Como promover de maneira suficiente, tanto para as meninas quanto para os meninos, oportunidades para que tenham acesso aos mesmos direitos? O que fazer para que sejam emocionalmente bem resolvidos e tenham papéis sociais equilibrados? Um dos caminhos para a equidade é educar as crianças de maneira respeitosa, sem cair nos estereótipos de gênero, e quebrar alguns tabus, principalmente sobre masculinidade.
Contudo, “o comportamento que herdamos dos nossos antepassados segue presente”, diz a psicóloga Luana Menezes. Desse modo, “a cultura do patriarcado mantém uma diferença significativa no cuidado e na criação de meninos e meninas”.
Depois de analisar pesquisas de diversos países, o jornal britânico Financial Times classificou essas diferenças em “abismo ideológico”, que impacta o avanço de movimentos sociais como o feminismo, por exemplo. De acordo com o artigo, as discordâncias entre homens e mulheres estão cada vez maiores quando precisam opinar sobre temas relacionados à desigualdade de gênero, imigração e justiça racial.
Além da questão política, os estereótipos do comportamento masculino causam também problemas sociais. Ao responderem a uma pesquisa da ONU Mulheres e do Instituto Papo de Homem, 45% dos homens brasileiros disseram que gostariam de se expressar de modo menos duro ou agressivo, mas não sabem como. Além disso, 66% não falam com os amigos sobre medos e sentimentos. Para 81% dos entrevistados, o Brasil é um país machista.
Diferenças na criação refletem na vida adulta
A psicóloga Luana Menezes sentiu como seria difícil driblar os chamados estereótipos de gênero quando se tornou mãe de Otto, hoje com 2 anos. Bastava olhar as prateleiras das lojas que separam cores, estampas e acessórios de meninos e meninas no mais popular “azul e rosa” para entender que a imposição está em toda a parte. Mais tarde, as consequências da desigualdade de gênero vão repercutir em salários mais baixos de mulheres em relação aos homens, abandono paterno, sobrecarga feminina nas atividades do cuidado e até violência contra mulheres.
“De um modo geral, enquanto há mais rigidez com os meninos, inclusive na repressão dos seus afetos, há mais afetividade para as meninas”, ressalta. “Quando dizemos que ‘homem não chora‘, criamos meninos para se defenderem agressivamente e resolver problemas de forma violenta. Já a menina deve se comportar de modo gentil. Assim, para elas, ficam as expectativas para um casamento e o excesso de responsabilidades no cuidado com a casa e os filhos, sendo frequente a limitação do crescimento profissional; por outro lado, os meninos não são preparados para exercerem plenamente o cuidado próprio, nem com o lar ou os filhos”.
Por isso, ela conta a história de um menino que é repreendido pelo pai por brincar com uma amiguinha em “Eu só quero brincar”. De maneira simples, o livro infantojuvenil propõe a reflexão do papel da família na evolução da liberdade de expressão dos sentimentos, principalmente na educação de meninos.
Como criar meninos antimachistas?
Em diferentes configurações familiares, mesmo com algumas resistências em separar brincadeiras e até cores para meninos e meninas, a sombra da masculinidade tóxica ainda persiste nos detalhes. Na série “Coisa de menino”, da HBO Max, 11 famílias mostram suas rotinas na criação dos filhos. Um pai policial que teve a infância violenta e hoje tenta ser mais amoroso com o filho, mães solo que buscam quebrar padrões com filhos adolescentes, famílias mais liberais e famílias que seguem preceitos religiosos são alguns dos personagens reais da produção. A proposta é refletir sobre como a criação das décadas de 1970 e 1980 seguem influenciando, de diferentes formas, nas escolhas dos pais de hoje e como o machismo está enraizado nas relações afetivas, inclusive no núcleo familiar.
Como mudar a forma de olhar para homens e mulheres?
Com a experiência de ouvir pacientes homens sobre os danos emocionais causados pela rigidez na criação, a psicóloga cita algumas recomendações. Algumas envolvem a prática da família questionar a cultura patriarcal para não repetir a mesma condução com os filhos. “O padrão limita o desenvolvimento do ser humano. A criança, independente do gênero, precisa ter espaço e liberdade para expressar seus sentimentos.“
Então, segundo ela, refletir sobre os preconceitos internalizados e o respeito à diversidade são pontos-chave para tentar equilibrar a criação de meninos e meninas para um bem comum.
Para construir outra forma de olhar e dialogar juntos, promovendo mais respeito entre eles e elas, Luana Menezes sugere criar mais oportunidades para que as crianças possam exercitar diferentes papéis sociais nas brincadeiras. Ou seja, estimular as meninas a se pensarem como líderes e entender de finanças, por exemplo. Enquanto isso, meninos podem ser incentivados a sonhar com o casamento, e cuidar do lar e de bonecos.
