“Somos a primeira geração a questionar a educação recebida”, afirma Fernanda Fontes, educadora parental e mãe de três. Para ela, “isso é revolucionário, porque nos possibilita fazer diferente com nossos filhos e educar sem violência”.
Apesar disso, é comum adultos que “seguem carregando dores emocionais”. Então, ao castigar os filhos, “muitas vezes acabam reproduzindo de modo automático aquilo que aprenderam como correto”.
Então, a educadora recomenda que, para debater os efeitos da educação tradicional autoritária e violenta, é preciso “trazer as infâncias para o centro”. Segundo ela, isso ajudaria a romper a ideia de que “o adulto tem sempre razão e, para a criança, restaria apenas a obediência cega”.
“A violência nunca é aceitável quando se pensa em mulheres, idosos e animais. Contudo, para as crianças, ela ainda é educação.”
Do mesmo modo, “crianças que costumam bater em outras crianças também estão usando os recursos que conhecem para comunicar uma necessidade”, afirma Soraia Melo, coordenadora da Rede Não Bata, Eduque. A proposta da rede é desnaturalizar a prática dos castigos físicos e humilhantes como forma de educar e cuidar de crianças e adolescentes.
Mãe da Dora, 5, Soraia destaca a importância de criar espaços de escuta horizontal, que não sejam mediados pelo medo. Assim, com a participação de outros adultos e responsáveis, a estratégia ajudaria a compreender quais necessidades dessas crianças não estão sendo atendidas e quais asvulnerabilidades dessa fase.
Criar vínculo ajuda a romper o ciclo da violência intergeracional
Elisa Altafim, doutora em saúde mental pela Universidade de São Paulo (USP), conta que pesquisas mostram como “programas de parentalidade melhoram o vínculo entre pais e filhos e ajudam a quebrar o ciclo de violência intergeracional”. A psicóloga, que realiza pesquisas, formações e consultoria relacionadas a temas como desenvolvimento infantil e parentalidade, afirma que as práticas violentas afetam o desenvolvimento da criança e sua saúde, tanto física quanto mental.
Já para Thiago Queiroz, psicanalista e pai de quatro crianças, dois fatores são decisivos para que muitos ainda se manifestem a favor da violência como um recurso educativo.
“O primeiro é o fator cultural. Ainda é culturalmente aceitável que a criança seja violentada, humilhada, e sofra diversos tipos de abuso. É como se a infância não fosse uma parte da existência do ser humano”, diz. “O segundo é a falta de recursos. Quando se desconhece outras maneiras de educar, muitos pais e mães vão utilizar algum tipo de violência com seus filhos.”
Crianças e adolescentes são a população que mais sofre violação de direitos no Brasil, segundo dados do Disque 100 (Disque Direitos Humanos). Em 2023, o serviço registrou 228 mil denúncias que englobam violências físicas, sexuais e psicológicas.
Esforço coletivo para reverter uma cultura de violências
Para os especialistas ouvidos por Lunetas, os 10 anos da Lei Menino Bernardo ou Lei da Palmada (Lei 13.010/2014) foram importantes para romper com a banalização dos castigos físicos e o tratamento violento contra crianças e adolescentes. Por outro lado, apontam a falta de políticas públicas para que a legislação seja totalmente efetiva.
Com caráter preventivo e pedagógico, e não punitivo, a lei marcou um avanço para o Brasil ao alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estabelecer o direito da criança e do adolescente de crescer livre de violências físicas e psicológicas. Assim, estabeleceu que cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios atuar de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, além de promoverem campanhas educativas permanentes para divulgar o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem violência. Após a morte de Bernardo Boldrini, assassinado pelo pai e pela madrasta aos 11 anos, o objetivo é contribuir para o rompimento de ciclos de violência e criar uma cultura de paz.
De acordo com Soraia Melo, coordenadora da Rede Não Bata, Eduque, “nossa estrutura social é violenta”. Por isso, diz, “é urgente um esforço coletivo para essa mudança cultural”.
Porém, enquanto a parentalidade positiva tenta desfazer crenças como a educação por tapas e palmadas, algumas crianças batem em outras ou são vítimas de algum tipo de violência.
