Boi de mamão: uma tradição que mobiliza as crianças catarinenses

A brincadeira reúne gerações e mantém vivo o folclore açoriano com muita música, dança e teatro de rua

Angélica Weise Publicado em 30.06.2022
Dois personagens do folguedo Boi de mamão com roupas coloridas se apresentam no pátio de uma escola e as crianças assistem à volta
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Resumo

Em Santa Catarina, o folguedo Boi de mamão resiste e tem como entusiastas as crianças, que brincam com o boi nas escolas, nas ruas dos bairros ou em apresentações públicas.

“O Boi de mamão foi bem colorido e as músicas bem alegres”, comenta Raul, 8, estudante do terceiro ano, sobre a apresentação no pátio da Escola Municipal João Gonçalves Pinheiro, onde estuda, em Florianópolis (SC). Letícia, 10, estudante do quinto ano, que interpretou a vaqueira na história sobre um boi de estimação que nasce, morre e ressuscita, comemora o fato de sua escola estar “mostrando uma arte tão bonita para os alunos”.

Parte do folclore catarinense, o boi, personagem principal do folguedo do Boi de mamão, ganha vida diante dos olhos das crianças e dos adultos, sempre acompanhado de muita cantoria e dos demais personagens, como o vaqueiro, o veterinário, a cabra, a benzedeira, o urubu, o macaco, o cachorro, o urso da Maricota e a bernunça.

As origens da festa e a figura do boi no folclore brasileiro

De tradição cultural açoriana, o folguedo do Boi de mamão foi introduzido em 1930 pelos primeiros povos colonizadores do litoral catarinense e do interior. Em 2019, o folguedo foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial ou Intangível de Florianópolis (SC). A figura do boi, icônica e tão simbólica, é encontrada em várias partes do Brasil, especialmente nos folguedos nordestinos, com os nomes Boi bumbá e Bumba meu boi. De acordo com Sérgio Antônio de Souza, criador do Conselho do Boi de Mamão do Estado de Santa Catarina, o boi surgiu como boi de pano, feito com um lençol que se enchia de esponja e se colocava por cima da madeira. Depois, veio a ideia de fazer o boi de mamão, porque o bico do mamão macho lembra um pouco a cabeça do boi, que recebe dois galhos para finalizar”.

Para a escritora Januária Cristina Alves, autora do livro “Abecedário de personagens do folclore brasileiro”, o boi é uma figura muito forte no folclore, que nos vincula à terra, a alimentos, à força, e nos aproxima da alma humana. “Os olhos do boi são muito cantados em verso e prosa”, diz. E, como toda criança gosta de uma boa história, devemos nos apropriar dessas histórias folclóricas e fazer com que sejam nossas”, pontua.

Integrar elementos da cultura popular de uma comunidade à prática pedagógica é uma forma de revelar a pluralidade de um país, defende a educadora Inara Moraes. “O Brasil é uma verdadeira festa da palavra, seja cantada, recitada, dançada. Quando os seus folguedos são inseridos na escola, a criança tem a oportunidade, antes de qualquer coisa, de viver a ludicidade e alegria por estar no mundo”, explica.

Momentos brincantes feitos à mão

Além de se apresentar na escola, Letícia ajudou na confecção dos bonecos junto dos oficineiros Paulina Montaldo e Demetrius Sorgon, que trabalham com arte-educação há mais de 15 anos, em uma iniciativa que faz parte do projeto “Oficinas para confecção de brincantes do Boi de mamão”. Sobre a participação das crianças, Paulina reflete: “Toda manifestação cultural traz a essência da comunidade que a pratica. Não faria sentido se não viessem deles essa produção”.

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Luiza Pimenta

Crianças da Escola Municipal João Gonçalves Pinheiro, em Florianópolis, participaram da oficina de Boi de mamão e depois assistiram à apresentação no pátio da escola

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Luiza Pimenta

Crianças da Escola Municipal João Gonçalves Pinheiro, em Florianópolis, participaram da oficina de Boi de mamão e depois assistiram à apresentação no pátio da escola

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Luiza Pimenta

Crianças da Escola Municipal João Gonçalves Pinheiro, em Florianópolis, participaram da oficina de Boi de mamão e depois assistiram à apresentação no pátio da escola

 

Os brincantes do Boi de mamão são construídos pelas crianças, sem muitas intervenções – os oficineiros apenas ajudam a viabilizar as ideias dos pequenos, utilizando uma técnica conhecida como empapelamento escultural, que consiste em uma armação de madeira e bambu coberta com papel e pano.

