Ensino religioso nas escolas não é o melhor caminho para ensinar crianças sobre um Estado laico, afirmam especialistas
A Constituição prevê uma educação laica, pública, gratuita, universal e democrática. Apesar do ensino religioso ser obrigatório na escola pública, essa presença não é consenso entre comunidades religiosas, movimentos de direitos humanos e entidades educacionais. Entenda
A pauta de costumes foi um tema de peso nas eleições de 2022. De acordo com uma pesquisa do Datafolha, realizada duas semanas antes do segundo turno, 49% dos eleitores diziam dar muita importância para a religião ou para a fé do candidato na hora de definir o voto. Diante da centralidade da religião inclusive durante os debates presidenciais, seja com citações da bíblia, menção ao nome de “Deus” ou em defesa da liberdade religiosa, a pergunta que fica é: por onde começar a educar as crianças sobre laicidade?
Para a doutora em Educação em Ciências, Alessandra Guida dos Santos, formar cidadãos para um Estado laico pode começar na infância. No entanto, segundo ela, que foi diretora de escola estadual no Rio de Janeiro, a melhor opção não seria por meio da disciplina de ensino religioso confessional. “Teoricamente, só devem participar das aulas quem é optante, mas, na prática, como muitos alunos ficam ociosos, acaba indo toda a turma para a aula de uma determinada confissão”, relata. No caso da escola mencionada, o professor disponível era evangélico. Alessandra ainda conta que, muitas vezes, as aulas de ensino religioso conflitavam com explicações sobre a “origem da vida”, por exemplo.
Em 2022, uma pesquisa realizada por Alessandra com 296 estudantes de três escolas no Estado apontou baixa adesão (entre 2% e 7% em todas as séries consultadas) dos alunos ao ensino religioso. Em todas as escolas, a preferência era por disciplinas “importantes para conseguir um emprego” (67%) ou “importantes para compreender o mundo em que vivo” (13%), caso de sociologia e filosofia. Ainda, seu estudo sobre laicidade nas escolas para o XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Enpec) revelou que 60,5% dos estudantes questionados concordam que a laicidade é importante para respeitar todas as religiões e 13% defendem que ela garante o respeito de se manifestar. “As pesquisas nos mostram que os estudantes entendem que a escola não é espaço para ensino religioso, já que existem outros locais para a prática de cultos, mas acabam sendo pressionadas por suas famílias a aderirem à disciplina”, explica a pesquisadora.
“Crianças ainda precisam entender que a laicidade é um direito”
Em setembro de 2000, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro promulgou a Lei n. 3.459, que instituiu o ensino religioso confessional nas escolas públicas da rede estadual, com atribuição específica das diversas autoridades religiosas.
“Não eram meus colegas, mas os professores que não entendiam minha religião, diziam ‘isso é macumba’”, relata Miguel, 9, que precisou explicar à Secretaria de Educação do Paraná por que a “quizila”, uma regra de conduta no candomblé, que prescreve, entre outras coisas, restrições alimentares periódicas, moveu seu pedido de alteração na dieta escolar.
Após se transferir para a Escola Municipal CEI Augusto Cesar Sandino, além de garantir seu direito de acesso à merenda especial, Miguel pôde, finalmente, assumir sua identidade religiosa e apresentar aos colegas o porquê dessa exigência numa aula de ensino religioso. Às segundas-feiras pela manhã, o menino era chamado pela professora da nova escola para falar um pouco mais sobre os Orixás e sua cultura para a turma.
“A escola deve ser um espaço para incentivar o respeito e a convivência com as diferenças.”
Para o bàbálàsé (um dos cargos na alta hierarquia de um terreiro de candomblé) Flávio Maciel, coordenador do Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana, o ensino religioso deveria contemplar várias matrizes presentes no Brasil (como as indígenas, ocidentais, africanas e orientais), ser um espaço de combate à intolerância religiosa e ter participação equitativa entre as comunidades religiosas. “Educação e conhecimento são as principais armas que temos para enfrentar o crescente discurso de ódio”, afirma.
