A vila de cerca de 6 mil habitantes, em Santarém (PA), protagoniza uma fase de intensa produção cultural a partir da ressignificação desta manifestação popular
O carimbó, manifestação cultural que tornou-se patrimônio imaterial, proporciona momentos de troca genuína entre imigrantes, turistas e nativos da vila de Alter do Chão, no Pará. Adultos e crianças tocam, cantam e dançam juntos, resgatando a tradição.
“Vovô, eu preciso voltar para Alter do Chão, porque vou tocar com os mestres na Quinta do Mestre”, disse o menino paraense Caiubi, 7, em visita à sua família materna em Belo Horizonte (MG).
Ele se referia à “Quinta do Mestre e a Sereia”, um evento de rua que nasceu em 2018, na vila situada às margens do rio Tapajós, e tornou-se um marco de transformação na percepção do carimbó pau e corda como manifestação cultural regional, tanto pelos visitantes quanto pelos próprios nativos e moradores.
A festa costuma acontecer semanalmente na orla, em frente à casa do Mestre Griô Chico Malta. Foi a partir deste evento que crianças filhas da terra passaram a ter um contato mais próximo com o carimbó raiz: os meninos logo são iniciados nos instrumentos e as meninas dançam com suas saias rodadas, embora haja um intercâmbio entre os papéis cada vez maior.
A sereia, por exemplo, figura criada pelo Mestre Chico Malta para representar a dançarina, é um estímulo para a imaginação de crianças como Jaciara, 5, irmã de Caiubi, que também gosta de participar do evento.
Carimbó pau e corda é o nome dado ao carimbó tradicional, uma manifestação que inclui música e dança a partir da fusão de influências indígenas, africanas e ibéricas. “Pau e corda” é uma referência aos instrumentos de base: curimbó, tambor, maraca e banjo. Ao longo do tempo, a essa formação original somaram-se também os metais, como flauta e sax. E esse carimbó raiz deu origem a outros gêneros como o tecnobrega, a lambada e o carimbó estilizado, que incorpora bateria, guitarra e outros elementos mais modernos. Mais difundido nas rádios, o carimbó estilizado faz sucesso em todo o país, em gravações de artistas como Pinduca e Dona Onete.
“O carimbó sempre esteve presente em Alter do Chão assim como em todo o Pará. Mas, com a patrimonialização e o trabalho de salvaguarda liderado pelo Mestre Chico Malta, adultos e crianças passaram também a fazer o carimbó: compor, tocar, confeccionar instrumentos, fazer apresentações e shows”, diz a antropóloga Luciana França, mãe de Caiubi e Jaciara, e companheira do Mestre Hermes Cadeira, nativo da região.
Mestre Chico Malta explica: “quando cheguei de Santarém, em 1984, não existia o carimbó pau e corda, tinha apenas um grupo que se reunia para dançar e receber os turistas, acompanhados por carimbó eletrônico, e as músicas que tocavam eram do Pinduca, que também se ouvia no rádio”. Ele conta que, em Alter do Chão, os Mestres e Mestras tradicionais defendiam o curimbó, ritmo tradicional do povo Borari de Alter do Chão.
O carimbó pau e corda chegou à vila por volta de 2005 e foi ganhando força com a campanha pelo seu reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, o que aconteceu em 2014. A partir da herança cultural do próprio território, incluindo os ritmos curimbó e marambiré, por exemplo, foi-se criando o sotaque do carimbó pau e corda de Alter.
Os grupos são formados, na maioria, por membros da família e amigos de infância. A produção das festas também é assim: um cuida da comida, outro do caixa, outro da decoração. Uma preocupação do Mestre Chico foi sempre promover atividades educativas para as crianças: “Utilizo composições para transmitir conhecimento de forma lúdica”.
Os grupos também promovem oficinas para compartilhar o processo de confecção dos instrumentos a partir de produtos da floresta amazônica, em escolas locais ou em vivências para turistas, algumas específicas para crianças. As maracas são feitas de cabaça ou cuia com sementes; já o curimbó, ou tambor, é moldado a partir da escavação de um tronco para deixá-lo oco no centro.
