Como se sentem as crianças após um ano de isolamento social

Apesar da medida ser eficaz para diminuir a transmissão do vírus, famílias e especialistas relatam seu impacto ao comportamento e à saúde emocional das crianças

Camilla Hoshino Publicado em 17.03.2021
Um menino e uma menina ambos loirinhos, estão deitados no chão com cara de entediados.
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Resumo

Excesso de telas, saudade dos amigos da escola, tristeza e ansiedade: após um ano de pandemia, famílias e especialistas contam como as crianças estão sendo impactadas pelo isolamento social.

Raiva, tristeza e ansiedade entre crianças e adolescentes já são marcas da pandemia de covid-19. Com escolas fechadas, saudade dos avós e aposta constante na imaginação para lidar com a solidão do confinamento, cada vez mais famílias, pesquisadores e profissionais da infância observam mudanças emocionais e comportamentais durante o isolamento social. 

“As crianças estão com medo, mais grudadas aos pais e com dificuldades de sair de casa”, afirma o psicólogo do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR), Bruno Mäder. 

Apesar do impacto ter sido distinto para cada faixa etária, a carência de socialização acabou sendo um prejuízo para todos, já que é por meio das relações com outras crianças que acontecem muitos aprendizados. Afinal, a experiência de brincar, disputar, gritar e cooperar faz parte do currículo informal da educação infantil de creches e escolas que foram reduzidas ao virtual. “É na escola onde as regras são internalizadas, onde se tem a dimensão do outro e se constrói autonomia”, explica Bruno. 

Selfie de Quetlen, uma mulher sorridente e de cabelos lisos e negros, usando óculos, com o filho Stevan, um menino sorridente, de cabelos pretos e lisos

“O Stevan começou a ficar impaciente e a roer as unhas, além de ter ganhado uns seis quilos. Nós ficamos isolados, então ele só teve contato comigo e com o pai. Ele não foca mais em nada, ficou muito disperso. Só quer celular e não tem paciência para escutar” – Quetlen Capistrano, mãe do Stevan, 5 anos

O presidente do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Tadeu Fernando Fernandes, atenta para os efeitos da pandemia sobre a primeira infância, relatando casos de atraso na fala e dificuldades no desfralde, processo estimulado em grande parte pelas professoras nas pré-escolas. Segundo ele, apenas com o fim do isolamento social e com a adaptação ao novo cenário será possível calcular o quanto as situações serão reversíveis e quais suportes serão necessários para lidar com os efeitos das perdas de médio e longo prazo. “Quando a criança está na primeira infância, é complicado pular marcos de desenvolvimento”, afirma.

Daniel com sua esposa e os dois filhos, vestidos de trajes de festa junina, em frente a uma mesa com comidinhas típicas de São João e com bandeirolas no teto da sala

“A falta de convívio com outras crianças e a impossibilidade de brincarem em espaços abertos fizeram com que eles acumulassem energia. No início, nos esforçamos para criar atividades e brincadeiras em casa, mas começamos a ficar cansados com a sobrecarga do trabalho remoto. Marcos passou a ter variações de humor muito mais bruscas e repentinas, com rompantes de raiva e atitudes mais violentas. Maria Rosa sempre foi bastante autônoma, independente e dona de si, mas ficou mais dependente emocionalmente. As crianças passaram a brigar mais, a implicar por pequenas coisas e, de vez em quando, a explodir em gritos, lágrimas e frustração” – Daniel Mittelbach, pai do Marcos, 10 anos, e da Maria Rosa, 8 anos

Impacto da pandemia na saúde mental de jovens e crianças

A piora do cardápio alimentar, o aumento do tempo de tela e o sedentarismo são fatores que atingiram em cheio o corpo e a mente das famílias. Um estudo pioneiro realizado com quase dez mil crianças e jovens, entre 5 e 17 anos, pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), mostrou que metade dos entrevistados não havia praticado nenhuma atividade física nas últimas semanas. Em contrapartida, o tempo médio de uso diário de eletrônicos havia sido de nove horas, fora o período das aulas remotas. 