Como fazer um boizinho de mamão, passo a passo:

Sobre a construção dos próprios bonecos, “além de uma integração das crianças e seus pares, há uma integração entre gerações”, acredita a educadora Inara. “Afinal, quando a escola traz o tema para o cotidiano das crianças, isso ressoa nas famílias, com suas memórias afetivas em torno deste brincar”, conclui. Essa ressonância encontra espaço nas lembranças de Ana Cecília Coelho, mãe da Letícia, que passou sua infância em Belém (PA) vivenciando a cultura do boi: “Não tinha os personagens que tem aqui, mas a figura do boi é muito presente em todo Brasil. Cada região com a sua história”, pontua. 

Uma tradição que resiste de geração em geração

Além das escolas, diversos palcos reencenam a história do boi, como praças, creches e asilos, geralmente em datas festivas e festas juninas. Atualmente, 11 grupos de Boi de mamão compõem o Folguedo Folclórico da Ilha de Santa Catarina, vinculados a um conselho municipal. Aos fins de semana, chegam a se apresentar, em uma única tarde, até seis grupos. 

Um deles é o Alivanta Meu Boi, de Ingleses, no litoral de Florianópolis, que surgiu em 1995. Composto por 18 crianças, o grupo se apresenta em locais públicos e em atividades particulares. Sandro Penteado, um dos coordenadores, que cresceu vendo o folclore, conta como as apresentações são empolgantes. “As crianças nos surpreendem com seus sorrisos de alegria ao ver a dança, a encenação de toda história”, conta.

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Divulgação

Grupo tradicional de Florianópolis, o Alivanta meu Boi se apresenta em locais públicos e anima crianças e adultos

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Grupo tradicional de Florianópolis, o Alivanta meu Boi se apresenta em locais públicos e anima crianças e adultos

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Divulgação

Grupo tradicional de Florianópolis, o Alivanta meu Boi se apresenta em locais públicos e anima crianças e adultos

Talis, 10, e Agnes, 6, costumam assistir aos espetáculos do grupo Alivanta Meu Boi, tendo inclusive participado das encenações. “Eu já participei várias vezes: já fiz o vaqueirinho, a cabra e o filhote da bernunça. É muito legal”, declara Talis. A parte preferida de Agnes “é quando tem o bebezinho da bernunça”, diz.

“Olha lá, mestre vaqueiro, escutais o meu cantar
vai buscar dona bernunça e depois o jaraguá
Olêê olêê olêê olêê olá
arreda do caminho que a bernunça quer passar”

Para quem não está familiarizado, a bernunça é um personagem fantástico que vem da Península Ibérica, região de origem provável da cultura do folguedo do boi. “As evidências mostram que a bernunça teria sua origem inspirada em um ser mitológico do antigo Egito. Embora ninguém saiba o que é dentro do folclore, na música se canta bicho”, pontua o escritor e pesquisador Adriano Besen.

Os irmãos Talis e Agnes assistem ao Boi de mamão desde a barriga, garante a mãe, Lesly: “Eles amam a brincadeira, conhecem todo o folclore da ilha de Florianópolis e isso cria naturalmente um sentimento de pertencimento às suas raízes de manezinhos”, conta. 

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Arquivo pessoal

Talis e Agnes desde pequenos participam das apresentações do Boi de mamão

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Arquivo pessoal

Talis e Agnes desde pequenos participam das apresentações do Boi de mamão

Esse “pertencimento” é defendido pela escritora Januária, pois “um povo que não conhece suas histórias e tradições, de onde vem e de onde são seus antepassados, realmente é um povo que não se conhece e não sabe quem é”, aponta.

Outro grupo tradicional é a Associação Folclórica Boi de mamão de Jurerê (SC) que, apesar de antigo, tendo sido passado de pai para filho, só foi registrado em 2000. Entre seus 30 componentes, Sérgio Antônio de Souza, conhecido como Marreba, é o responsável pelo grupo. Envolvido com a festa desde criança, ele relembra que antigamente se pedia permissão aos moradores para apresentar o Boi de mamão nos terrenos das casas. “Os participantes adultos ganhavam uma mistura de café e cachaça e, para as crianças, eram oferecidos sucos e lanches”, conta. Sérgio destaca o empenho e a dedicação para manter viva a tradição: “A alegria das crianças é contagiante e é o que nos inspira a lutar até hoje”.

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Divulgação

O Grupo Associação Folclórica de Jurerê realiza apresentações em eventos e locais públicos

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O Grupo Associação Folclórica de Jurerê realiza apresentações em eventos e locais públicos

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O Grupo Associação Folclórica de Jurerê realiza apresentações em eventos e locais públicos

Diante da declaração de Raul que diz não ter “palavras para o que é aquilo. O que os jovens fizeram com materiais recicláveis é muito bonito”, fica evidente a necessidade de resistir e manter viva a tradição. Afinal, como questiona a escritora Januária, “como a gente tem uma riqueza desse tamanho, tão pouco explorada e estudada?”.

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