Centros culturais e turismo de experiência
Numa vila que tem o turismo como base da economia, todos esses elementos são também uma forma de proporcionar imersão na cultura local para visitantes de todas as idades. Com a dissolução do primeiro grupo de carimbó pau e corda, o Roda de Curimbó, seus integrantes foram criando outros grupos e, a partir deles, centros culturais, a maioria com atividades que incluem as crianças. Além da Quinta do Mestre, existem, por exemplo, a Toca do Tatu, a Casa Muiraquitã, o Centro Cultural Banzeiro, a Maloca do Cumaru, a sede da Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós e vivências itinerantes como o Pirarimbó, que é uma junção do carimbó com a piracaia, costume regional de se reunir para assar peixe na praia.
Se os adultos vivem esse momento de valorização da cultura, as crianças de hoje já nasceram com essa referência. “Na minha infância, a gente dançava o carimbó do macaco na escola, tinha muita música e dança nas quermesses, mas era o carimbó estilizado com músicas gravadas vindas de Belém”, conta a dançarina Gilvana Borari, professora de carimbó e mãe de três filhas, Graziele, 19; Luana, 14; e Tainá, 1.
Gilvana fala dos diversos tipos de aprendizado que o carimbó proporciona. “Ao dançar e tocar, a criança estimula a coordenação motora. Também tem a sociabilização, o trabalho em grupo. E quando estão maiorzinhos, eles passam a entender as origens do nosso povo: a mistura do índio, do negro e do europeu”.
Sandra e Hinho Moreno, pais de Estrela, 1, são um exemplo do florescimento do carimbó pau e corda na região e sua aplicação na educação. Ela, espanhola, ele, brasileiro de origem indígena, dedicam a vida a essa manifestação cultural. Dançam e tocam em eventos acompanhando grupos, costuram saias e camisas, e dão aulas e oficinas.
“O carimbó não entrou na minha vida, eu nasci no carimbó. Minha mãe dançava e costurava roupas para participarmos das festas”, diz Hinho. Mas foi a partir do surgimento do Movimento de Carimbó do Oeste do Pará que nos aprofundamos no carimbó raiz e passamos a entender a importância dele para a valorização e preservação da nossa identidade”.
O casal recém lançou um projeto no programa Consciência e Arte na Juventude (CAJU), do Instituto Aquífero Alter do Chão, que recebeu apoio do Unicef para várias atividades. Entre elas, “uma turma mista, com nativos e gente de fora, que participam de vivências de dança de carimbó uma vez por mês”, conta Sandra.
“Eu vejo que as crianças nativas enxergam o carimbó com muito orgulho. Nas letras das músicas há uma valorização da cultura do caboclo, da pesca, das comidas, do respeito à natureza. O carimbó também é um meio de reivindicação e de resistência”.
“Curuá, curuá carauari
Palmeira nativa do Tapajós
Palmeira forte, resiste até uma guerra
Seu tronco enterrado na terra, só as folhas vão brotar
Tira a palha, tira o fruto, tira o óleo pra fritar
O peixe na frigideira, pra depois saborear”
Música “Abrindo a palheira”, do Mestre Hermes Caldeira
A vivência do carimbó estimula também a criatividade das crianças, como defende o Mestre Silvan Galvão. “Meus três filhos sempre tocaram comigo e estão envolvidos com o carimbó. O Kaique compôs sua primeira música aos 9 anos”, diz. Em 2021, Silvan e os filhos Estefane, 19, Paulo, 17, e Kaique, 13, lançaram duas músicas autorais, “Carimboleira” e “Som chamegado”.
Segundo o Mestre Chico Malta, além de benefícios como autoestima, preservação da identidade e criatividade, o carimbó raiz tem ainda “um papel importantíssimo na formação do caráter, do respeito, do coletivo e da socialização de conhecimentos” entre crianças nativas e visitantes de Alter do Chão.
Para a antropóloga Luciana França, o fortalecimento do carimbó raiz a partir “desse movimento de Alter mostrou concretamente o efeito positivo que a patrimonialização e o estímulo às atividades de salvaguarda de uma manifestação cultural podem proporcionar a toda comunidade“.
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Fruto de um projeto com alunos da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), a antropóloga Luciana França lançou, em 2019, o documentário “Quinta do Mestre e a Sereia”, com depoimentos sobre o evento, como o do neto do Mestre Osmarino Kummaruara, Laudivan. Na época com 14 anos, o menino expressa a força deste movimento na sua infância e na vida da sua família: “Ele [Osmarino] quer melhorar o mundo através do carimbó. Ele quer resgatar uma das tradições que o grupo indígena veio transformando desde a época da colonização, é uma grande conquista para o povo ajudar o patrimônio cultural que o carimbó é”.