu filho”
“Quero convidar todo mundo para um experimento aqui e agora. Façam o exercício de olhar em volta. Quantas pessoas negras vocês estão vendo? Quantas estão curtindo o evento, e quantas estão trabalhando?”, disse Hélio Gomes.
Idealizador do primeiro podcast do Brasil focado exclusivamente nas questões da paternidade negra, o AfroPai, Hélio vivencia diariamente um preconceito duplo: o de ser negro, e o ser negro e pai de uma criança branca. Pai da pequena Elis, de pele e cabelos claros e olhos azuis, ele relatou em uma matéria publicada no Lunetas em 2017 a discriminação que sofre ao passear com ela.
“Quando estamos apenas minha filha e eu, corro o risco de ser abordado, julgado (antes de qualquer tentativa de explicação) e condenado (pelo mesmo júri popular que mata um preto que roubou algum celular na praia de Copacabana”, conta. Clique aqui para ler o depoimento de Hélio Fomes na íntegra.
“Racistas todos nós somos, porque é uma construção social. A questão é o que fazemos para impedir que isso siga adiante”
O casal André e Angelo Nunes, autores do Instagram Papai & Papia, contam que vivenciam duas naturezas de discriminação ao mesmo tempo. Pais dos irmãos Jonathan e Valentina, eles adotaram os pequenos em em 2010, após um longo processo que durou mais de um ano e quatro meses.
“Em todo o processo da adoção, passamos por só um caso de preconceito, por conta de um assistente social que perguntou ‘Vocês têm certeza que pretendem adotar essas crianças? Elas vão sofrer muito bullying na escola”‘, conta André. Apesar do acolhimento que recebem em ambientes privilegiados, a homofobia é uma realidade frequente na vida do casal, por meio de olhares, questionamentos e impedimentos que muitas vezes são sutis.
Já a filha dos dois, Valentina, que possui uma síndrome crônica, transita por dois espectros sociais onde o preconceito é muito grande: a diversidade homoparental e a diversidade intelectual”, explicam os pais. Ou seja, a pequena está sujeita a sofrer discriminação por duas razões: é filha um casal homoafetivo, e possui uma condição de saúde que a diferencia das demais crianças, isso sem considerar o dimensão da família adotiva, que por si só também pode resultar em discriminação social.
“Existe uma homofobia interna em quase todo mundo, e os pais devem fazer de tudo para não perpetuar isso”, defende André. “O Brasil é o país que mais mata por questões de LGBTfobia no mundo, e isso começa já na piadinha inofensiva no bar, muitas vezes movida por um desejo de pertencimento a algum grupo”.
“Uma criança é construída, e muito disso vem do comportamento aprendido dentro de casa”
Como fazer, na prática, para evitar de passar adiante o racismo, a homofobia e as demais formas de discriminação que possivelmente trazemos em nós? Na opinião dos pais presentes no encontro, propiciar a convivência com o diferente é o primeiro passo.
No exercício de Hélio no início do debate, em que ele pede para olhar ao redor, o que fica é essa reflexão: as crianças tomam como referência aquilo que nós, adultos, apresentamos a elas. Para eles, o diálogo e a aceitação de que somos falhos é um caminho possível. Ou seja, não só responder prontamente às indagações das crianças, quanto admitir o que não sabemos, sem medo de expor fraquezas.
“O preconceito é aprendido. A identificação da diferença, não”, explica o psicólogo
“A criança aprende a diferença a partir da linguagem, ela brinca com as palavras que ela conhece. Quando uma criança diz que a boneca é marrom, não é marrom do adulto, é só a descrição naturalista do mundo”, explica Piamonte.
O evento Força de Pai acontece regularmente. A próxima edição será no dia 10 de dezembro, em Belo Horizonte – saiba mais aqui. Na página oficial do projeto, você pode acompanhar as novidades e ter informações sobre próximos encontros e atividades. Enquanto isso, quem quiser se aprofundar no assunto paternidades diversas, pode ler os conteúdos que selecionamos sobre o tema na série do Lunetas:
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