Como proteger os meninos da radicalização com mais afeto

Ser uma referência positiva é o primeiro passo para quebrar o ciclo da radicalização que sujeita os meninos desde a infância a conteúdos misóginos e ao machismo

Célia Fernanda Lima Publicado em 07.08.2025
Um menino com traços orientais está no colo de um homem adulto que aparece de costas na foto.
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Resumo

Exposição a conteúdos misóginos na internet, ausência de afeto paterno e de um olhar sensível na criação de meninos são as principais barreiras para a construção de uma masculinidade positiva.

Eddie só estava pesquisando sobre academia e exercícios físicos, mas começou a receber no celular propagandas “falando sobre como tratar mulheres, sobre como ser homem e tudo mais”. A reflexão do personagem de “Adolescência” (Netflix) mostra como grupos masculinos de ódio contra mulheres operam nas redes sociais e acabam encontrando homens e meninos. Na série, a masculinidade tóxica é uma das explicações possíveis para abordar o caso de Jamie, filho de Eddie que, aos 13 anos, é acusado de feminicídio.

“O algoritmo sabe que é um menino que está ali e entrega sem dó esse tipo de conteúdo a ele”, diz Felipe Fortes, médico hebiatra, especialista em saúde dos adolescentes. Assim, “a partir do momento em que é bombardeado por conteúdos de ódio, que são sempre muito curtos, sem reflexão e extremamente estimulantes para um cérebro ainda em formação, seu arcabouço psíquico vai se ‘dessensibilizando’ em relação à violência. Ou seja, a formação emocional se constrói com esse terrível viés e feridas psíquicas podem surgir”, explica.

O estudante universitário Lury Morais começou a acessar conteúdos com teor machista e misógino na adolescência. Segundo ele, havia também menores de idade participando de alguns desses grupos exclusivamente de homens. “O canal de memes é a porta de entrada”, conta. Então, conforme explica, primeiro você entra em um grupo geral, com páginas com humor disfarçado de discurso de ódio. Depois, começa a acessar “locais mais obscuros”. “No Instagram, havia memes antifeministas e misóginos, enquanto no Telegram havia conteúdo bem mais explícito com cenas de agressões a mulheres e vídeos celebrando o nazismo.”

Ao se dar conta da gravidade dos conteúdos, e, principalmente, por não se identificar com o ideal de “homem alfa” pregado nesses grupos, Lury decidiu romper com todos os ambientes. “Só depois de adulto, consegui compreender melhor. Entrei para aprender sobre como me tornar homem, mas comecei a me questionar o que eu estava fazendo ali. Não fazia mais sentido estar com aquelas pessoas.”

“Não aprendi nada sobre masculinidade, apenas como ser violento.”

Ainda faltam referências positivas de masculinidade

Para Lury Morais, a busca por “como aprender a ser homem” vem de um contexto social em que lhe faltavam referências masculinas positivas. “Meu pai faleceu quando eu tinha 7 anos. Não tenho memórias, porque não tive oportunidade de conhecê-lo melhor. Já meu avô era separado de minha avó, e o contato não era agradável”, conta.

As figuras masculinas das quais se lembra melhor eram os tios. Porém, quando ele e os primos se juntavam para ouvir músicas e dançar, por exemplo, alguns deles consideravam “brincadeira de menina”. “Eles chamavam o Michael Jackson de viado pelos passos de dança. Mas a gente gostava e continuava dançando”. Dessa forma, de acordo com ele, nenhum desses homens que passaram por sua infância e adolescência rompeu com o estereótipo da masculinidade e foi afetuoso o bastante.

Na série “Adolescência”, Eddie também tentou que Jamie circulasse por ambientes masculinos. “Levei ele para o futebol para ficar mais durão. Mas ele era péssimo. Eu ficava alí na beira do campo vendo os outros pais rindo. Sentia ele me olhando, mas não conseguia olhar para ele”, diz Eddie. Já Jamie, numa sessão de terapia, conta para a psicóloga das vezes em que ele e o pai tentaram criar esses vínculos. “Ele me levava para jogar futebol aos sábados e torcia por mim. Mas, quando eu errava, ele olhava para o outro lado. Talvez não quisesse que eu visse a decepção dele.”

Segundo o hebiatra Felipe Fortes, a ideia do homem másculo e pouco sensível reverbera para uma vida adulta em que demonstrações de afeto ou mesmo falar sobre emoções não existem entre os homens, ou então, são raras. “Historicamente os meninos são educados na lógica que `homem não chora’, logo não podem expressar seus sentimentos”, diz.

Então, essa cultura reflete diretamente na percepção dos meninos sobre a afetividade com seus pais. De acordo com o estudo “Meninos: sonhando os homens do futuro”, do Instituto Papo de Homem (PDH), 5 em cada 10 meninos entrevistados sentem dúvidas sobre o amor paterno. Além disso, 6 em cada 10 afirmaram que não têm ou têm poucas referências positivas masculinas em suas rotinas. A pesquisa ouviu mais de 4 mil adolescentes pelo país.

Sem essas referências positivas por perto, Lury começou a se identificar com personagens de séries. “Em ‘The Walking Dead’, por exemplo, a gente introjetava, mesmo sem saber, o personagem Rick como uma figura de pai”, conta. Aos 25 anos e ainda sem filhos, ele compreende a urgência de proteger as crianças desses discursos dentro e fora da internet. “Não quero que meu filho passe pelo mesmo que passei. A internet não é lugar de criança estar sozinha. Não com a falta de segurança de hoje.”

