Crianças internadas por covid-19: pais relatam como é estar longe

A pandemia tem levado crianças a passarem dias separadas de pais e mães, que sentem a impotência de não poder cuidar dos filhos e o medo de perdê-los

Alice de Souza Publicado em 31.03.2021
Foto em preto e branco de uma criança, com máscara, deitada em um leito, com olhar triste
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Resumo

Quando vidas se transformaram em números, percentuais estão diluindo as histórias e deixando em segundo plano a dor de famílias que são separadas de suas crianças internadas por covid-19. O Lunetas conversou com pais e mães que passaram por essa experiência.

O diagnóstico positivo para a covid-19 tornou real o medo que Adriana Gonzaga, 45, tinha desde o começo da pandemia: ver a filha Maria Clara, 12, adoecer. A menina tem síndrome de Down e, por isso, apresenta comorbidades para a doença, como complicações nas vias respiratórias. Depois do resultado do teste, a família passou a ir ao hospital a cada dois dias, por precaução, mas não conseguiu evitar que o quadro se agravasse. Em uma semana, Maria sentiu um cansaço muito forte e foi socorrida. Já estava com metade do pulmão comprometido. Foi internada na UTI e, depois, intubada. A partir dali, passou 14 dias isolada, longe dos pais. “Foi a pior notícia da minha vida, eu nunca imaginei passar o sofrimento que vivemos naqueles dias”, lembra Adriana.

Os dados do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde mostram que as crianças infectadas pela doença, na maioria das vezes, terão formas clínicas leves ou assintomáticas. Isso não quer dizer, por outro lado, que esse é um grupo etário imune ao novo coronavírus. Existem várias Maria Claras no Brasil ao longo desse um ano de pandemia. Em 2020, 14.638 crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram hospitalizados por causa da covid-19. Eles representam 2,46% das internações. Também no ano passado, 1,2 mil morreram pela doença. Em 2021, já são 2.057 internações e 121 óbitos de crianças e adolescentes. Contudo, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), este ano apresenta menor taxa de letalidade e agravamento da doença em crianças e adolescentes em comparação a 2020.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante o direito de permanência de um familiar com a criança ou adolescente hospitalizado, porém, a pandemia e suas restrições sanitárias nem sempre permitem que isso aconteça. No contexto em que vidas se transformaram em números, percentuais estão diluindo as histórias e deixando em segundo plano a dor de famílias como a de Adriana e Maria Clara, separadas por uma hospitalização durante a pandemia. 

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Arquivo pessoal

Maria Clara, 12 anos, foi internada, intubada e passou 68 dias no hospital devido a complicações da covid-19. A menina voltou para casa no dia 6 de fevereiro, e sua recuperação foi muito celebrada na pequena cidade onde vive, Doutor Camargo (PR), com pouco mais de 5 mil habitantes

Maria Clara passou 68 dias no hospital, entre os meses de novembro e fevereiro. Desses, 55 dias na UTI, 14 em isolamento total. A família só tinha notícias uma vez por dia, quando recebia ligação dos médicos, sempre às 10h. Se o telefone demorasse a tocar, o desespero tomava conta. Adriana precisou lidar com a sensação de impotência e de não poder cuidar da filha como gostaria. “A palavra é essa: angústia. Meu medo era de ter acontecido alguma coisa”, desabafa. 

“Eu tinha muito medo de perdê-la, pois a situação era muito grave, e temia por ela estar com medo também de ficar sozinha na UTI”

O que a família mais desejava era estar ao lado da menina, a única coisa que não podia. “Por mais que não possa fazer nada, ficar ao lado da pessoa é uma forma de ajudar e ver o que está acontecendo”, conta.

Segundo o psicólogo, escritor e colunista do Lunetas Alexandre Coimbra Amaral, ver um filho ser internado rompe com várias expectativas da parentalidade, a primeira delas ligada ao próprio significado simbólico da infância. “A criança remete ao início da vida, é a conexão com o porvir”, explica. 

“Uma característica existencial da maternidade e paternidade é o nascimento da criança; pensar na morte torna-se algo assustador”

Por isso, o internamento de crianças por covid-19 parece um contrassenso e marca as famílias. “A pandemia fez os pais entrarem em contato com essa angústia, ocultada antes pelas tarefas da vida”, afirma Alexandre. Os pais também sofrem com a impossibilidade de estarem presentes nos momentos de dor dos filhos, ao precisar delegar o cuidado a desconhecidos e profissionais de saúde. 

“A criança também olha os pais como promessa de futuro. Quando há esse impedimento de estarem juntos, por causa dos protocolos sanitários, é preciso inventar novas formas de garantir isso a elas”

Sem poder ver Maria Clara, Adriana e o marido chegaram a sair de casa e ir até a porta do hospital, apenas para passar boas energias à filha. Da primeira vez em que tentaram tirar o respirador mecânico, foi uma alegria, mas que durou pouco. “Me ligaram, corri para o hospital, mas quando cheguei lá já tinham a intubado novamente. Sem a gente por perto, ela deve ter ficado muito assustada com o que viu”, imagina Adriana.

