Ao conceder o benefício integral a apenas uma das mães, as especificidades de famílias homoafetivas são desconsideradas
O STF estendeu a licença-maternidade de 120 dias para mães não-gestantes em união estável homoafetiva. Porém, só uma delas poderá gozar do benefício, enquanto a outra deve tirar cinco dias, o equivalente à licença-paternidade. Casais de mulheres criticam a decisão.
A partir de agora, a mãe não-gestante também poderá usufruir da licença-maternidade em uma relação homoafetiva entre duas mulheres. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) da última quarta-feira (13), porém, define que apenas uma das mães pode gozar do benefício. Se a mulher que gestou o bebê solicitar a licença, a companheira poderá tirar cinco dias, que é o equivalente à licença-paternidade atual.
Olívia Janequine, 41, não se sentiu representada nem acolhida pela decisão do STF. Ela é a mãe não-gestante da Marina, que nasceu há 15 dias. “Na verdade, essa decisão não é uma extensão da licença-maternidade para a mãe não-gestante, é um acochambrado malfeito para classificar a mãe não-gestante como um pai”, afirma. De acordo com ela, a concepção de família formada por um homem e uma mulher ainda está cristalizada na sociedade.
A ação que pautou essa decisão foi movida por um casal de mulheres. A mãe que engravidou por inseminação é autônoma e não teve o direito à licença, que é prevista apenas em regimes de trabalho CLT ou em cargos públicos. Já a mãe que forneceu o óvulo é servidora pública e conseguiu na Justiça o direito ao afastamento remunerado. Mas, o município de São Bernardo do Campo (SP), onde ela trabalha, recorreu da decisão na Corte Superior.
“[A decisão] consolida a falta de acesso a direitos de uma das mães. Só em cenários muito específicos essa decisão pode ser boa”, ressalta Janequine se referindo a casos em que a mãe gestante não tem nenhuma possibilidade de obter a licença.
Durante a sessão, o ministro e relator Luiz Fux ressaltou que a licença-maternidade promove a proteção da infância e das mães. Ele reconheceu que mães adotivas e não-gestantes também arcam com as tarefas de cuidado e devem zelar igualmente pela formação do vínculo familiar. A decisão final por unanimidade, no entanto, levou em conta que “duas licenças [maternidade] cheias poderiam sobrecarregar sobremodo a previdência”, segundo Fux.
Os ministros Alexandre de Morais, Carmem Lúcia e Dias Toffoli foram os únicos que se pronunciaram a favor de ambas as mães terem o direito à licença simultaneamente. “A Constituição estabeleceu uma licença maior para a mãe, vislumbrando a condição de mulher. Se as duas são mulheres , as duas são mães, é o Supremo que vai dizer uma pode e outra está equiparando a licença-paternidade? Estamos replicando o modelo tradicional, homem e mulher”. Essa tese do ministro Alexandre de Moraes foi derrotada pela maioria.
O plenário do STF que votou a licença-maternidade para famílias com duas mães é o mesmo que recentemente reconheceu a falta de uma lei que regulamente a licença-paternidade. Assim, fixou um prazo de 18 meses para o Congresso editar uma proposta que torne o período mais próximo ao das mães.
Luiza Galvão é especializada em apoiar a comunidade LGBTQIA+ em casos como esses. Ela acredita que a “tese simplista” utilizada para julgar o caso “é um retrocesso”, que não resguarda as especificidades da dupla maternidade. “O que possivelmente acontecerá daqui para frente é uma restrição quanto à interpretação destes temas [nos processos que vierem nesse sentido]”, explica a advogada.
Além disso, a decisão que só permite que uma das mães tenha o direito à licença “delegou para as famílias decidirem quem é que vai dedicar os cuidados nos primeiros meses de vida” e não leva em conta as mães não-gestantes que amamentam”, lembra Galvão.
Outro ponto desconsiderado, na opinião de Janequine, é o alto índice de informalidade do mercado de trabalho que atinge principalmente as mulheres. “Tem um monte de mães e gestantes sem ter direitos trabalhistas plenos”, comenta. “A decisão do STF acabou consolidando algo que estava em aberto e que poderia ter sido uma ampliação real de direitos.”
Garantir a convivência com ambas as mães seria uma forma efetiva de colocar a criança como prioridade absoluta, como prevê o artigo 227 da Constituição. Contudo, “a decisão do STF restringe esta participação, ao igualar a licença de uma das mães à licença-paternidade”, argumenta Galvão. “Precisamos aproveitar este debate [sobre licença parental] para trazer outras questões de parentalidade. E, assim, falar sobre divisão do trabalho, responsabilidade de cuidado e formação do vínculo familiar.”
Desde 2021, um projeto de licença parental prevê 180 dias para ambos responsáveis no nascimento ou na adoção de uma criança, mas ainda não ganhou força para ser votado.
Atualmente, o Cartório de Registro Civil registra oficialmente 82 mil famílias LGBTQIA+ em todo o país. Entre 2013 e 2021, a maioria dos casamentos homoafetivos foi entre mulheres (57,1%), como mostra o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, do governo federal.