Apenas com igualdade racial desde o começo da vida é que se efetiva a prioridade absoluta para crianças e adolescentes
No mês da primeira infância, especialistas questionam quais crianças são o foco das políticas públicas e sinalizam a urgência de incluir neste debate infâncias negras, indígenas e de comunidades tradicionais, com absoluta prioridade.
Com a definição de agosto como o mês da primeira infância, temos alguns questionamentos. Para quais grupos se promovem ações de conscientização sobre a importância da atenção integral a gestantes, crianças de zero a seis anos de idade e suas famílias? Como ficam as crianças negras, indígenas e de comunidades tradicionais que ainda hoje seguem invisibilizadas no Brasil?
O racismo, um dos elementos estruturantes da sociedade brasileira, impacta o desenvolvimento de crianças desde o começo da vida. O racismo cria barreiras ao acesso a direitos sociais fundamentais e limita as oportunidades educacionais e econômicas. Com isso, crianças negras são as mais impactadas pelas desigualdades que marcam a realidade social do país.
No campo da educação infantil, faltam dados com recorte de raça, cor e etnia. O grupo populacional de mulheres negras é economicamente o mais pobre do Brasil, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) 2020, do IBGE. Como consequência, isso afeta diretamente as crianças negras. Da mesma forma, apenas 26% das crianças até três anos entre as famílias mais pobres estão na creche, segundo relatório do Núcleo Ciência pela Infância.
Por isso, enfrentar o racismo desde a primeira infância deve ser prioridade. A discriminação racial sistemática e estereótipos raciais são violências que impedem crianças negras de serem simplesmente crianças. Essa foi uma das conclusões do Grupo de Trabalho sobre pessoas afrodescendentes (People of African Descent), da ONU.
Numa perspectiva histórica, mulheres negras, mães e crianças foram escravizadas, e mães e crianças indígenas foram submetidas a condições de exploração e genocídio. Nesse período, segundo o pesquisador Daniel Bento, crianças, em geral, não eram vistas como sujeitos de direito. Crianças negras e indígenas eram ainda mais inferiorizadas.
O racismo também impacta o desenvolvimento infantil. De acordo com estudos, o estresse resultante da discriminação recorrente contra mães, mulheres negras ou cuidadores afeta a saúde mental de adultos e crianças. Crianças brancas, por sua vez, passam a ter as suas subjetividades moldadas por uma visão de vantagem e superioridade. Ao mesmo tempo, são privadas da chance de aprender e se relacionar com a potência da diversidade humana.
O direito de todas as crianças à não discriminação está no centro da Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, ratificada pelo Brasil em 1990. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no artigo 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança todos os seus direitos com absoluta prioridade, além de colocá-los a salvo de toda forma de discriminação.
Com isso, a prática do racismo e da discriminação racial é uma violação de direitos humanos. Pesquisadores do tema há muito reivindicam o seu reconhecimento como violência contra crianças. Ao considerar o racismo desde o começo da vida como um ato violento, todos os órgãos do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes devem atuar de forma intersetorial e em uma perspectiva protetiva. Isso é possível com a criação de fluxos, protocolos e ações equitativas articuladas no atendimento a essas vítimas.
Nesse sentido, as normativas nacionais e internacionais determinam que, quanto mais vulnerável um grupo de crianças ou adolescentes for, mais prioritária deve ser a garantia dos seus direitos e a implementação de políticas públicas. Devido ao contexto de maior vulnerabilidade, crianças negras, indígenas e de comunidades tradicionais na primeira infância encontram-se em uma posição de prioridade dentro da própria regra da prioridade absoluta.
Políticas sobre primeira infância devem considerar questões de raça, etnia e território tanto para a adequação das políticas existentes às realidades dessas crianças, quanto para a elaboração de políticas específicas. Na prática, as proposições presentes nos planos estaduais e municipais pela primeira infância precisam ter diretrizes explícitas sobre o enfrentamento às desigualdades étnicas e raciais. E serem convertidas em objetivos e metas monitoráveis. Além disso, os movimentos sociais negros, indígenas e de comunidades tradicionais, bem como as crianças e os adolescentes pertencentes a esses grupos, devem participar das etapas de decisão dessas políticas.
No âmbito da educação infantil, além da garantia de acesso e permanência nas escolas, é importante que cumpra sua finalidade de promover o desenvolvimento integral. Isso pressupõe educadores preparados, além de estrutura e materiais adequados para a educação das relações étnico-raciais, considerando as leis 11.645/2008 e 10.639/2003, que tornam obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira, respectivamente.
Apenas com igualdade racial desde o começo da vida é que se efetiva a norma da prioridade absoluta, que coloca as crianças em primeiro lugar. Nesse sentido, trata-se de um compromisso e de um dever do poder público, das organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, famílias e toda a sociedade reconhecer a potência da diversidade existente em nosso país.
* Letícia Carvalho Silva é advogada e assessora internacional do Instituto Alana, e mestranda em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo. Leticia Leobet é cientista social, ativista do movimento negro e liderança executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância formada pela Universidade de Harvard. Atua como gestora de projetos na área de Educação e Pesquisa de Geledés – Instituto da Mulher Negra.
** Artigo elaborado a partir de uma audiência pública realizada em junho de 2023, na Comissão de Minorias e Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Participaram organizações do Grupo Articulador Primeira Infância no Centro, projeto conduzido por Geledés – Instituto da Mulher Negra.
*** Este texto é de exclusiva responsabilidade dos autores e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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