O medo do que o filho veria no hospital também afrontou Débora Pereira, 24, de São Lourenço da Mata (PE). Até hoje, passados nove meses da internação, ela não entende como o menino foi diagnosticado com covid-19. “Ele estava muito fraco, com febre, e com o olhar fundo, pálido. Quando cheguei ao hospital, ele foi imediatamente transferido para outra unidade e lá soube que seria intubado e levado para a UTI.” Diante da notícia, Débora lembra o desespero. Chegou a se ajoelhar para os profissionais de saúde e pedir para ficar com o filho. “Me disseram que era arriscado, por causa da pandemia. Chorei, chorei muito. Pensei que o mundo ia acabar”, conta.

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Arquivo pessoal

Lucas, 2 anos, de São Lourenço da Mata (PE), foi intubado e passou 31 dias no hospital. Após a recuperação, Lucas voltou para casa com uma nova rotina, em função da diabetes descoberta enquanto estava internado

Segundo ela, Lucas, 2, foi primeiro diagnosticado com diabetes, uma doença até então desconhecida pela família. Somente durante a semana em que ficou na UTI veio a confirmação da covid. “Eu não sei se ele pegou no hospital, mas em casa já estava muito cansado, sem ar, sem respirar direito.” Débora recebia informações do filho quando ligava para o hospital, todos os dias, às 14h.

“Cheguei a ir até a ouvidoria para pedir para ver meu filho por videochamada”

Para Alexandre, elementos como a videochamada, cartas ou até levar um brinquedo da criança para o hospital podem amenizar o distanciamento. “Os pais precisam lidar com a angústia de ter delegado o cuidado. É um processo que, para eles, pode ser entendido até como negligência”, explica. 

“Essa experiência é também um diálogo sobre a onipotência materna e paterna, e nos mostra o quão limitados somos, tantas vezes, no exercício da parentalidade. A pandemia, nesse sentido, é o fim da nossa ilusão de controle”

Crianças e covid-19: reencontro com os pais após internação

Depois que Maria Clara saiu do isolamento, Adriana pode ficar ao lado da filha, mesmo na UTI. Foi um novo período de angústia, mas também de esperança. “A partir do momento em que tiraram o tubo e a sedação, pudemos ficar lá. Foi um sofrimento ver ela tentar se comunicar, sem conseguir falar. Por outro lado, mudou tudo, pois a gente acompanhava mais de perto. A esperança de melhora era maior”, diz Adriana. 

Maria Clara passou mais 12 dias na enfermaria, se alimentando por sonda, sem conseguir sequer firmar o pescoço ou andar. Adriana e o marido passaram a se revezar para dormir com a menina, o que mudou a rotina profissional também. “Deixei meu trabalho, precisei escolher entre carreira e minha filha.” A vida só voltou a fazer sentido no dia 6 de fevereiro, quando Maria Clara voltou para casa. A cidade onde vive, Doutor Camargo, no interior do Paraná, recebeu a menina com festa. Até hoje, ela tem dificuldades para andar e está fazendo terapias para superar as sequelas da covid.

No caso de Lucas, foram mais 25 dias de hospital depois da UTI. Na enfermaria, Débora pode finalmente reencontrar o filho, mas isso significou ficar longe do marido e dos pais. “Não podia ir pra casa, só minha mãe e meu marido que traziam coisas. Lucas só os viu uma vez, de longe.” No hospital, o menor dos receios de Débora era com o coronavírus. “Meu medo não era pegar covid, dormia de máscara o tempo todo, passava álcool em tudo.”

“Tinha medo de perder o meu filho”

Lucas voltou para casa recuperado da doença e com uma nova rotina, em função do diabetes.

O drama de ver o filho internado não é só de quem viveu o isolamento da UTI: há casos em que os pais puderam acompanhar as crianças em tratamento durante a hospitalização, como Renata Almeida, 31, que ficou com a filha Luana, 9. No caso delas, foram 14 dias em uma enfermaria, em junho de 2020, dos quais cinco na emergência, vendo todos os movimentos de entradas e saídas de pacientes. “Luana nunca tinha passado tanto tempo no hospital. Foi assustador ver ambulância chegando, pessoas sendo avisadas que iam para a UTI, famílias chorando”, conta.

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Arquivo pessoal

Luana, 9 anos, ficou 14 dias na enfermaria de um hospital público de Recife (PE). Ela e a mãe, Renata Almeida, viram todo o movimento de ambulâncias, internações e famílias chorando. ‘Mesmo hoje, quando ela vê as fotos, revive tudo’

Entre os medos de Renata, estava o receio de a filha ficar traumatizada com as cenas vistas durante aqueles dias. “Mesmo hoje, ela revive tudo quando vê as fotos daquela época.” 

Segundo Alexandre, a experiência de viver uma internação durante a pandemia da covid-19 não deve ser encarada pelos pais como uma certeza de trauma. “As marcas são construídas não só na hora do acontecimento, mas durante a elaboração dele, com o tempo. Uma das formas de evitar o trauma é falar sobre a experiência, senti-la e saber que ninguém precisa ser forte”, explica.

“Os pais podem chorar junto com os filhos. O choro também deve ser um espaço de conexão”

Outra forma de superar é dividir os sentimentos com outras famílias que passaram pela mesma experiência. “A saúde mental das mães e dos pais, neste momento, passa pela autocompaixão”, finaliza o psicólogo. 

* A produção desta reportagem contou com o apoio da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down.

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