Quais as consequências da radicalização dos meninos?

Os primeiros sinais de um contato precoce com conteúdos misóginos podem aparecer no início da adolescência. Segundo o hebiatra Felipe Fortes, há dois tipos de consequências após a radicalização: as físicas, que são mais imediatas; e as comportamentais, que surgem a longo prazo. Além disso, o cérebro está em intenso desenvolvimento nessa fase, “especialmente no sentido de socialização e ética entre as relações”, explica. Por isso, “as emoções vão se moldando a partir das experiências a que são expostos e os meninos podem aprender regras e limites de maneira distorcida”.

Sinais para observar:

  • Dificuldades para dormir
  • Desatenção
  • Ansiedade
  • Introspecção e dificuldade em socializar
  • Insegurança com a própria imagem
  • Incapacidade de ser afetuoso com outros meninos

“Todos os dias, atendo meninos com extrema dificuldade de socialização, que incluem atos de violência em que eles são vítimas ou até os causadores. Os dois lados estão em sofrimento”, conta o médico. Também é preciso atenção à forma como eles moldam a relação com as meninas, pois elas viram alvo de discursos de ódio ou de atitudes humilhantes, como comentários depreciativos sobre suas aparências ou desrespeitosos sobre sexualidade.

Outra questão é o excesso de conteúdos pornográficos numa fase em que a sexualidade está sendo descoberta. Conforme a pesquisa do Papo de Homem, 1 a cada 5 meninos afirma estar viciado em games ou pornografia. “Isto vem piorando provavelmente pelo uso indiscriminado. Então, as convivências construídas com diálogo, afeto e manifestações de sentimentos são substituídas por uma necessidade de alta performance, preocupação excessiva com o corpo e relações em que os limites do consentimento estão cada vez mais borrados”, reforça Felipe.

O que os homens estão fazendo hoje?

Para Lury Morais, além da necessidade de agir diariamente contra o machismo, é preciso estar atento aos conteúdos que as crianças acessam na internet. “Se eu fosse pai, consideraria muita coisa antes de entregar um celular a meu filho. Isso porque, se existe a possibilidade de contato com desconhecidos, há a possibilidade dele ser cooptado”, diz.

“Redes de homens cheios de discursos misóginos podem transformar um menino em uma máquina de ofensas gratuitas.”

“Os meninos não podem banalizar a violência como uma experiência comum nem se preocupar em correr atrás de modelos ideais de masculinidade, pois sempre se decepcionarão”, diz. “Em contrapartida, desejo que se voltem a si mesmos, sobre o que sentem, como sentem, porque sentem.”

Esse também é o desejo de Diolan Godinho para o filho Cauê, 12 anos. “Gostaria que ele crescesse num contexto masculino mais aberto do que o que eu fui criado. Que ele expresse suas emoções e não seja exigido de se mostrar forte e provedor o tempo todo”. Fernando Inocente, pai de Pedro, 11 anos, comenta como era a infância na década de 1980 e como tenta atualizar as formas de criação do filho. “Naquele tempo, referência de masculinidade era o homem provedor da casa, que saía para trabalhar de manhã e voltava à noite, enquanto a mãe ficava em casa cuidando dos filhos.”

Na casa de Fernando e Pedro, o que não falta são abraços. “A gente se abraça bastante, principalmente quando eu acordo, antes de ir para a escola, quando eu volto da escola e antes de dormir”, conta o menino. 

“O abraço é muito bom para a gente se ver e para falar que se ama.” 

Já Cauê afirma que também recebe muitos abraços do pai mas ainda não parou para pensar no que gostaria de fazer igual quando tiver filhos. Por outro lado, Pedro responde direto: ter amigos verdadeiros e fazer os mesmos programas que fazem atualmente. “Meu pai e eu temos o costume de jogar bola, capoeira, surfar, ir na praça, fazer um monte de coisas legais e isso eu também gostaria de fazer com meu filho”, conta. 

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Arquivo pessoal

Fernando Inocente mantém uma relação afetuosa com o filho Pedro, 11 anos. Para os dois, o abraço é essencial. Já as atividades juntos ajudam a criar laços e construir boas referências.

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Arquivo pessoal

Diolan Godinho tenta aos poucos construir uma rotina com mais carinho e boas referências para Cauê, 12 anos. “Gostaria que ele lembrasse de mim como uma pessoa que o levou para conhecer e experimentar coisas diferentes”, diz.

O que fazer contra a radicalização?

“O primeiro ponto é básico: assumir a paternidade”, diz o hebiatra Felipe Fortes. Isso porque “a paternidade não pode ser uma escolha. Seu filho nasceu? Esteja na vida dele”. Outras atitudes para construir boas referências são:

  1. Não tenha medo de dizer “eu te amo”
    Essas palavras são poderosas na construção emocional de um menino, especialmente vindas de uma referência masculina.
  2. Permita explorar suas vulnerabilidades
    Não tem problema nenhum em expor emoções para si e para seus filhos meninos, conversar sobre sentimentos, chorar, abraçar.
  3. Aproveite o tempo juntos com qualidade
    Atividades que envolvem a corporeidade e movimento, como jogar bola, correr ou subir numa árvore, por exemplo, pode ajudar a formar um vínculo de amor com o pai ou outra referência masculina na família que marca a vida da criança.

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