Nessas situações, a educadora parental Fernanda Fontes alerta que o adulto precisa intervir. Isso porque as crianças – tanto a que bate quanto a que apanha – ainda não têm recursos cognitivos para resolver sozinhas, nem são maduras emocionalmente.
Então, segundo ela, “não adianta ir pelo caminho do ‘É feio, você fez errado, resolva sozinho’”. Em vez disso, ela sugere falar: “Entendi sua raiva e vou te mostrar o que fazer quando sentir isso da próxima vez. Agora vamos lá ver o amiguinho que se machucou”.
Famílias tentam manter uma educação não violenta
A conversa foi a aposta de Sílvia* para ouvir a filha Elena*, 8, que tem sido vítima de violência na escola. A troca entre as duas serve para a mãe ensinar a filha “a se defender dos amigos e não fazer igual”, diz. “Sinto que a Elena está sempre na defensiva. Quando chega em casa, preciso desarmá-la.”
O acolhimento e o diálogo também foram a escolha de Camila Nunes, mãe de Pedro, 7. Ao notar que o filho voltou cabisbaixo da escola, ela o chamou para conversar. Naquele dia, Pedro contou que tinha sofrido violência física de alguns colegas.
“Nós o escutamos com bastante atenção, sem julgamentos. Tentamos entender se as agressões foram em algum contexto de briga, e não foram”, conta. “Ao mesmo tempo que tomamos muito cuidado para não estigmatizar as crianças que bateram no Pedro, minha preocupação era também que ele não reagisse da mesma forma ao que estava sofrendo”, ressalta.
“A criança que bate é geralmente repreendida e castigada. Mas essa agressividade não é intencional, ela é funcional. Isso porque essa atitude comunica algo e, para descobrir, é preciso acolher e olhar pela perspectiva dessa criança”, afirma Fernanda. “Só assim poderemos ajudá-la de maneira efetiva. A criança que apanha também precisa ser acolhida e ensinada a estabelecer limites, dizendo ao outro ‘Não gosto que me bata’, por exemplo.”
Para criar espaços de reflexão e romper ciclos da violência, a Rede Não Bata, Eduque traz orientações na Cartilha da Lei Menino Bernardo e promove oficinas de formação sobre a lei, para responsáveis por crianças e adolescentes e profissionais que atuam no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão que busca fortalecer o ECA e garantir a proteção integral à infância e adolescência. Nesses encontros, em que a essência é acolher com empatia, é frequente ouvir sobre “o quão necessário é ter espaços de escuta, o interesse em aprender estratégias e incorporar ações de autocuidado”, conta Soraia.
O que ainda falta depois da Lei Menino Bernardo?
Lucas Lopes, secretário executivo da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, avalia a importância de uma lei como essa no Brasil, que alterou normas e valores sociais que perpetuaram, ao longo de gerações, os castigos físicos e humilhantes contra crianças e adolescentes.
Para ele, a lei incentiva a adoção de práticas não violentas de educação e cuidado. No entanto, Lopes afirma que é preciso um investimento suficiente, que garanta abrangência e qualidade a programas e serviços de atenção e apoio aos envolvidos.
“Uma lei como essa precisa ser assimilada como um valor e uma conquista”, diz. Nesse sentido, “a celebração dos 10 anos da Lei Menino Bernardo deve mobilizar Estado, família e sociedade a construir, com crianças e adolescentes, relações, ambientes e instituições comprometidas com a não violência, o diálogo e a participação”.
* Alguns nomes são fictícios para preservar a identidade das pessoas nesta reportagem.
Violência ainda é natural para brasileiros
Um em cada quatro brasileiros concorda que o tapa é uma medida educativa aceitável. Os dados são da Pesquisa Nacional Sobre Atitudes e Percepções Sobre Maus-Tratos e Violência Contra Crianças e Adolescentes no Brasil, de 2023. São 27% os que afirmam que educar com castigo é melhor que diálogo e 38% dizem já terem usado algum objeto para bater no filho ou filha. A pesquisa realizada pelo projeto PIPAS – Primeira Infância para Adultos Saudáveis, do Ministério da Saúde e da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, também de 2023, traz um cenário parecido: 35% dos cuidadores revelam dar palmadas como medida educativa e 33% admitem gritar com as crianças.