“A alfabetização é uma fase cheia de descobertas que transforma o cérebro das crianças para sempre”, diz Ariane Simão de Souza, professora da rede municipal de Canoas, no Rio Grande do Sul. “Quando elas aprendem a ler, passam a ver o mundo com outros olhos. Além disso, ganham voz, se expressam mais, compreendem histórias e se enxergam como parte ativa da sociedade.”
Segundo Ariane, “esse é o momento em que a criança começa a conquistar autonomia para acessar o mundo por meio da leitura e da escrita. Ou seja, vai muito além de apenas juntar letras.”
Mas, para tudo isso acontecer, é preciso ensinar de forma intencional, com estratégias adequadas e muita criatividade. Afinal, são os métodos criativos que despertam o interesse por ler e escrever, afirma o professor e palestrante Givanilson Soares. “Quando usamos músicas, jogos e elementos culturais próximos à realidade das crianças, criamos um ambiente de aprendizagem afetivo.”
“Estratégias que fogem de métodos tradicionais ajudam na compreensão das estruturas da língua e desenvolvem habilidades como autoestima, confiança e senso de pertencimento”, explica Givanilson.
Música, rimas e ritmo
Na rede municipal do Recife, Givanilson Soares criou um projeto a partir de músicas do repertório das crianças, para trabalhar estruturas silábicas e aspectos da alfabetização.
Primeiro, professor e alunos escolhiam músicas com refrões marcantes. Em seguida, trabalhavam a letra, destacando palavras-chave, separando-as em sílabas e criando atividades lúdicas: jogos de rimas, leitura rítmica e, por fim, criação de novas canções.
“Também discutíamos o contexto cultural dessas músicas, fortalecendo a identidade e o senso crítico”, relata o professor. “Projetos criativos permitem que a criança seja protagonista do seu aprendizado, estimulando a experimentação, a descoberta e a conexão entre o que aprende e o que vive no dia a dia.”
Prazer e ludicidade
A alfabetização é um marco na vida escolar. Portanto, esse momento precisa ser prazeroso. “São meninos e meninas que acabam de sair da primeira infância. Para eles, aprender brincando faz toda a diferença. É isso que vai despertar a curiosidade, manter o interesse e fortalecer a aprendizagem”, afirma Daniela Caldeirinha, vice-presidente de educação da Fundação Lemann.
Daniela acredita que o mais importante é combinar rigor técnico com práticas pedagógicas criativas, que façam a criança querer ler e escrever cada vez mais. Segundo ela, “quando a criança percebe sentido no que está aprendendo, engaja mais, avança com segurança e constrói bases sólidas para continuar aprendendo ao longo da vida.”
“O lúdico não é um detalhe, é um recurso essencial para garantir que o direito à alfabetização se concretize.”
Base para todo o processo de aprendizado
“É preciso aprender a ler e depois ler para aprender”, diz Daniela Caldeirinha. “A alfabetização é a base sobre a qual a trajetória escolar se constrói. Quando essa etapa não acontece no tempo certo, os impactos são grandes: aumento das taxas de reprovação, distorção idade-série e até a evasão escolar”, explica.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estipula que toda criança deve ser alfabetizada até o segundo ano do ensino fundamental, por volta dos sete anos de idade. Segundo Daniela, esse é um direito essencial que dá condição mínima para que cada pessoa possa exercer sua cidadania e desenvolver plenamente seu potencial.
Em 2024, 59,2% das crianças das redes públicas de ensino estavam alfabetizadas na idade correta, de acordo com o indicador “Criança alfabetizada”, do Ministério da Educação (MEC), divulgado em julho deste ano. O número é um avanço comparado a 2023, mas não cumpriu a meta de 60%.
O MEC considera estudantes alfabetizados aqueles que leem pequenos textos e conseguem ter conclusões básicas da linguagem verbal e não verbal, e que escrevem textos curtos, mesmo com alguns erros. A meta é gradualmente aumentar até chegar a 80%, em 2030.
“Estamos no caminho certo, mas ainda há muito por fazer: os números podem – e precisam – ser melhores. Para isso, é fundamental que a alfabetização seja tratada como prioridade nacional, recebendo atenção política e investimentos de todas as esferas de governo”, avalia Daniela.
“A meta de 80% até 2030 é factível, mas pode ser mais ousada”, diz. “Se o Brasil utilizar bem os recursos disponíveis, podemos chegar a um cenário ainda mais transformador e garantir que todas as crianças estejam lendo e escrevendo até o segundo ano do ensino fundamental.”