Para a psicóloga, o importante é orientar as famílias a preservarem a sensibilidade dos meninos para a construção de uma masculinidade saudável. “Tudo em excesso e de forma rígida nos adoece. Por isso, o feminino e o masculino devem estar em equilíbrio em todos nós.” Se por um lado as meninas precisam de empoderamento, por outro, os meninos demandam afeto e bons exemplos. Assim, tudo passa por uma questão de criação longe das amarras do patriarcado.
No livro “BoyMom: Raising Boys in the Age of Toxic Masculinity” (BoyMom: criando meninos na era de masculinidade tóxica, em tradução livre), a autora Ruth Whippman aborda o desafio de cuidar dos meninos de hoje. Embora estejamos “todos presos em um sistema tóxico”, diz, não cabe exclusivamente à mãe a missão de alterar a rota na própria casa. Para ela, o melhor caminho é se concentrar nos sentimentos. “Tente abordar seu filho com generosidade e vê-lo como um ser humano emocional e que pode se conectar da mesma maneira que faria com uma filha. Além disso, faça com que ele assuma a responsabilidade pelos sentimentos das outras pessoas.” Segundo ela, moldar os meninos para serem “homens emocionalmente saudáveis” beneficia diretamente as mulheres.
O papel dos meninos de hoje para uma revolução de gênero
“Estamos vindo de uma geração de homens machistas, de baixa maturidade emocional e que mal sabiam o que era consentimento. Mas, hoje se espera que um menino de 15 anos se torne um homem não machista, livre de preconceitos, que domine sua agressividade e que saiba como praticar consentimento. Porém, onde ele aprende como fazer isso? Há uma escassez de espaços e pessoas preparadas para ensiná-los”, afirma Guilherme Valadares, diretor de pesquisa do Instituto Papo De Homem (PDH).
Mapear as dores e as alegrias desse grupo é o objetivo do projeto “Meninos: sonhando os homens do futuro”. A proposta é escutar meninos de 13 a 17 anos, de diferentes classes sociais, no Brasil, México e Argentina. Além disso, terá um estudo de dados e de diálogo com familiares para a construção de um currículo para trabalhar a masculinidade responsável.
Dados iniciais da pesquisa mostraram que 82% das meninas pediram a adaptação do currículo “Meninos do futuro” para elas. Isso inclui o desenvolvimento da saúde mental, equilíbrio emocional e respeito. A pesquisa culmina em um documentário de mesmo nome, que teve apoio do Pacto Global da ONU no Brasil.
“Acreditamos que trabalhar com os meninos afeta diretamente as meninas, pois vamos impactar uma geração de homens que se relacionará com elas a partir de outras perspectivas”, defende Valadares. Segundo ele, essa guinada para o olhar do cuidado aos meninos atravessa toda a sociedade. É assim, ao sonhar visões transformadoras de futuro para os meninos, que poderemos evitar os mesmos problemas de equidade de gênero nos próximos anos, diz Valadares.
Como podemos ajudar?
O objetivo do currículo do projeto “Meninos do futuro” é conscientizar novos olhares para a criação de meninos além do ambiente familiar, diz Guilherme Valadares. Isso porque o cuidado com as crianças é uma responsabilidade compartilhada por toda a sociedade. “Mapeamos as principais demandas dos meninos, meninas e famílias entrevistadas, para entender como cada um enxerga os meninos adolescentes e o que esperam deles”, conta. A ideia é incluir essas práticas em escolas, comunidades, ambientes de trabalho, centros esportivos e até clubes de futebol. Entre os assuntos que serão trabalhados estão:
- Construção e prática de masculinidades mais responsáveis e conscientes
- Explicar o consentimento e como praticá-lo
- Como acabar com todas as formas de preconceito geradoras de violência e discriminação
- Reforçar o senso de comunidade e propósito
- Lidar com a crise de desconexão e solidão crescente
Nos Estados Unidos, por exemplo, as mulheres são 30% mais inclinadas à esquerda do que os homens. Na Alemanha, os homens estão cada vez mais conservadores e as mulheres mais progressistas. No Brasil, uma pesquisa de opinião antes das eleições de 2022 mostrou que as mulheres seriam determinantes para escolher o vencedor nas urnas. Essa afirmação é do cientista político Felipe Nunes, CEO da Quaest, responsável pela pesquisa, à revista Veja, na época. A mesma pesquisa apontou que a eleição de 2022 foi uma das mais discrepantes entre a intenção de voto de homens e mulheres.