3 gerações de mulheres se conectam em 3 livros para crianças

Entre linhas, costuras e bordados, três livros aproximam crianças e adultos dos afetos entre três gerações de mulheres

Renata Rossi Publicado em 26.07.2023
Foto de três mulheres de três gerações diferentes, avó, mãe e filha. Todas são negras e estão se abraçando e sorrindo
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Resumo

Três gerações de mulheres se conectam por laços feitos de linhas, costuras e bordados nessas três narrativas. Escritos por mulheres, os livros “A costura”, “Amanhã" e "Fios" trazem à tona experiências e memórias familiares cheias de afeto.

Um xale, memórias da escola e o adoecimento de um familiar inspiraram a criação de três narrativas conectadas por um fio invisível: os laços de três gerações de mulheres. Escritos também por mulheres, “A costura”, “Amanhã” e “Fios” trazem à tona experiências cheias de afeto para dividir com crianças de todas as idades.

Com a proposta de valorizar a cultura palestina por meio de seus objetos, Isol, a autora argentina de “A costura”, conta em uma entrevista que recebeu um xale feito naquela região e a encomenda do Museu Palestino de criar um conto infantil para o projeto “Palestinian Art History as Told by Everyday Objects”. Ao observar as imagens que formavam os bordados da peça, começou a ver cenários. Assim surgiu a história do Lado da Frente, o mundo em que vivemos, e do Lado de Trás, com seus mistérios e criaturas estranhas.

Lúcia Hiratsuka nos convida a acompanhá-la no caminho para as escolas da avó, da mãe e de suas próprias memórias de infância. Além das histórias de família, caraterística muito presente na obra da autora paulista, “Amanhã” traz três contos que entrelaçam as culturas japonesa e brasileira e mostram a escola como espaço coletivo de transformação social onde se pode “esperançar” novos caminhos possíveis.

Já em “Fios”, a rede de apoio de mulheres que se costurou quando sua avó adoeceu e se tornou dependente de cuidados inspirou o livro de Chris Nóbrega. Para contar essa história, a obra foi toda feita em família: os bordados são da mãe da autora, Maria Freitas, e as ilustrações ficaram a cargo do sobrinho Gabriel Dutra.

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Cena do livro “Fios”

Conheça mais detalhes sobre cada um dos 3 livros:

Bordados e seus avessos

“Vamos começar pela aldeia onde vivemos: temos árvores frutíferas, casinhas vermelhas triangulares, muitas flores e um rio no meio.
Cada coisa tem seu lugar, tudo arrumado e bonitinho. Parece até com os bordados que minha avó faz.
Ao mesmo tempo, dizem, existe outro mundo, bem atrás do nosso, muito mais inusitado, com paisagens cheias de nós, linhas penduradas e estranhos animais. […] Mas esse lugar só pode ser visitado em sonho” – (Trecho de “A costura”)

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“A costura”, Isol (Pequena Zahar)

Por entre linhas, bordados, tramas e costuras, Lila conduz os leitores em uma aventura fascinante em busca do que se perdeu no lado de cá e do que acontece no avesso do mundo. Para aplacar os questionamentos da mãe sobre as coisas perdidas, a menina tenta explicar sua teoria que envolve o mundo em que vivemos e o lado de lá, que só pode ser visitado em sonhos. A ideia é simples: basta costurar todos os buracos que com o tempo surgiram por aqui e onde certamente caem as coisas perdidas. Mesmo contra a vontade da mãe – que culpou as histórias que a avó contava pelo excesso de imaginação da filha, Lila empunhou linha e agulha e saiu para consertar os buracos do mundo (e parar de perder seus pertences). Mas esta solução traz consequências para o Lado da Frente e o Lado de Trás. É graças à cumplicidade entre avó e neta que os remendos começam a se desfazer. Dividido em cinco partes — as coisas perdidas, os buracos, a névoa, solstício e o epílogo — o desfecho surpreende pelas possibilidades que guardam o avesso do mundo, nem sempre como imaginamos.

A caminho da escola

“Assim que passamos a pequena ponte, num curto lá adiante, está ela de madeira, a pintura de cal lavada pelas chuvas,
as portas e janelas olham para a estrada.
A escola! Dentro do amanhã.” – (Trecho de “Depois da ponte”, do livro “Amanhã”)

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“Amanhã”, Lúcia Hiratsuka (Pequena Zahar)

“Amanhã tem escola?”, perguntam três meninas. Com os delicados traços da artista plástica, entre cores que brotam da terra ou chegam de longe, entre espanto e ansiedade, surgem palavras, desenhos e cantos que mostram as trilhas de três gerações para o amanhã em três contos ilustrados. O desejo comum das protagonistas – a própria autora, sua mãe Sayuri e sua avó Orie – é ir à escola. Tudo começa com mãe e filha na máquina de costura criando um porta-marmitas, que seria levado para a escola. “Depois da ponte”, o conto que abre o livro, é memorialístico. Hiratsuka conta no posfácio que recolheu imagens, cheiros e cores do caminho para a escola para compor as paisagens do sítio Asahi — que significa sol da manhã —, no interior de São Paulo, onde ela nasceu e cresceu. Ao retornar da escola, a menina mostra satisfeita seu caderno e pergunta se a mãe ia às aulas quando era criança. A resposta amplia a curiosidade: “no meu tempo era diferente, a escola mudava de lugar…”. Em “Caminho das amoreiras”, Sayuri conta que, em vez do sol da manhã, o que acompanhava as crianças até a escola eram lanternas, pois era preciso estudar sem chamar a atenção. Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro proibiu por um período o uso da língua japonesa e chegou a fechar escolas. Apesar disso, Sayuri e outros imigrantes resistiram e seguiram seus estudos. No terceiro conto “Tooryanse”, que é também o título de uma cantiga popular japonesa que a autora adaptou livremente nesta narrativa, conhecemos a história da avó Orie, que estudou no Japão e tinha como professor um monge. Para ir e voltar da enorme escola cheia de janelas, Orie precisava passar por um bambuzal. Era a cantiga que lhe dava coragem para atravessá-lo.

Fios que bordam afetos

“Naquele dia uma virava mãe e a outra avó. A avó, a mãe e a menina desde aquele dia seguiram juntas.” – (Trecho de “Fios”)

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“Fios”, Chris Nóbrega e Gabriel Dutra (Maria Cobogó Coletivo Editorial)

Neste retrato dos afetos que unem três gerações de mulheres e suas memórias de infância, sempre que necessário, as mais velhas consertam vestidos rasgados, joelhos ralados e corações partidos. As mais novas aprendem cantigas e a origem dos sentimentos. O bordado da vida une essas mulheres e as mãos – sempre em evidência nas imagens – bordam, costuram, cozinham, afagam e seguram outras mãos, quando se apoiar é preciso. As mesmas mãos também podem enxugar lágrimas e espantar o medo diante do esgarçamento dos fios da vida. De forma delicada, esta narrativa enxuta fala da morte como despedida, em uma página que inspira o silêncio. Logo em seguida, um nascimento. Entre nascer, viver e morrer, “Fios” borda — literalmente — a rede de afetos que se forma quando chega um bebê e quando alguém querido se despede. É pelo ponto do bordado que se acompanha a passagem do tempo, o amadurecimento da neta, os ciclos quando a mãe vai assumindo papéis e o esquecimento da avó.

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