Aluno ensina professor? Crianças podem mudar o mundo brincando

Analisar as vivências infantis por meio da documentação pedagógica abre um caminho para o protagonismo das crianças nas escolas

João Silva Publicado em 13.02.2023
Foto de uma professora sentada junto de três crianças enquanto fazem uma tarefa escolar
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Resumo

A documentação pedagógica ajuda os professores a construírem uma abordagem que valoriza o cotidiano e as ações das crianças sem julgamento, cria uma memória da infância e aproxima as famílias ao compartilhar as informações do que acontece nas escolas.

Gostaria de começar contando um fato marcante em minha trajetória como professor das infâncias e o que me levou, sem caminho de volta, à documentação pedagógica. Em uma sala de aula enfeitada com produções prontas de E.V.A (etileno acetato de vinila), não pensada para as crianças viverem suas descobertas e interagirem, uma menina pega na minha mão e me convida para sentar no chão, ao seu lado. Quando seu pedido é atendido, a menina abre um sorriso encantador e inicia um diálogo sobre princesas, bonecas e músicas. Rapidamente seus colegas se aproximam para participar da conversa, que dura cerca de 10 minutos. Após ter sido escutada, a menina agradece, levanta e retorna às brincadeiras em grupo.

Quantos momentos significativos de nossas crianças são esquecidos ou não valorizados quando o educador não está atento às linguagens delas? O protagonismo infantil acaba ficando em segundo plano na ação pedagógica do professor. Contudo, esses momentos de escuta e observação são primordiais em nossa rotina na educação infantil. Quando o educador tem a sensibilidade de escutar as crianças, ele passa a valorizá-las e a enxergá-las como um todo.

Pensar em registrar as experiências vividas nas escolas é tornar visível suas ações do cotidiano, atentar-se aos momentos de brincadeiras e interações, promovendo uma escuta sem julgamentos. Compartilhar e discutir esses registros qualifica o trabalho com as crianças, com um professor atento às suas vontades e que possa enaltecer as suas descobertas diárias.

A documentação pedagógica é um apoio para o educador ver e rever as ações cotidianas das crianças, realizando anotações, fotografias, gravações de áudio ou vídeos. Quando pensamos nesses registros da educação infantil, devemos levar em consideração o seguinte ponto: quando eu, professor, estou registrando, eu me torno um autor atento e devo buscar a melhor maneira para escrever e narrar essas histórias, pois elas serão lidas pela comunidade, pelas famílias e por outros professores.

Mas essas anotações do cotidiano também precisam ser “lidas” pelas crianças. Se estamos registrando suas ações, elas precisam revisitar e enxergar aquilo que fizeram, no sentido de continuidade e respeito, valorizando o seu protagonismo. “É um grande desafio para todos os docentes perceber a criança como centro desse processo e estabelecer relações horizontais com ela”, aponta a professora Luciana Ostetto, em seu livro “Registros na educação infantil: pesquisa e prática pedagógica”.

Compartilhar esses registros com a comunidade aumenta a confiança das famílias nas creches e nas pré-escolas ao quebrar o conceito de que os espaços da educação infantil são locais sem importância ou até mesmo um ambiente onde as crianças passam o seu tempo sem produzir, apenas assistindo a desenhos. Como Paulo Freire nos diz, as escolas precisam arquitetar espaços visíveis para as famílias enxergarem os vividos e as produções das crianças, como painéis, fotografias, vídeos no hall de entrada, entre outras possibilidades.

O que assusta são os muitos educadores enraizados na concepção da produção pronta, das cópias, folhas A4, deixando de lado as vivências e os momentos das crianças, os pequenos detalhes. A vontade da criança acaba em segundo plano, prevalecendo a autoridade imposta pelo adulto, pois, na concepção de alguns professores, somente eles são os detentores do conhecimento. Precisamos (re)educar esses olhares sobre as infâncias, rompendo com os velhos paradigmas da educação infantil.

Momentos de experiências para as crianças são mágicos. Neles, elas passam a se expressar como um todo para o mundo, nutrindo a essência de ser criança no cotidiano.

Ser uma criança livre é revolucionário! Cabe a nós, educadores, conduzir as crianças por este caminho. Segundo o educador italiano Loris Malaguzzi, o professor deve manter o mesmo senso de encantamento e curiosidade das crianças, para poder trabalhar com elas e potencializar suas linguagens. Chegar perto delas exige sensibilidade e empatia. Quando respeitamos as culturas da infância, estamos no caminho certo de uma escola realmente pensada e planejada para as crianças, enxergando suas expressividades simbólicas, lúdicas e cognitivas. Historicamente o mundo adulto é carente de um olhar respeitoso sobre as infâncias, prevalecendo os ecos dos adultos sobre elas.

Através de registros fica visível que as crianças aprendem o tempo todo, não apenas quando os adultos ensinam. Elas aprendem com seus pares, com os materiais ofertados e com o espaço proposto para as suas vivências.

Nossas crianças são produtoras de culturas, protagonistas e potencializadoras de aprendizagens significativas.

Com o auxílio da documentação podemos construir uma abordagem pedagógica que valorize a vida, o cotidiano e a escuta de crianças de modo que suas produções culturais estejam interligadas à ética entre os adultos e as infâncias vivas e vividas.

Se defendemos infâncias visíveis, devemos ofertar pedagogias em que a criança seja ativa na chegada e na saída da educação infantil. Compartilhar a documentação pedagógica representa participar de um verdadeiro ato de democracia, dando suporte à visibilidade e à cultura, tanto dentro quanto fora da escola: participação democrática, ou democracia participante, que é resultado da troca e da visibilidade”, escreveu Carla Rinaldi em “Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender”.

Os educadores de Reggio Emilia, cidade no norte da Itália, referência na educação infantil, enfatizam três funções da documentação pedagógica: oferecer às crianças uma memória, oferecer aos educadores uma ferramenta para pesquisa e uma chave para melhoria e renovação contínua, e oferecer aos pais e ao público informações detalhadas sobre o que ocorre nas escolas, como um meio de receber suas reações e apoio.

Essa memória é fundamental para revisitar ações, refletir sobre momentos e acompanhar o desenvolvimento das crianças, não apenas se basear na avaliação como instrumento de julgamento e comparação das crianças, que expõe de forma errônea suas aprendizagens. O educador não deve ficar preso às etapas do desenvolvimento ao acelerar as crianças, sem respeitar o seu tempo e suas vontades.

A sabedoria infantil deve estar no centro do aprendizado.

* João Luiz Silva é pedagogo, mestre em Educação, autor do livro “Por infâncias vivas e vividas” e professor das infâncias.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.


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