Ex-coordenadora do PNAE avalia o veto presidencial ao reajuste da merenda, responsabilidade dos estados e municípios, e os entraves para a execução do programa
Em entrevista ao Lunetas, a nutricionista Albaneide Peixinho, ex-coordenadora do PNAE, avalia o veto ao reajuste do programa, a responsabilidade dos estados e municípios no recurso, e as principais dificuldades para fazer comida saudável chegar à mesa das crianças.
Num país onde 33 milhões de pessoas estão com fome, o investimento na escola é fundamental para a proteção da criança, pois é nesse ambiente que ela passa boa parte de sua infância, o momento mais estratégico da vida para o desenvolvimento de suas capacidades físicas, mentais e emocionais. Apesar disso, em agosto, o governo federal vetou a emenda parlamentar à Lei de Diretrizes Orçamentárias que previa reajuste de 34% ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), para onde seriam destinados 5,53 bilhões (1,5 bilhão a mais do que o atual) – desde 2017 não há correção do valor per capita.
De acordo com os dados do Ministério da Educação, o valor repassado hoje pela União, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), aos estados e municípios por dia para cada criança é de R$ 1,07 em creches, R$ 0,53 na pré-escola (sendo R$ 0,64 para escolas indígenas e quilombolas) e R$ 0,36 para o ensino fundamental e médio, cálculo realizado com base no Censo Escolar do ano anterior. O restante é complementado pelos estados e municípios.
“Alimentação escolar faz parte da educação. Não apenas para as pessoas que estão passando fome – pois há escolares que não estão – mas porque estão gastando energia”, afirma a nutricionista Albaneide Peixinho, que coordenou o PNAE durante 13 anos. Ela reforça que este é um direito de todas as pessoas que estudam, que deve ser garantido pelo governo federal, estados e municípios, já que se trata de uma ferramenta fundamental na garantia do aprendizado, da concentração, memória e energia necessária para trabalhar o cérebro.
Mas com o aumento dos preços dos alimentos naturais e pouco processados, os ultraprocessados ganham espaço no mercado da alimentação escolar. Além disso, como denunciou a ACT Promoção da Saúde na cartilha “Proteção da escola contra a interferência da indústria de alimentos”, essas empresas passam a utilizar estratégias como gincanas, oferta de material, formação de professores e distribuição de brindes, por exemplo, para inserir produtos prejudiciais à saúde dentro do ambiente escolar. “O problema também é cultural, a partir do que se come dentro de casa, da publicidade infantil das empresas associada a brinquedos, do que os próprios escolares querem ou vêem na cantina”, diz Albaneide.
Colocar comida saudável na mesa das crianças não é um trabalho simples. Como explica a nutricionista, para se ter acesso a alimentos de qualidade e adequados à necessidade de cada um, é preciso organizar a escola em torno dos chamados “circuitos curtos”, que ultrapassam as funções centrais da educação: identificar o agricultor local; negociar fornecimentos duradouros; ter estrutura para armazenamento e preparo dos alimentos, realizar um trabalho de conscientização. Portanto, na prática, a aplicação do PNAE significa uma série de operações ocorrendo simultaneamente ao longo do dia, nos 5.570 municípios, com milhares de escolas, atendendo aproximadamente 40 milhões de pessoas.
Albaneide Peixinho é nutricionista e ex-presidente do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN). Além de ter coordenado o PNAE, participou ativamente da construção do Programa Fome Zero e da elaboração de outros projetos de lei, entre eles a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), a Emenda Constitucional 64, inserindo alimentação como Direito Social.
Em entrevista ao Lunetas, ela fala sobre a responsabilidade do Estado sobre o valor per capita do programa, a necessidade de integração das políticas públicas que impactam a alimentação escolar e destaca as principais dificuldades na execução do PNAE. Confira:
Lunetas – O valor do repasse para a alimentação escolar não é revisto desde 2017 e o governo federal recentemente vetou o reajuste de 2023 para o PNAE. Como você avalia o atual valor per capita do programa destinado por dia a cada criança nas escolas considerando o cenário da fome no Brasil?
Albaneide Peixinho – O poder de compra diminuiu. Uma coisa era o per capita do PNAE em 2017, outra coisa é o per capita em 2022, pois os valores não acompanharam a inflação: ou isso impacta no fornecimento de alimentos ou os estados e municípios precisam aportar mais recursos para garantir alimentação adequada e saudável.
Na Constituição, a responsabilidade pela alimentação escolar é dos três entes federados, e não apenas do governo federal.