A pesquisa também registrou que 15% dos jovens apresentaram sintomas de ansiedade e 18% de depressão. Os índices chamam atenção de psiquiatras para um possível aumento de transtornos mentais na infância, apesar do estudo não confirmar o diagnóstico.  

“Os transtornos mentais têm causa multifatorial, um conjunto de características do indivíduo e do ambiente”, explica a pesquisadora do HCFMUSP e integrante do estudo “Jovens na Pandemia”, Luisa Sugaya. 

No país, as condições socioeconômicas apontam para fontes de estresse como desemprego, violência intrafamiliar e segurança alimentar, mas a psiquiatra ainda sugere que psicopatologias parentais, temperamento das crianças, entre outros aspectos contextuais devem ser considerados. 

A pesquisa realizada em 2020 por pesquisadores da USP ainda não foi divulgada, mas o Lunetas teve acesso a alguns dados inéditos, como:

  • 57% dos pais afirmaram que a pandemia gerou problemas financeiros moderados ou graves.
  • 23% dos pais afirmaram que a criança apresentou uma qualidade de sono ruim ou muito ruim.
  • 13% dos pais afirmaram que a criança se sentiu frequentemente solitária.

(Fonte: Jovens na Pandemia)

Mas essa não é uma condição singular do Brasil. Um relatório publicado em fevereiro por pesquisadores das universidades de Oxford, Leicester e College London, identificou uma oscilação nos sentimentos e comportamentos infantis na Inglaterra, entre março de 2020 e janeiro de 2021, assim como diferenças na intensidade dos sintomas de acordo com idade, renda, presença de irmãos ou arranjo familiar. 

“Chamamos de variações longitudinais: pode haver um aumento do estresse nos primeiros meses de adaptação à pandemia, estabilidade e novos períodos de oscilação depois de algum tempo, o que mostra um cenário complexo que atinge famílias de formas distintas”, aponta Luisa.  

O documento faz parte do estudo Co-Space, que monitora como as famílias estão enfrentando a pandemia e o que podem fazer para apoiar a saúde mental dos filhos. Em média, os pais relatam maiores dificuldades comportamentais como falta de atenção e inquietude na faixa etária entre 4 e 10 anos. As maiores dificuldades emocionais estavam entre crianças entre 11 e 17 anos, havendo um aumento na gravidade dos sintomas entre dezembro e janeiro. Famílias monoparentais ou com renda anual mais baixa relataram níveis mais elevados de todos os aspectos comportamentais e emocionais.

Foto tirada de cima para baixo, mostrando uma mulher de cabelos curtos e negros, deitada em um sofá, com os dois filhos ao lado (um menino do lado direito e uma menina do lado esquerdo)
No início da quarentena, quando eu ainda estava muito ansiosa e com medo, o Caetano teve uma reação e começou a fazer xixi de cinco em cinco minutos. Levei para fazer exame de urina, pois achei que era uma infecção, mas descobri que era tudo psicológico. Também notei que ele começou a ficar mais agressivo comigo e com a irmã mais velha” – Sâmia Gomes, mãe do Caetano, 4 anos, e da Helena, 5 anos

Qual o papel da Educação Infantil?

A pandemia reforçou a importância das interações oferecidas pela Educação Infantil. Com o afastamento da rede de apoio familiar, creches e escolas seriam um dos principais lugares de suporte às famílias com crianças, especialmente as mais vulneráveis. Embora as salas de aula tenham migrado para o mundo virtual, essa proposta acabou sobrecarregando a relação família-escola e excluindo boa parte da população infantil, caso das crianças que vivem nas periferias urbanas da cidade de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.  

Doutorandas em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas das Infância(s), Formação de Professores(as) e Diversidade Cultural (Gifordic), Fabiana Pessanha e Nayara Macedo, analisam o impacto do bloqueio na região. Elas contam que docentes de unidades municipais, creches e pré-escolas se esforçaram para criar uma “pedagogia da presença”, se vinculando às crianças e suas famílias por meio de grupos de WhatsApp, mas a maioria das 85 creches e escolas públicas da cidade não possuem rede de internet.  