“Vivemos em um país onde as leis determinam um Estado laico, mas, na prática, a religiosidade ainda pauta os debates políticos”, diz o sacerdote Flávio. A própria história da educação pública no Brasil revela a forte influência da Igreja Católica, mesmo durante a República, que motivou o retorno do ensino religioso na Constituição Federal de 1934. Com algumas alterações, essa previsão permanece até hoje. Em 1988, a nova Constituição definiu que a disciplina seria obrigatoriamente oferecida no ensino fundamental, porém com matrícula facultativa.
Em 1996, a lei nº 9.394 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) determinou que a oferta da disciplina aconteceria de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável (confessional) ou a partir do acordo entre entidades religiosas (interconfessional), que deveriam se responsabilizar pela elaboração dos respectivos programas. Em 1997, uma nova versão da lei, vigente até hoje, incluiu no artigo 33 o ensino religioso como “parte integrante da formação básica do cidadão” e sugeriu a possibilidade de financiamento público para sua oferta.
A disputa mais recente em relação ao tema se deu na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, por meio da qual a Procuradoria Geral da República solicitou que a disciplina de ensino religioso apresentasse a concepção geral das religiões, sem representação de credo específico (ensino não confessional). Em 2017, por 6 votos a 5, o STF julgou a ADI improcedente. Hoje, o ensino religioso consta como uma das cinco áreas do conhecimento definidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Teses em disputa na ADI 4.439
A primeira tese era de que o ensino religioso nas escolas públicas deve ser confessional, de acordo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Já a Procuradoria-Geral da República (PGR), autora da ação, defendia o modelo “não confessional”, sem vinculação com diferentes doutrinas e posições religiosas e não religiosas. A interpretação de movimentos de direitos humanos, por sua vez, era a de que a Constituição deveria estabelecer uma separação nítida entre a escola pública e as religiões. Diferentemente das demais, a terceira tese não considerava necessária a disciplina de ensino religioso para a formação integral dos cidadãos, dogma inserido na Constituição e na LDB.
Ensino religioso na BNCC
A BNCC estabelece que o ensino religioso deve abordar as manifestações religiosas de diferentes culturas e sociedades, a partir de pressupostos éticos e científicos, sem privilegiar nenhuma religião. São quatro objetivos apresentados:
1. Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos, a partir de manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos;
2. Propiciar conhecimentos sobre o direito à liberdade de consciência e de crença, no constante propósito de promoção dos libertos humanos;
3. Desenvolver competências e habilidades que contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo de ideias, de acordo com a Constituição Federal;
4. Contribuir para que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania.
Ainda não há consenso em relação à natureza do ensino religioso confessional, em especial no sistema público de educação, entre o campo religioso cristão, as demais confissões, entidades educacionais, movimentos de direitos humanos e de direitos das crianças e adolescentes. Para muitos setores, o próprio fato da oferta do conteúdo ser incontestável, segundo a Constituição, ao contrário do que acontece com disciplinas como língua portuguesa, ciência e matemática, já aponta a influência direta do campo religioso no Estado laico: como pensar uma escola democrática no coração de um país profundamente religioso e diverso?
De acordo com a doutoranda em Educação pela PUC-Rio e integrante do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), Fernanda Moura, um dos efeitos do modelo de ensino religioso que hoje predomina é reforçar, ao longo de toda a escolarização, uma moralidade cristã, ao promover valores e modos de ser particulares, como papéis de gênero, por exemplo. Na última década, ela ainda observa como a negação das ciências, com o retorno de interpretações fundamentalistas dos textos sagrados, acaba influenciando não apenas o ensino religioso, mas os demais conteúdos escolares.
