A cultura do estupro que destrói o direito a um parto seguro

Até quando a violência contra mulheres seguirá atravessando espaços que deveriam garantir segurança, acolhimento e proteção?

Eduarda Ramos Camilla Hoshino Publicado em 11.07.2022 Atualizado em 05.09.2022
Foto em preto e branco de uma mulher deitada em um leito. A imagem ilustra uma matéria sobre estupro no parto.
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Resumo

Múltiplas violências atravessam o parto de uma vítima, dopada e violentada sexualmente por um anestesista. Descoberto após a desconfiança de funcionárias do hospital que filmaram secretamente o abuso, o médico foi preso em flagrante.

Hoje (11), chegou ao conhecimento público que o anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi preso em flagrante pelo estupro de uma mulher durante uma cesariana. Uma série de violências atravessaram a vítima no momento de dar à luz: estar sem o acompanhante de maneira integral durante o parto; o excesso de anestesia utilizada no procedimento; e o estupro de vulnerável, crime com pena de 8 a 15 anos de reclusão. Além disso, a imagem da parturiente circulou em diversos veículos de comunicação, expondo o corpo feminino a mais esse tipo de violência. 

Enfermeiras e técnicas do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti (RJ), passaram a desconfiar do comportamento do médico devido à quantia de sedativo utilizado: as mulheres que receberam analgesia do médico ficaram dopadas. Em cesarianas, é altamente recomendado que a mulher esteja acordada e consciente durante a cirurgia, visto que a sedação também pode afetar o bebê. Elas se uniram para mudar a sala de parto na última hora e conseguiram filmar com uma câmera escondida o momento em que o médico abusa sexualmente da parturiente.

“Embora seja muito doloroso, é difícil que haja outro caminho para a condenação de estupradores senão com uma prova dessa força”, afirma Ruth Rodrigues, advogada e presidente do coletivo nacional de enfrentamento à violência obstétrica, Nascer Direito.

Quantas mulheres denunciam abusos e estupros e são questionadas?

“Quantas crianças vulneráveis são violentadas e desacreditadas?”, questiona. Esse caso, segundo Ruth, é mais um reforço de que as mulheres devem se proteger nunca aceitando ficar sozinhas em procedimentos que têm anestesia.

Em relação à ampla divulgação do vídeo (mesmo tendo sido gravado por terceiros) e ao ato de violência sexual em si, a advogada Mariana Serrano orienta que é possível que a vítima peça indenização ao próprio médico, não sendo necessário aguardar o resultado de eventual ação penal. Além disso, de acordo com Mariana, a vítima pode solicitar indenização por parte do hospital pela violação do direito de estar com acompanhante em tempo integral, eventual separação prematura entre ela e o bebê (motivo pelo qual, segundo alega o hospital, ela estava sem acompanhante) e pelo desrespeito ao dever de vigilância de um médico contratado.

A classe médica é uma classe bastante corporativista, o que talvez explique o conforto que o anestesista sentiu em fazer isso com o centro cirúrgico cheio“, diz. Por outro lado, como observa a advogada, há a percepção de que quem não é médico, como enfermeiros, técnicos e instrumentadores, têm menos voz. “Isso pode explicar a postura das enfermeiras que, desconfiando da prática de algum crime, se preocuparam em produzir provas, já que uma simples denúncia interna provavelmente não só não repercutiria em nada para o médico, como também possivelmente levaria a consequências negativas para elas próprias.”

Segundo levantamento realizado pelo The Intercept, foram registrados 1.734 casos de violência sexual em hospitais de nove estados brasileiros, entre 2014 e 2019. São 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. Os números reais de casos de violência sexual em hospitais são imensuráveis, considerando a ausência de dados dos 18 estados restantes e de um histórico de subnotificações. Apesar da maioria dos casos de estupro acontecer com pessoas conhecidas da vítima, a denúncia de desconhecidos também é atravessada pelo medo e possibilidade de revitimização ao relatar a violência sofrida. Para evitar esse constrangimento, Ruth explica que o ideal é que a vítima preste um único depoimento ao sistema de justiça durante todo o processo e que não seja mais abordada para falar sobre isso.

De acordo com o 16º Anuário Brasileiro de Violência e Segurança Pública, 66.020 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados no Brasil em 2021 – um aumento de 4,2% comparado a 2020. Dos casos, 75,5% são estupro de vulnerável – que inclui crianças menores de 14 anos e/ou pessoas adultas incapazes de consentir.

A violência obstétrica que vai além do parir

Apesar de ser  garantido pela Lei 11.108/2005, o direito de ter um acompanhante no período pré-parto, parto e pós-parto imediato é constantemente violado. Segundo levantamento realizado pelo Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade na cartilha “Direitos das mulheres no parto”, 24,5% das mulheres não tiveram acompanhante algum durante o parto, 18,8% tinham companhia contínua e 56,7% tiveram acompanhamento parcial. Quando o acompanhante da paciente saiu da sala de cirurgia, o médico montou uma estrutura entre aventais e lençóis cirúrgicos que impediam a visualização completa da vítima – o restante da equipe médica trabalhava ao lado quando a violência ocorreu.

Além da violência cometida, as testemunhas relatam que as parturientes de Giovanni ficavam “completamente fora de si” com a analgesia – o que cria obstáculos para segurar os bebês após o nascimento, e dificulta o contato pele a pele das mães com seus filhos e de amamentar na primeira hora de vida do bebê. O contato físico entre a mãe e o bebê durante os primeiros momentos de vida do recém-nascido também é indicado para nascimentos feitos por cesarianas, e deve ser encorajado e facilitado pela equipe médica.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) abriu um processo para cassar o médico, além de realizar procedimento cautelar para suspensão imediata da atuação de Giovanni. Após a prisão em flagrante, a polícia está investigando outras possíveis vítimas do anestesista.

Em caso de suspeitas de violência, a advogada Mariana Serrano orienta acionar o conselho de ética interno do hospital em que possivelmente ocorreu a violência, o Conselho Regional de Medicina do estado em questão, uma autoridade policial e o Ministério Público, preferencialmente acompanhada de uma advogada mulher e comprometida com a defesa dos direitos das mulheres.

* Conteúdo produzido com informações de The Intercept e Portal G1.

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