O barulhinho da panela de pressão é sinal de casa habitada e o cheirinho de cebola e alho refogados do cardápio de todo dia extrapola o fogão e pode acontecer de vir morar dentro da gente, já aconteceu com você? Cozinhar ativa os nossos sentidos todinhos bem antes de levar a primeira garfada à boca. É preciso estar inteiro presente desde o preparo, senão o arroz queima, a polenta empelota, o bolo embatuma.
Num tempo de urgências, perdeu-se muito o costume de ir à cozinha preparar as refeições. Mas, para as famílias que puderam efetivamente se preservar da pandemia, o retorno à casa recuperou hábitos que a rotina já não permitia, como compartilhar desses pequenos rituais de cozinha em família e comer à mesa.
“A recuperação do cuidado com os hábitos alimentares foi uma tônica forte e as famílias se viram diante de suas cozinhas precisando preparar os alimentos”, comenta Nana David, psicanalista e fundadora do Cozinha como Experiência, um canal que une a psicanálise à culinária, a fim de trabalhar questões relacionais e de desenvolvimento humano a partir da cozinha.
Laços da cozinha em família
Para ela, comer à mesa, todos juntos, no mesmo horário, é “uma grande oportunidade de se relacionar e aprofundar laços. Uma refeição compartilhada vai além de compartilhar alimentos; envolve costumes, tradições de gerações anteriores e muito afeto. Cozinhar faz parte do cuidado de si e do outro”.
“Cozinhar é um modo de amar os outros”, Mia Couto.
Para Camila e Marcos Verdeja, pais do Santiago, 7, e do Léo, 1, “estar em casa, muitas vezes sem ajuda externa, demandou olhar para o que estava sendo servido e colocar a mão na massa no preparo da comida”. Mas, o exercício de pensar melhor as refeições, se dedicar ao preparo de receitas, e de família na cozinha não acontece em todas os lares, pondera. “Dados recentes apontam para um aumento no consumo de produtos industrializados, principalmente por famílias com crianças”, alerta Camila.
Para Nana, o cuidado de pensar a refeição e cozinhar está sujeita a pelo menos dois processos: a mítica de distanciamento, em que as pessoas acabam optando pelo mais rápido, prático e fácil, pois a vida é corrida e cozinhar muito trabalhoso; ou da gourmetização, em que o cozinhar caiu na mão dos grandes chefs, dos produtos refinados e caros, trazendo uma ideia de que cozinhar deve ser algo muito elaborado, explica.
Contudo, embora ainda seja cedo para conhecer o profundo efeito que a pandemia terá sobre as famílias e costumes familiares, principalmente os alimentares, Nana acredita no potencial que essa mudança tem de impactar a relação das pessoas com a rotina e com a urgência das coisas, aposta.
Lugar de criança é também na cozinha
Responsável pelo canal Gourmet Jr. que, com o apoio de uma nutricionista, traz dicas e receitas a partir do conceito de nutrição afetiva, que vai além de oferecer somente nutrientes, mas cuidar da etapa das compras ao momento de servir a comida, Camila costuma incluir as crianças na cozinha. Embora tenha às vezes que se desdobrar para dar conta do auê, comenta, essa vivência é importante para que eles “sintam pertencer à rotina da família e possam construir uma relação de prazer com a comida”.
Mãe de dois meninos, ela considera uma pena que a cozinha ainda seja vista como um ambiente para mulheres. Por isso, em sua casa, faz questão de “criar” os filhos na cozinha. “Há ímãs na geladeira ao alcance do Léo para ele brincar enquanto preparo o almoço e os armários organizados de maneira segura para ele explorar. Já o Santiago sabe escolher uma fruta madura, quebrar e bater ovos, medir os ingredientes, checar o ponto do macarrão. Aliás, ele prepara um molho de tomate delicioso! O segredo é uma pitadinha de canela”, entrega.
A psicanalista Nana destaca o aspecto cultural de a cozinha ser um lugar perigoso para criança. “Porém, se tomamos os cuidados devidos, os benefícios conquistados para as crianças são enormes. Elas têm a oportunidade de conhecer os processos que transformam o alimento na refeição preferida e aprendem a manipular a comida, quebrando eventuais resistências com legumes, verduras e frutas, e abrindo espaço para a experimentação”, arremata.
“O primeiro grande passo para a conquista de autonomia na vida é saber se alimentar”
Ensinamentos de família na cozinha
Também é possível estimular que, “com supervisão, os pequenos explorem o ambiente, brinquem com as panelas e os utensílios e, aos poucos, possam contribuir com o preparo dos alimentos que vão comer”, comenta Camila. Para ajudar nesse processo, transformando a cozinha num espaço acolhedor e de descobertas, ela sugere receitinhas bem práticas e muito coloridas para juntar todo mundo na cozinha e depois aproveitar para comer em boa companhia:
Por acreditar que o momento das refeições deve ser pensado do ponto de vista das crianças, como um momento lúdico e prazeroso, Camila recomenda usar a imaginação na hora de servir as refeições e investir na apresentação. “Podem surgir cabelinhos de brócolis ou de cenoura, sorriso de tomate e barbicha de manjericão…”, sugere. “Na formação do paladar das crianças, quanto mais exposição a novos sabores e texturas, melhor. O objetivo principal deve ser sempre o de trazer a atenção da criança para a comida. Que tal usar essa informação privilegiada em prol de uma boa nutrição?”, convida ela.
Rituais de amor e construção de narrativas
Depois de dar as boas-vindas definitivas às crianças à cozinha, estará inaugurado esse espaço de trocas, com direito à prova. Enquanto vão se solidificando esses erros e acertos que serão a base de memórias futuras, também vale resgatar aquilo que você, adulto, aprendeu com sua mãe, sua avó, e propor o preparo de uma receita que tenha história para contar.
Para Nana, “pequenos rituais culinários em torno da mesa são uma via de transmissão desse conhecimento de geração em geração, o que ajuda a preservar a tradição e os costumes de determinado grupo familiar”. Além disso, “preparar uma receita tradicional faz as pessoas aprenderem mais sobre si mesmas e estarem mais conscientes de seu contexto histórico e cultural, ou seja, vão descobrindo sua relação com o mundo à sua volta”, destaca.
Ao resgatar um pedacinho da história familiar, e da família na cozinha, independente da configuração de família, temos acesso direto às memórias afetivas que nos compõem e, ao mesmo tempo, nos abrimos para a construção de novas narrativas.
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Pesquisa recente feita pelo Ibope e Unicef mostra que 9 milhões de brasileiros deixaram de comer por falta de dinheiro durante a pandemia. Quase metade (49%) sofreu alguma mudança nos hábitos alimentares neste período de quarentena. Entre as famílias que vivem com crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos, o impacto foi ainda maior: 58%. Isso inclui o aumento do consumo de alimentos industrializados, refrigerantes e fast food, o que contribuiu para a evolução de outra epidemia: a obesidade, inclusive a obesidade infantil.
Um estudo da Opas (Organização Pan-americana de Saúde), de 2015, mostra que o aumento no consumo de produtos ultraprocessados (aqueles que geralmente vêm em “pacotinhos”) tem levado ao aumento no IMC, o índice de massa corporal, em países da América Latina. Nesse ritmo, a projeção da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de que, até 2025, existam mais de 75 milhões de crianças obesas no mundo todo, das quais 11,3 milhões no Brasil.