“O debate educacional foi tomado pelo discurso religioso e, de repente, não se discutia mais o direito das crianças e adolescentes à educação, e sim o direito dos pais sobre a educação dada aos seus filhos nas escolas”, argumenta Fernanda. A pesquisadora analisa como, a partir de 2010, movimentos como Escola Sem Partido, homeschooling e contra a chamada “ideologia de gênero” se alinharam e passaram a espalhar um espécie de “pânico moral” nos debates do novo Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024).
“A negação da laicidade é um enorme retrocesso no campo dos direitos das crianças”
O que é laicidade?
Um Estado laico é aquele em que nenhuma pessoa é obrigada a seguir crenças ou práticas em que não acredita. O art. 19 da Constituição Federal de 1988 proíbe que o Estado subvencione, persiga ou interfira em cultos ou igrejas de qualquer vertente. Apesar disso, o Brasil possui inúmeros exemplos de desrespeito à laicidade, como a Concordata Brasil-Vaticano, assinada em 2009, que concedeu privilégios do Estado à Igreja Católica. Outros problemas indicados por especialistas são a influência religiosa em políticas públicas, como as relacionadas à saúde da mulher, seletividade na aplicação de direitos, como a imunidade tributária a instituições religiosas e os chamados “votos de cabresto religiosos”, utilizados por lideranças para influenciar fiéis a votarem em candidatos específicos.
“Você acha que a escola é um ambiente seguro para manifestar sua opinião?” Um silêncio na plateia interrompeu a palestra do bàbálàsé Flávio Maciel sobre combate à intolerância religiosa, em uma escola pública de Curitiba, em outubro de 2022, às vésperas das eleições presidenciais. Se, minutos antes, centenas de crianças respondiam com tranquilidade se gostavam mais de frio ou calor, doce ou salgado, qual era o incômodo diante daquela pergunta?
As crianças não apenas reconhecem o clima de tensão que existe no país, mas costumam omitir suas opiniões por medo de serem discriminadas. Uma pesquisa de quase duas décadas realizada pela doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Stela Caputo Guedes, apresentada no livro “Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé”, apontou que muitas escolas representam hoje um “mercado” para as religiosidades dominantes, sobretudo aquelas mais afeitas ao proselitismo. Além disso, nas escolas pesquisadas, ela identificou interferência direta da percepção pessoal de diretores e professores sobre a oferta do ensino religioso, priorizando valores cristãos. Neste caso, por vergonha, alunos de tradições de matriz africana não se sentiam à vontade para assumir suas crenças e até mentiam sobre frequentar a igreja.
O caso de Miguel ilustra como a escola e os profissionais da educação podem atuar em prol da inclusão e do respeito, segundo sua mãe, a professora Isabella Sacramento da Silva. “Os estudantes trazem diferentes bagagens para dentro da escola, e isso inclui as experiências religiosas”, diz. Para ela, ao considerar essas experiências, combatendo as discriminações, a escola pode incentivar o desenvolvimento da autonomia e do protagonismo das crianças, fazendo com que elas se sintam seguras para expressar suas opiniões. “Depois do episódio das restrições alimentares, outras famílias se sentiram à vontade para assumir sua identidade religiosa e reivindicar alterações na dieta”, relata.
”Para Paulo Freire, uma das tarefas mais importantes da prática educativa é propiciar as condições para que os educandos, em suas relações uns com os outros e todos com o professor(a), ensaiem a experiência profunda de se assumir”, escreve Stela Caputo Guedes. A autora ressalta que, em um país dividido por divergências políticas e conflitos religiosos, é um avanço fazer com que a diferença não seja exceção, mas um direito: o direito de narrar o mundo e também de contar a si mesmo, sem medo.
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Segundo o relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, de 2021, no Rio de Janeiro, religiões de matriz africana foram as que mais sofreram ataques (43 casos registrados), seguidas dos judeus (3 casos) e católicos (1), sendo a maioria de injúria contra pessoas (26%) ou comunidades (23%). Entre 2011 e 2015, a comissão também identificou, com base em registros do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (Ceplir), que os professores estavam na terceira posição de quem mais cometia intolerância religiosa, após “vizinhos” e “desconhecidos”.