Crianças do Acre relatam como está a vida após o rastro deixado pelas enchentes, agravado pelo aumento de casos Covid-19 e dengue
O Acre enfrenta situação de calamidade pública decorrente de alagamentos, somado ao aumento do número de casos de Covid-19, ao surto de dengue e de outras doenças. Quatro famílias com crianças contam como estão vivendo e se sentindo diante da situação de crise.
“Ficamos embaixo d’água, sem luz, e não tinha ninguém para nos ajudar”. A fala de Iago Sousa, 12, é de uma memória recente e semelhante à de uma parte significativa das crianças que viveram a enchente do Acre. A proximidade com os rios para quem vive em boa parte da região amazônica é algo comum, chega a ser uma relação de amizade. Mas o período de chuvas intensas do chamado “inverno amazônico” somado a fatores como ocupação urbana desordenada, escassez de áreas verdes, impermeabilização dos solos e crise climática tendem a provocar desastres socioambientais como os que têm acontecido no Estado do Acre.
A arquiteta e urbanista Josélia Alves, conselheira federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e professora da Universidade Federal do Acre (UFAC), pesquisa sobre os fatores que contribuem para esse tipo de alagamento, que são comuns na região. Em seu livro “Quando a rua vira rio: vulnerabilidade socioambiental urbana”, ela explica como essa vulnerabilidade decorre da associação entre os riscos naturais e os riscos agravados pela atividade humana e a ocupação desordenada do território.
As enchentes não são novidades para os moradores da região. Mas a gravidade com que afetou dessa vez a sua população, somada ao agravamento de casos de Covid-19 (quase 95% dos leitos de UTI estão ocupados), o surto de dengue e a crise migratória na fronteira do Acre com o Peru fez o governador do Estado, Gladson Cameli (PP), comparar a situação a “uma terceira guerra mundial”. Apesar de não ser uma guerra real, tal condição trouxe medo, tristeza e insegurança para a população mais vulnerável e que não tem nenhuma responsabilidade sobre estes acontecimentos: as crianças.
Josefa da Costa é avó de Iana, 10, e de Iago, 12, cujo relato abriu esta matéria. Em sua casa, moram nove pessoas, entre filhos, filhas, netos, seu esposo e sua mãe, com 96 anos.
A família é uma das muitas afetadas pela enchente que atingiu o município de Cruzeiro do Sul. Com população estimada de 89 mil habitantes, a maior parte formada por crianças e adolescentes, a cidade fica situada no Vale do Rio Juruá.
A preocupação de que as águas voltem a subir está presente em muitos relatos. “As águas baixaram e nós não saímos de casa, só levantamos algumas coisas. Mas agora o rio está enchendo novamente e a gente não sabe o que está por vir”, conta Josefa.
Iana, cujo depoimento deu título a esta reportagem, relembra como foram os momentos em que a água cobriu um palmo do assoalho da casa. “A alagação não foi fácil. Nós tivemos que ficar de bota, apareceu cobra dentro de casa”, relata.
“Na nossa casa, a água deu no joelho”, conta Cleudiana Bezerra, mãe de José, 15, Jhonatan, 11, e Kaike, 2. Eles também são moradores de Cruzeiro do Sul. Ela explica que, quando a enchente tomou a sua casa, eles foram para a casa da sua mãe, em outro bairro, onde ficaram por cerca de três dias. Mas como a água também invadiu lá, eles precisaram ir para um abrigo em outra região, onde permaneceram durante uma semana.
Quando as águas baixaram, a família voltou para casa. Mas no momento da entrevista, duas preocupações a inquietavam: a saúde do filho mais novo e a volta do alagamento. “Hoje já amanheceu enchendo de novo, e nós estamos aqui, com meu filho caçula muito gripado, com asma, tossindo, com febre, cansado. Pode ser aquela doença, a Covid”, relata. “Agora aqui é assim: atoleiro, água que não é saudável e malária.”
