O resgate de tradições e as histórias de família inspiram autores a transformar suas experiências em poesia
Das experiências vividas na infância, o encontro de gerações inspira os três livros criados a partir das memórias dos autores com seus avós. Assim, os laços se transformam em poesia nos livros “Bento vento tempo”, "Retratos" e “O jardim da minha Baba”.
“A relação estabelecida entre avós e netos, além do afeto, transmite para a infância uma herança cultural, de maneira simbólica, essencial para a formação da subjetividade da criança, de sua família e de toda a sociedade”, escrevem as psicólogas Camila Cuencas Funari Mendes Silva e Mariele Rodrigues Correa, no artigo “Trocas simbólicas entre gerações: avós, netos e a literatura infantil“. Do mesmo modo, a convivência com os avós também pode aproximá-la de aspectos concretos como a passagem do tempo, o adoecimento e a finitude.
Assim, dizem as autoras, os livros dão acesso ao mesmo tempo a histórias de vida e à ancestralidade. Isto é, além de serem um potente instrumento de socialização e conscientização, quando avós transmitem suas memórias e vivências por meio deles ajudam a cultivar sentimentos de respeito e valorização do envelhecimento.
Em uma parede cheia de retratos sisudos, um menino enxerga a possibilidade de ajudar o avô tão querido a resgatar suas memórias e passá-las adiante. É assim que Stenio Gardel nos mostra, a cada página, como um retrato de um ente querido inspira a criação de textos sobre uma família. Ou, então, um lugar ou um acontecimento, a começar pela avó e pelo avô. São as lembranças de Roseana Murray. Ambos os escritores criaram obras inspiradas em suas infâncias com essas figuras tão importantes na vida das crianças, mas que dialogam também com quem já cresceu.
Em sua estreia na literatura para crianças, o cearense de Limoeiro do Norte, recorre às lembranças de seu avô para criar “Bento vento tempo”:
“Pois foi nas estradas da invenção e nas encruzilhadas das memórias onde reencontrei o meu Vô Cacá. Era trabalhador, também cuidava de sítio e de gado e me levava na garupa da sua mobilete amarela. Para mim, foi sempre careca, e fazia tudo muito cedo, levantando e indo dormir com o sol. Ele também, em algum momento da velhice, começou a esquecer, mas nas cenas dessa história e nos versos e rimas desse cordel, quero avivar a saudade e cantar sua permanência.”
Bento tem visto seu Vô Cacá mudar com o passar do tempo. Antes trabalhador e agitado, hoje ele é um senhor calado, cada vez mais esquecido dos outros e de si. Um dia, ele decide levar o avô à feira da cidade na bicicleta amarela que eles têm em casa, e assim dá início a um percurso fantástico e encantado – onde encontrarão sonhos, coragem e a si mesmos. A narrativa, cheia de ritmo e deliciosa para ler em voz alta, foi ilustrada pelo mineiro Nelson Cruz. Assim como Bento e vô Cacá, escritor e ilustrador formaram uma dupla para acordar a memória de infância de quem passeia pelas palavras e imagens de um Brasil profundo apresentado às crianças.
“Posso revirar o tempo
E restaurar o essencial
Posso ressoprar o vento
De uma saudade especial
Daquilo que às mãos é bento
Mas pro peito é crucial”
Já em “Retratos”, a carioca Roseana Murray resgata histórias a partir de fotos antigas. Assim, nos conta primeiro sobre a origem de sua família, começando pelo avô e pela avó. O avô parece um urso que dorme e sonha “que é jovem, ardente, apaixonado. Como um jovem urso.”
Já “a pele [da avó] é toda enrugada. Parece que já está virando árvore. O corpo também é pequeno. Ela toda parece um pássaro. […] Tem passos miúdos. Às vezes parece orvalho. Já está quase desaparecendo, dá para notar.”
“Na verdade seu dia é muito simples. Cozinhar para o avô, preparar biscoito de nata para os netos, tomar cuidado para não esquecer as coisas, a cabeça cheia de nuvens.”
Numa primeira edição cuidadosa, retratos e textos eram intercalados pela delicadeza de um papel manteiga a guardar memórias. Assim Roseana nos apresentava às figuras mais importantes de sua família. Isso porque a autora encontrou um álbum de retratos entre suas coisas e deixou um bilhete para a mãe sobre ciclos que se renovam: “Eu estou no meio dos netos, pequenininha, lá no fundo, toda empoeirada. Faz tanto tempo que os avós se foram, e você, a primeira filha deles, é que já vai ser avó!”. Nesta edição, os retratos ganham molduras coloridas e divertidas, numa linguagem mais próxima do público infantil.
Que terreno mais fértil há para as crianças do que um jardim? É o que mostra Jordan Scott no livro ilustrado “O jardim da minha Baba”. Ele nos convida a participar de uma cena comum no dia a dia de algumas famílias: o pai levando o filho bem cedinho, no nascer do sol, para a casa da avó. Era na casa de sua Baba – como ele a chama em decorrência de sua origem polonesa – que o canadense ficava enquanto seus pais trabalhavam.
Durante esse convívio diário, ele aprendeu muito sobre aqueles que sobreviveram a guerras e ao valor que dão ao que lhes faltou nos tempos difíceis. Da mesma forma, herdou da avó o hábito peculiar de coletar minhocas. Era no jardim, depois de retornar da escola, que os dois cultivavam juntos a terra e garantiam os alimentos para as próximas refeições. Nesse espaço de aprender sobre a natureza, sobre esperar as recompensas, avó e neto aprenderam também a se comunicar em uma língua própria:
“Minha Baba morava sozinha no galinheiro, e era ali que passávamos a maior parte do tempo juntos. Ela não falava inglês muito bem, então, na maioria das vezes, nossa comunicação acontecia através de gestos, toques e risadas. Nós também nos comunicávamos por meio do nosso amor pela comida. Minha Baba amava minhocas. Todas as manhãs, ou depois de uma pancada de chuva, ela me levava para procurá-las nas calçadas e sarjetas. Eu sou um homem adulto agora e ainda coleto minhocas. Meus filhos também.”
Inspirado nas memórias da infância do poeta, a delicadeza do texto de Scott se une aos detalhes das ilustrações do premiado artista Sydney Smith. A partir de imagens, sons e cheiros experimentados por um menino que passa as manhãs com sua avó, o resultado é um convite aos leitores a se demorar na leitura. Além disso leva cada um a entrar num outro tempo, que conecta a infância com a velhice. É como se o neto e sua Baba dissessem no desenrolar da narrativa para aproveitarmos o tempo presente perto de alguém que amamos. Embora neto e avó não falem a mesma língua, eles se comunicam pela linguagem do afeto. Uma história profundamente pessoal que evoca sentimentos universais.