Segundo Fabiana e Nayara, as interações remotas que visam a quantificação de carga horária podem acabar assumindo um caráter técnico e superficial, sem conseguir contemplar as especificidades do trabalho da Educação Infantil. 

“O movimento de suspensão do cotidiano escolar nos levou a compreender a necessidade de aprender com as famílias, suas diferentes composições, dinâmicas e configurações, escutando seus anseios, expectativas e necessidades”, afirmam. Para elas, com o Brasil registrando os maiores índices de mortes por covid-19, não há possibilidades de reabertura desses espaços enquanto professores não forem considerados prioridade para a vacinação. 

Mulher ruiva vestindo preto tira uma selfie com uma menina de cabelos negros e lisos, franjinha, e com uma parte do cabelo raspado com desenhos tribais

A ausência dos amigos e das influências bateu muito forte pra Sophia, tanto que, em vários momentos, nosso relacionamento como mãe e filha se esgotou. Segui trabalhando em home office, sem válvulas de escape para nós duas. O momento de lazer foi resumido às telas. A aprendizagem on-line não gerou foco suficiente e não ofereceu a interação que a aprendizagem infantil pede. Ou seja, há um atraso evidente e já estou pesquisando reforço escolar para este ano” – Caroline Meira, mãe da Sophia, 11 anos

Aprendizados

Não seria justo com as crianças dizer que apenas perdas definem suas histórias na pandemia. Muitas famílias, pela primeira vez, tiveram a oportunidade de passar mais tempo juntas, fortalecendo vínculos. 

Julia, de 7 anos, viveu um salto de alfabetização e letramento, surpreendendo a família: em março de 2020, ela reconhecia as letras do alfabeto e, em janeiro de 2021, leu a coleção inteira de tirinhas da Mafalda, com mais de 400 páginas. 

Para enfrentar o tédio do bloqueio na periferia de São Paulo, Ísis, de 8 anos, começou a fazer aulas on-line de inglês com o padrinho, descobrindo um novo talento e vencendo a crise de ansiedade.

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Foto: Rafael Bertelli

Julia, 7, avançou na alfabetização e letramento, além de ter lido a coleção completa de tirinhas da Mafalda durante a pandemia

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Arquivo pessoal

Ísis, 8, começou a fazer aulas on-line de inglês com o padrinho e o estudo do idioma ajudou a menina a controlar a ansiedade - e ainda descobriu um novo talento!

“Foi surpreendente o que as crianças conseguiram fazer sozinhas, com auxílio das famílias e no ensino remoto. Quando se tem uma situação adversa, o ganho está em lançar mão de recursos sociais, relacionais e cognitivos diferentes”, ressalta o psicólogo Bruno Mäder.   

Os custos para as crianças ainda são imprevisíveis.

“Quantos anos tinham seus filhos em 2020 e 2021?”

Para Bruno Mäder, essa será uma pergunta indispensável para análises de histórias de vida e dos impactos da pandemia no desenvolvimento dos jovens.

“Não temos preocupações com prejuízos irreversíveis, mas precisamos entender quais foram os medos da criança e quais recursos foram dados a ela para enfrentar o momento”

No último dia 10 de março, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertou que, após um ano de pandemia, todos os indicadores que medem o desenvolvimento infantil e adolescente recuaram. Em nota, Henrietta Fore, diretora executiva do Unicef, revelou que houve aumento “no número de crianças com fome, isoladas, abusadas, ansiosas, que vivem na pobreza e são forçadas a se casar”.

Nos países em desenvolvimento, as projeções mostram um aumento de 15% na pobreza infantil. Entre seis e sete milhões de crianças a mais podem sofrer de desnutrição. Para 168 milhões de alunos no mundo, as escolas estão fechadas há quase um ano, sendo que um terço deles não tem acesso à educação on-line.

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