Portanto, o direito humano à alimentação adequada dos alunos está sendo violado. Estados e municípios deveriam estar aumentando sua complementação, bem como pressionando o governo federal para aumentar o repasse. Onde está o movimento dos secretários estaduais e municipais de educação? Cadê o movimento dos governadores e prefeitos?
A alimentação escolar nos mostra a possibilidade de integração de políticas públicas para o enfrentamento de problemas sociais. Como você vê os principais desafios dessa integração na construção do PNAE?
AP – É preciso integrar as políticas públicas, porque elas podem colaborar entre si. Existe o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), em que é direcionado um recurso do próprio FNDE para dar apoio à manutenção da educação e que permitiria, por exemplo, a compra de botijão de gás, panela ou equipamentos adequados para fazer comida e facilitar o trabalho de merendeiras e cozinheiros do país. Não há uma legislação que defina essa profissão, então muitos acabam tendo sobrecarga de trabalho e adoecendo ou se afastando. Com isso, professores e diretores passam a ter que assumir esse papel de oferta das refeições e, às vezes, também não têm condições, pois precisam dar aula. O que acaba acontecendo é que eles optar por distribuir, o que é mais prático. Portanto, existe um problema que vai além do baixo per capita, mas está na execução do programa. Há outras políticas que confluem para melhorar o PNAE, como programas do Ministério da Cidadania de educação alimentar, de horta urbana e periurbana, incentivando o cultivo nas escolas. Existe o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), além de programas para a construção de cisternas.
São muitas ações dentro do PNAE e não apenas “merenda”, certo?
AP – Alimentação não é merenda. Desde 1965 o programa se chama ‘alimentação escolar’. Na oferta das refeições, há café da manhã, almoço, lanche e jantar.
Alimentação é um direito, esteja a criança passando fome ou não.
Não se pode reforçar que a escola pública é um lugar onde só estudam pobres, passando fome, e que os ricos e de classe média não precisam comer. Eu não gosto de pensar no programa como “merenda escolar”, que significa um lanche rápido. O PNAE envolve educação alimentar e nutricional, e é por meio da escola que se ofertam as refeições. Mas também há a questão dos currículos escolares e disciplinas ofertadas pelos professores que podem utilizar exemplos de alimentos saudáveis para crianças. Isso impacta no livro didático, que é uma outra política. As capas dos livros didáticos passaram a ter menções a alimentos saudáveis e adequados. Se impactam na alimentação escolar, as políticas precisam ser pensadas juntas.
O PNAE, a partir de 2009, se tornou um exemplo internacional. Por que, dentre programas brasileiros replicados mundo afora, ele foi o que mais chamou atenção dos países?
AP – Primeiro, porque, no Brasil, o PNAE atende quase 22% da população. Não são apenas crianças e adolescentes, mas adultos que resolvem voltar para a escola. O modelo brasileiro de participação na escola já é um diferencial em relação principalmente a países da África e da América Latina. Segundo, porque os países entendem que, por meio da educação, é possível melhorar o desenvolvimento do país e das cidades quando educam a pessoa a buscar formas de se ter uma qualidade de vida melhor. E a alimentação faz parte da educação. Não apenas para as pessoas que estão passando fome – pois há escolares que não estão – mas porque estão gastando energia. E quando se gasta energia é preciso repô-la, e garantir segurança alimentar e nutricional onde quer que a pessoa esteja é responsabilidade do Estado. A maioria dos escolares sai cedo para se deslocar até a escola, toma café às 6 da manhã – para aqueles que comem -, e às 10h já está com fome. Não estamos falando apenas de fome por necessidade financeira, mas a fome por necessidade de reposição da energia que já foi gasta no recreio, por exemplo. É uma exigência do corpo.
E cada uma das crianças terão demandas alimentares específicas…
AP – A lei diz que é preciso ter avaliação nutricional dos alunos, para avaliar a necessidade de repor mais cedo ou mais tarde e quanto. Os alunos que não comem em casa precisam ter uma refeição logo ao chegar na escola, porque já estão com baixa de glicose no sangue. Esses países que se espelharam no Brasil perceberam que, por meio da educação, é possível melhorar a condição socioeconômica do país e a alimentação é uma ferramenta importante na garantia dessa educação. Como disse Paulo Freire, ‘você só aprende com a barriga cheia’.
Qual o resultado que podemos esperar da educação se escolares estão com fome?
E não basta ter comida saudável nas escolas, é preciso ser adequada também. Para diabéticos, hipertensos, intolerantes à lactose, à ovo, à laranja. É preciso estar assegurado o direito de ser atendido e atendido nas suas necessidades efetivas. Por isso, também existe uma legislação que confere ao escolar o direito de ter uma laudo médico afirmando que ele tem alguma patologia e que, portanto, tem restrições alimentares. É obrigação do Estado bancar essa alimentação, e não da família.