Jhonatan também fala da situação em que se encontram e do medo que sente. “Essa alagação foi muito ruim pra mim e para minha família.”
“Tenho medo de pegar malária e dengue. Eu também fico com medo de meu irmão cair dentro da água, por isso tenho cuidado dele”
“Nós tivemos que limpar a casa, porque ficou tudo melado de lama, e estamos sem luz”, conta.
Sem energia elétrica em casa, com o terreno tomado pela lama e o irmão doente, Jhonatan revela o seu maior desejo naquele momento.
“Eu gostaria de sair da Boca do Moa [região onde mora]. Quando não cobre o assoalho, cobre o terreiro. E também queria que o meu irmão melhorasse dessa doença que ele está agora.”
No dia 22 de fevereiro, o Governo do Acre decretou situação de calamidade pública em 10 cidades, entre elas Rio Branco e Cruzeiro do Sul.
A psicóloga Sarah Farhat, conselheira estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente no Acre, explica que aumentou o número de notificações relacionadas à violação dos direitos da infância. “Tem-se observado que com a situação da pandemia, bem como a de alagamento dos igarapés e afluentes do rio, houve um acréscimo considerável de demandas”, comenta.
As crianças e adolescentes que já viviam inúmeros problemas decorrentes da pandemia, agora precisam enfrentar o medo e a tristeza provocados pela enchente e suas consequências no Acre. A conselheira, que também realiza atendimento psicológico em um dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Rio Branco, conta que cresceu o número de casos relacionados à saúde emocional das crianças.
“Além do acréscimo nas notificações de violência doméstica, psicológica e sexual, as crianças também têm apresentado transtornos de síndrome do pânico, ansiedade generalizada, fobias e problemas afetivos”
Ela explica que a dengue, a Covid-19 e a enchente se somam a esses fatores e afetam diretamente a vida das crianças. A educação, a saúde e a alimentação são direitos básicos aos quais muitas crianças, sobretudo as de baixa renda, não têm acesso.
Isabele, 11, divide a casa com mais seis pessoas em Rio Branco: sua mãe, três irmãos, a cunhada e uma sobrinha. Neste ano, a alagação não entrou na sua casa, mas chegou perto o suficiente para trazer medo e problemas de saúde.
Sua mãe, Maria Auxiliadora Oliveira, que sustenta a família com dificuldades fazendo serviços de costura e faxina, conta que a enchente chegou no quintal e que um dos seus filhos está com dengue.
Mesmo com o nível do rio baixando, Isabele ainda demonstra preocupação com o que pode acontecer.
“Eu estou me sentindo triste, porque eu não quero sair daqui”, relata.
Neste ano, Maria Antônia da Silva e sua filha Sophia, 11, não foram atingidas pelos alagamentos. Mas ela relembra que em 2015, quando moravam em outra região de Rio Branco, foi preciso sair de casa.
“A gente perde tudo o que tem e também afeta a nossa saúde emocional e psicológica. Tivemos que sair e fomos para a casa de parentes. Fico muito triste quando vejo essa alagação. Eu penso nas crianças das famílias que estão lá, porque eu sei o que eu passei com a minha filha”, relembra Maria.
Embora tenha sido preservada da Covid-19 e de doenças decorrentes dos alagamentos, a menina Sophia fala sobre a sua maior esperança para este momento: “Meu maior desejo é que tenha uma vacina que cure logo a Covid. Quando ela acabar, não vai voltar tudo ao normal, mas nenhum familiar vai morrer”, desabafa.
“Quando a Covid acabar, as pessoas vão voltar a se abraçar e a reencontrar os amigos”
Assim como as crianças ouvidas nesta reportagem, muitas outras precisam de ajuda humanitária neste momento no Estado do Acre. O Ministério Público do Acre (MPAC) coordena a campanha SOS Acre, que tem arrecadado dinheiro, alimentos e outros itens de necessidade básica para as famílias atingidas pelos alagamentos. Saiba como ajudar no site oficial da iniciativa.