Escolas públicas e escolas privadas
Para Givanilson Soares, a grande diferença na alfabetização em escolas públicas e privadas não está nos métodos, mas nas condições de implementação.
“Nas escolas particulares, geralmente há turmas menores, maior acesso a materiais didáticos, tecnologia e acompanhamento individualizado. Isso permite que a alfabetização aconteça de maneira planejada e, muitas vezes, com mais recursos de apoio”, explica o professor. “Já nas escolas públicas, os professores enfrentam desafios como turmas numerosas, carência de materiais, infraestrutura limitada e, em alguns casos, contextos sociais que impactam o aprendizado, como a falta de acesso a livros em casa ou situações de vulnerabilidade.”
Por outro lado, ele afirma que muitas escolas públicas têm avançado e o motivo é exatamente a criatividade e a resiliência dos professores. “Eles adaptam metodologias, utilizam projetos culturais, musicais e lúdicos, e criam estratégias inovadoras mesmo com poucos recursos. A diferença está mais ligada às condições estruturais e ao suporte recebido do que à competência pedagógica em si.”
Professores bem formados
Givanilson Soares acredita que, no momento da alfabetização, a ligação entre o conteúdo e a vivência da criança é essencial para que a leitura e a escrita façam sentido. Para isso, professores devem ter ferramentas práticas e estratégias que se encaixem na rotina da sala de aula.
Segundo o professor, alguns pontos importantes dessa formação são:
- Diagnóstico do nível de aprendizagem: identificar em que etapa cada criança está para personalizar as intervenções.
- Métodos ativos de alfabetização: usar jogos, músicas, literatura infantil e atividades lúdicas que tornam o aprendizado mais prazeroso.
- Integração com a BNCC: garantir que as práticas estejam alinhadas às competências gerais e específicas previstas no currículo.
- Leitura e escrita com sentido: trabalhar textos que dialoguem com o universo cultural da criança, para que ela perceba funcionalidade no que aprende.
- Formação de leitores críticos: desde cedo, inserir atividades que estimulem interpretação, questionamento e criatividade, não apenas decodificação.
- Acompanhamento e avaliação contínua: ferramentas simples e eficazes para monitorar o progresso sem burocratizar o processo.
“Não precisa ser complexo, nem ter grandes investimentos ou metodologias mirabolantes. Muitas vezes, a inovação nasce do simples bem feito, da capacidade de olhar para os recursos que já temos e usá-los de maneira criativa e intencional”, afirma Givanilson.
Além da música, ele sugere rodas de leitura que envolvam a comunidade, a reorganização da sala para estimular a colaboração, ou até jogos construídos com materiais reciclados. “Tudo isso pode ser altamente inovador, porque transforma a experiência de aprendizagem.”
Estímulos em casa
Famílias e cuidadores também têm um papel importante na alfabetização das crianças. Basta criar um ambiente rico em linguagem, afirma a professora Ariane Simão de Souza.
Para desenvolver a consciência fonológica, que leva ao aprendizado de relacionar os sons às letras, ela indica algumas atividades:
- Conversar bastante com a criança, usando um vocabulário variado. Contar histórias do dia a dia, fazer perguntas e escutar com atenção ajuda a desenvolver a oralidade, que é a base para a alfabetização;
- Colocar a criança em contato com livros e materiais impressos. Ler para elas todos os dias, mesmo que por poucos minutos, desperta o interesse pela leitura e amplia o repertório de palavras;
- Mostrar como a escrita está presente na rotina: ler placas na rua, receitas, listas de compras e embalagens;
- Brincar com os sons das palavras fazendo rimas, contando quantas sílabas as palavras têm, comparando o tamanho das palavras, cantando músicas e brincando com jogos de adivinhação.
A professora ressalta a importância de valorizar cada pequena conquista: “Quando a criança se arrisca a escrever ou ler, mesmo que com erros, ela precisa de incentivo, e não de críticas. Assim, ela ganha confiança para continuar aprendendo. Ou seja, o papel da família é cuidar, incentivar e fazer da leitura e da escrita algo prazeroso, enquanto o professor conduz o ensino de forma estruturada e intencional na escola.”
“Quando escola e família trabalham juntas, a alfabetização se torna muito mais significativa e potente.”
Para que assuntos ligados à alfabetização sejam discutidos no mundo todo, enfatizando sua importância no desenvolvimento social e econômico dos países, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) criou, em 1967, o Dia Mundial da Alfabetização, celebrado em 8 de setembro.