Colocar comida saudável na mesa das escolas é uma ideia maravilhosa, mas que enfrenta o interesse de mercado. Como isso interfere na seleção e distribuição de alimentos nas escolas?
AP – A grande maioria dos municípios tem nutricionistas, apesar de ser em número insuficiente Esses profissionais elaboram o cardápio a partir do valor que é definido para eles, ou seja, se o orçamento é ‘x’, eles precisam realizar um cardápio saudável de acordo com isso. Mas o problema também é cultural, a partir do que se come dentro de casa, da publicidade infantil das empresas associada a brinquedos, do que os próprios escolares querem ou vêem na cantina. Há crianças que mal saem do peito e só tomam mamadeira açucarada. Quando chegam na creche, só querem mingau com açúcar e, se não tomam, choram. Para desconstruir o hábito que vem de casa, é um problema para os professores. Enquanto se tem um grupo tentando ofertar algo saudável, há vários fatores ao redor que prejudicam esse trabalho. A grande investida está no setor de compras.
Como o enfrentamento à pandemia poderia ter sido diferente no que se refere à segurança alimentar e nutricional?
AP – Eu tento separar o desgoverno em que vivemos e o trabalho de alguns técnicos que ainda estão comandando as políticas públicas, que estão na resistência. Como não foi interesse do governo federal no primeiro momento olhar para a pandemia, isso refletiu nas diversas políticas. Se demorou para aprovar uma lei que permitisse que municípios e estados, com recurso do governo federal, pudessem formar o kit escolar. Foi preciso que a sociedade civil se reunisse para formular esse projeto de lei. A lei do PNAE é clara: é considerada alimentação escolar todo alimento que entra na escola, e não fora dela. Muitas escolas foram fechadas e as parcelas dos repasses continuavam caindo nos estados e municípios. Além disso, a lei não permite usar esse repasse para outros fins, apenas nos dias letivos, dentro da escola. Mas não havia dias letivos na pandemia, não havia como ofertar a alimentação às crianças fora da escola. A saída foi o projeto de lei com kits escolares. O problema que vi não foi na legislação, mas nos municípios e estados em ofertar as cestas. Era uma logística muito grande com fornecedores e famílias, sem estrutura suficiente para entregas, além da compra de outros insumos não previstos. Mas tiveram também municípios e estados que não fizeram nada e terão que prestar contas sobre por que não gastaram o recurso que foi entregue para alimentação. O que falta nesse país é fiscalização. Se houvesse consciência para o cumprimento das ações, não haveria necessidade de tanta fiscalização.
E qual a percepção do PNAE hoje?
AP – Não é fácil executar um programa desse tamanho. É preciso ter consciência da necessidade de sua existência. Caso contrário, tudo será um problema para garantir alimentos saudáveis, desde a licitação para a compra dos produtos, o agricultor que não conseguiu entregar a quantidade prevista ou a chuva que impediu a colheita. Um dia teremos um programa ideal. É preciso valorizar os técnicos que estão na ponta, pois são eles que carregam o PNAE nas costas: nutricionistas, as merendeiras, conselho de alimentação escolar, os técnicos do governo federal… Na hora da fiscalização sobra para eles. Agora, a questão política depende muito da pressão da sociedade civil. O recurso aprovado pela Câmara foi menor do que o do ano passado. Como o Executivo manda ao Legislativo um orçamento menor do que o ano anterior, se o poder de compra diminuiu?
Se o Senado não derrubar esse veto, 2023 será um caos. E aí não dependerá dos esforços dos técnicos.
O MEC diz que o PNAE é um programa suplementar de recursos financeiros. De onde eles tiraram isso? Eles dizem isso para um jogar a responsabilidade para o outro. O PNAE é um programa suplementar à Educação. É só ler no artigo 208 da Constituição, inciso 7. Por quê? A Educação está constituída de disciplinas, manutenção de ensino, plano curricular, escolares, professores… Suplementar a isso é o programa de transporte, de manutenção da educação pelo livro didático, de alimentação escolar, pois não estão no eixo principal da discussão, mas complementam-no. Esse para mim é o ponto fundamental.
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O PNAE foi criado em meados da década de 1950 com a finalidade de garantir aos alunos das escolas públicas a oferta de, no mínimo, uma refeição diária durante o seu período de permanência na escola. Atualmente, o programa se propõe a suprir parcialmente, no mínimo, de 30 a 70% das necessidades nutricionais de crianças e adolescentes. Com a Lei nº 11.947, de 16/6/2009, 30% do valor repassado pelo PNAE deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar, medida que estimula o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades.