Estou cansada de falar e pensar sobre eleições, mas não me calo!

Gostaria de falar sobre crianças sem falar de política, mas defender as infâncias é um tema político, sim!

Juliana Prates Publicado em 24.10.2022
Em primeiro plano, uma mulher com traços latinos segura um menino no colo. Em segundo plano, um homem com traços latinos segura uma menina no colo.
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Resumo

Juliana Prates desabafa sobre o cansaço das eleições, quando temas relacionados às infâncias são também assuntos políticos, mas precisam ser debatidos em um momento de retrocessos. “É pelas crianças que não me permito ficar calada frente aos absurdos."

O que mais tenho ouvido nos últimos tempos é: Estou exausta! Estou cansada de falar de política! Chega de falar sobre eleições!

Eu confesso que também estou exausta. Quero poder voltar a dar aulas de Psicologia do Desenvolvimento da Criança em que eu fale (somente) sobre gravidez, parto, nascimento, brincadeira, imaginação infantil! Quero poder voltar a escrever textos que me lembrem do encantamento dos bebês, das peripécias das crianças. Desejo escrever sobre a importância da brincadeira para o desenvolvimento infantil ou sobre os benefícios do aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses de vida. Quero poder passar horas lendo e me especializando sobre o desenvolvimento cognitivo ao longo da infância. Na verdade, até queria poder ficar postando fotos lindas dos meus filhos em suas mais diversas fases do desenvolvimento. Queria poder sentar com meu grupo de amigas de maternidade para falarmos dos desafios de criarmos adolescentes ou das alegrias de aprendermos com eles.

Mas, dizer que há assuntos não relacionados à política é uma ilusão!

A ideia de que o cuidado infantil, a maternidade, as necessidades das crianças são dimensões da vida privada ou individual é uma grande cilada. Cada um desses aspectos que mencionei anteriormente são atravessados pela dimensão pública e social. As crianças são pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, mas também são sujeitos de direitos. Não há como falar sobre nascimento sem discutir as políticas de financiamento ao Sistema Único de Saúde ou sobre a violência obstétrica. Fazer um plano de parto e escolher a melhor obstetra para permitir um parto humanizado não pode estar desconectado do fato de que precisamos coletivamente lutar pelo direito ao nascimento para todas e todos ou desconsiderarmos que a inequidade racial no nosso país começa ainda na gestação.

Não é suficiente termos o mês do Agosto Dourado para falar de aleitamento materno, do Setembro Amarelo para debater a saúde mental ou Outubro Rosa para alertar sobre o risco do câncer de mama. Não há cores suficientes no arco-íris para melhorar a qualidade de vida das pessoas sem que se discutam as políticas públicas. Em muitos momentos, afastamos as crianças da vida pública como se fossem apenas um projeto inacabado do adulto que irá se formar no amanhã. Falamos das necessidades infantis como se fossem responsabilidade única e exclusiva de mães (e, às vezes, pais)! Falamos sobre a importância da rede de apoio, mas esquecemos que ela não envolve apenas amigos e pessoas próximas.

Eu sou uma apaixonada pelas crianças e uma defensora das infâncias. Nos momentos de maior cansaço me apego à energia que elas nos transmitem para achar brincadeiras novas ou nas suas interpretações inusitadas do mundo. 

É justamente pelas crianças que não me permito ficar calada frente aos absurdos.

Eu gostaria de, nos próximos dias, estar dando uma aula sobre qualquer fase do desenvolvimento infantil, demonstrando para os estudantes como a gravidez é um período fundamental para o desenvolvimento da criança ou como a linguagem vai se desenvolvendo nos primeiros anos de vida, sem falar dos absurdos que são os cortes de verbas para a educação e o sucateamento das universidades públicas. Queria falar sobre a importância da autonomia infantil e do pensamento moral, mas afirmações como “pintou um clima” me impedem de discutir outra coisa que não sejam políticas públicas e eleições.  

Esses golpes constantes, às vezes, me fazem querer desistir de escrever, de lutar em defesa dos direitos. Mas aí me lembro da minha filha quando tinha apenas um ano e meio, na véspera da minha defesa de tese de doutorado, serelepe, brincando e correndo de um lado pro outro, sem ligar a mínima para o fato de que em poucas horas eu teria que apresentar meu trabalho em frente a um júri de professores qualificados. Eu, desesperada, implorei para dormirmos um pouco, pois a mamãe precisava descansar. Ela, bem solene, correu pra cama, colocou o rosto no travesseiro, fechou os olhos por um minuto e depois, toda animada, disse: já dormiu! E levantou pronta para a brincadeira! Essa energia sem fim me anima! 

Finalizo esse pequeno desabafo a partir de um texto escrito por uma mulher trans, a escritora Letícia Lanz que nos diz assim: “Desistir… Eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério; é que tem mais chão nos meus olhos do que o cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos, do que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça”. Que a gente possa lembrar que cada um de nós pode, individualmente, se sentir cansado e que esses momentos merecem ser respeitados. 

No entanto, coletivamente, temos que seguir inabaláveis na certeza de que só podemos cuidar das crianças quando cuidarmos de todos.

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