Educadores propõem leitura de livros que fogem da temática infantojuvenil para conversar com crianças e adolescentes sobre outras visões de mundo
Educadores defendem a leitura mediada ou adaptada de livros que não são voltados para crianças em atividades escolares ou em casa com a família. Objetivo é ampliar e diversificar o repertório, respeitando o entendimento de cada faixa etária.
Educadores querem aproveitar o livro que inspirou o filme “Ainda estou aqui” para conversar com os alunos sobre democracia e a ditadura no Brasil. Alguns estados como o Piauí, por exemplo, anunciaram a compra do livro para bibliotecas públicas e escolas de ensino médio. Há também solicitações de incluir a obra no Programa Nacional do Livro Didático e Literário (PNLD), que garante a compra e circulação de exemplares em escolas públicas municipais e estaduais de todo o país.
No colégio Santa Cruz, em São Paulo, há alguns anos, as atividades de leitura incentivam os estudantes a se apropriarem de conteúdos literários ditos para leitores adultos. Sobre essa prática, o professor de literatura Rafael Salmazi então questiona: “Por que não podemos tentar?”
O livro de Marcelo Rubens Paiva não foi a primeira experiência do colégio com a literatura fora da temática infantojuvenil para as séries finais do fundamental. Segundo os professores, a prática, além de permitir o contato com outras realidades e o acesso a uma literatura diversa, proporciona a ampliação de repertório leitor, mesclando textos clássicos como “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, e contemporâneos como o de Paiva, por exemplo.
Para chegar a esses livros mais complexos, o ideal é construir um caminho desde os primeiros anos de vida, com a oferta de livros para a infância. Então, a escola consolida essa prática para que os estudantes evoluam nas leituras mais densas com fluidez. Nesse percurso, estratégias de mediação ajudam bastante.
No Colégio Santa Cruz, o professor Rafael explica que, primeiro, divide os estudantes em grupos, antes do início da leitura. Assim, cada grupo lê capítulos ou trechos menores. Em alguns casos, a ordem em que os estudantes leem cada capítulo também se modifica. “Como a gente organiza grupos pequenos, às vezes entregamos capítulos diferentes para cada um”, explica o professor, que dá aulas para o 9º ano.
No momento da leitura em grupo, se abre, então, a janela para um debate. “Como os grupos viram partes diferentes do livro, fica mais fácil perceber a diversidade de opiniões e vivências dos próprios estudantes”, conta Rafael.
Ele afirma que quanto mais os adolescentes avançam na leitura, mais querem saber dos assuntos e do contexto. Alguns já têm conhecimento de outras obras. “A gente fica até feliz quando um estudante atropela a programação de leitura, porque é um sinal de interesse. Em alguns casos específicos, eles também sugerem leituras para fazermos em conjunto.”
Foi durante as atividades com estudantes do 4º ano do ensino fundamental que a educadora Gisele Teixeira, da rede municipal de ensino de São Paulo, teve seu primeiro contato com o poema épico “Odisseia”. Na verdade, com as crianças, a tarefa foi a leitura da adaptação “Ruth Rocha conta a Odisseia” (Moderna).
Para ela, ter recursos como essas adaptações dos clássicos mostra “o quanto é possível a leitura de narrativas ricas e longas pelas crianças, desde que a linguagem fique acessível”. Além disso, também é uma forma de os adultos terem acesso. “Dificilmente eu leria a versão clássica”, revela.
Para a atividade, a professora dividiu a leitura em capítulos. Então, a cada semana a turma se reunia para ler e conversar sobre a obra. “Um momento que ficou gravado na memória foi quando uma aluna de 10 anos questionou o comportamento de Penélope [a esposa de Odisseu]. Ela provocou uma reflexão sobre amor, resiliência e os valores presentes na história”, lembra.
Em entrevistas a outros veículos, a escritora Ana Maria Machado conta que as adaptações para crianças e jovens aguçam a curiosidade e podem incentivar o interesse pela obra original. “Elas podem dar uma visão geral do patrimônio cultural que todos herdamos e não vamos conseguir ler em sua totalidade. Para que possamos depois ler outros livros, posteriores aos clássicos, e entender suas alusões e referências, por exemplo.”
Além de autora clássica da literatura infantojuvenil brasileira, Ana Maria Machado foi responsável pelas adaptações de obras como “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe, e “Sonho de uma noite de verão”, de William Shakespeare.
“Branca de Neve”, “Cinderela” e “João e Maria” são histórias conhecidas como contos para crianças. Elas fazem parte da tradição oral de várias culturas, sendo as versões europeias as mais famosas. Esses clássicos foram originalmente destinados para entreter adultos. No entanto, passaram por adaptações ao longo do tempo até se tornarem mais acessíveis para a infância e permanecem atemporais, porque falam sobre a essência do humano.
Como afirma o filósofo Walter Benjamin: “o conto maravilhoso, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças porque foi outrora o primeiro da humanidade, continua a viver secretamente na narrativa.”
No projeto Histórias de Juvenal, em Cumuruxatiba (BA), a educadora Denise Freitas trabalha a leitura de clássicos com crianças em situação de vulnerabilidade social. “Com o ‘Barbazul’ a leitura trouxe de imediato para elas a identificação com o que veem e vivem na comunidade, como as relações afetivas”, explica.
Escrito por Charles Perrault em 1697, o conto narra a história de um nobre violento, que guarda em segredo o misterioso desaparecimento de suas esposas. Denise explica que, nas leituras, as conversas com as meninas de 8 a 12 anos costumam envolver de violência doméstica a governos autoritários.
Já dentro de casa, a leitura mediada pode acontecer no tempo reservado para a diversão entre pais e filhos. “Lia os contos de fadas com meus filhos antes de dormir. Escolhemos essas histórias porque fazem parte de um repertório construído ao longo do tempo, mesmo sabendo que muitas delas apresentam camadas questionáveis no universo infantil”, conta Fernando Arosa, pai de Caio, 17, e Julia, 15.
A troca de experiência durante a infância dos filhos acontecia em um ambiente de diversão e cumplicidade. A leitura conjunta de clássicos ou de outros livros, segundo Fernando, é uma atividade que precisa ser resgatada com meninos e meninas. “Precisamos criar momentos ao redor da fogueira, ou ainda, as cadeiras na calçada. Ler para os filhos, para os vizinhos, pois essa troca de risos, medos e expectativas mostra que vivemos de histórias”, completa.
Mais do que enveredar pelo universo que extrapola o lúdico, a leitura mediada de livros que não são voltados para crianças e adolescentes proporciona outras visões de mundo. Portanto, pais e educadores que já são leitores críticos entendem que não há mal algum em apresentar ou iniciar uma conversa sobre os temas desses livros mais densos. É desse modo que a literatura em qualquer forma ou idade se torna um convite para compreender o mundo e os sentimentos humanos.
O interesse cresce após a repercussão do Oscar de melhor filme em língua estrangeira para “Ainda estou aqui” e do Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres, em 2024. Nas salas de aula, a adaptação para o cinema veio somar e facilitar o trabalho com os estudantes.