A advogada Luiza Simonetti não sabia que a sua vida estava prestes a mudar durante uma visita corriqueira a uma das instituições de acolhimento onde atua. Ela foi surpreendida com a pergunta de uma das meninas que participava da atividade: “tia, se eu gostar de matemática, eu posso ser advogada como você?”. Elisa, na época com 9 anos, recebeu como resposta: “você pode dominar o mundo”. Mais do que a atenção de Simonetti, a abordagem da pequena criou uma conexão. Naquele dia, as duas conversaram por horas.
Ao chegar em casa, Simonetti mostrou uma foto de Elisa ao marido e comentou sobre a menina. Até então, a adoção só era um tema na família por causa do trabalho e militância da advogada. Juntos, entre filhos e enteados, o casal já tinha quatro crianças e adolescentes. Porém, o encantamento com Elisa falou mais alto, e os dois decidiram se habilitar para a adoção.
Começou então a saga contra o tempo para reunir documentos, cumprir os requisitos legais e seguir todo o protocolo solicitado pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), serviço criado em 2019, após a união do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA).
No Brasil, são 31,3 mil crianças e adolescentes em acolhimento familiar e institucional, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), das quais 4,2 mil estão disponíveis para adoção. A maioria é parda, menino e tem mais de 10 anos. Por outro lado, a maioria entre as 33 mil pessoas em busca de adotar quer crianças brancas de até 4 anos.
Os primeiros passos para a adoção
Assim como fez Simonetti, quem quer adotar uma criança ou adolescente no Brasil precisa cumprir alguns passos. O primeiro deles é a habilitação, na qual a pessoa ou casal formaliza o interesse para a Justiça. O requerimento pode ser feito gratuitamente na Vara da Infância e Juventude da região de residência e não necessita de acompanhamento de advogado ou Defensoria Pública. Também pode ser feito no site do CNJ. É nesse momento em que a família descreve o perfil da criança que pretende adotar e apresenta os documentos estabelecidos no artigo 197a do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A partir daí, a Justiça irá analisar se os interessados têm condições sociais, financeiras e psicológicas para assumir o compromisso, em uma análise conjunta de psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. O processo pode durar até 120 dias. “Às vezes, a habilitação é negada porque a família ainda não amadureceu a ideia, romantiza demais. No caso, o potencial adotante pode passar por um acompanhamento”, explica a juíza Hélia Viegas, coordenadora da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Para quem não conhece o processo, a adoção pode se resumir a tratar de questões legais e práticas, mas pessoas como Simonetti sabem que esta é só uma etapa. Há outra parte tão importante quanto: cuidar de como serão estabelecidos os vínculos da criança com a família, os irmãos, os amigos, a escola e os parentes. E isso começa bem antes da chegada dos pequenos.
“Primeiro, a criança precisa gostar de estar onde está, gostar de estar com a gente, entender quem a gente é. Fazer todas as perguntas que imaginar, para se sentir bem recebida, bem à vontade. Limite, respeito, vem em um segundo momento”, explica Simonetti.
Construindo a relação de pais e filhos
Depois de habilitada, Simonetti e o marido se tornaram compatíveis com o perfil de Elisa. Começou, então, uma segunda etapa. Durante seis meses, eles visitaram periodicamente o abrigo para estreitar os laços. Nesse momento, Simonetti se fez quase todos os dias a mesma pergunta: “Será que eu quero mesmo ter aquela filha?” Por trabalhar com a causa há anos, a advogada sabia da seriedade da decisão e temia estar sendo levada pelo impulso.
Quando entram em um processo de adoção, é comum as famílias fazerem sonhos e planos, envolvendo questões práticas como arrumar o quarto da criança e pensar em que escola irão matricular os filhos. Porém, o recomendado é começar questionando o desejo que move aquela adoção, como fez Simonetti. Além disso, é preciso preparar a criança ou adolescente, o casal ou o adotante, e todo o núcleo de convívio em que aquela criança estará inserida, para que o risco de devolução ou rejeição seja diminuído.
“Há famílias que não têm maturidade para lidar com as características da criança ou adolescente colocado para a adoção. Cada um deles carrega as suas dores e sua história de vida junto da família biológica”, afirma Viegas.
Os pequenos precisam passar pelo chamado “luto da família biológica”. “Aquele que vive em um ambiente de violência doméstica, de desamor, de negligência e miserabilidade, conhece apenas essa realidade de vida. Por maiores que sejam as dores, ainda existe um vínculo afetivo”, lembra a juíza. Dependendo da história prévia da criança, pode haver uma retração em iniciar novas relações com adultos.
“As crianças precisam de tempo e é preciso se dedicar à criança, ver o que ela gosta, entender como acalmar as inseguranças dela”, afirma a presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Silvana do Monte Moreira. “Muitas perderam a confiança nos adultos e vão testar se os pais estão preparados”, acrescenta a psicóloga Fátima Malta, coordenadora do Grupo de Apoio à Adoção de Alagoas (GAAAL).
De acordo com Moreira, o fundamental para estabelecer um vínculo é contar com o tempo a seu favor e lembrar que as relações são construídas. No caso de Simonetti e Elisa, o afeto começou a existir antes mesmo do interesse pela adoção. Uma das primeiras saídas da menina para o abrigo foi com toda a família: os quatro irmãos, o pai e a mãe. No dia seguinte, a menina já pediu para dormir na casa da família. No fim de semana, foi para a residência dos avós, onde conheceu também primos e tios. Na segunda-feira, Simonetti foi à escola da filha e ficou para a reunião de pais. Dali em diante, os encontros ficaram mais constantes.
Quando foram entrevistá-la no abrigo, ela já chegou dizendo nome e sobrenome,chamando o casal de pais, se referindo às outras crianças como irmãos. Um dos fatores mais importantes para o processo foi a relação criada entre Elisa e a irmã Manuela, da mesma idade.
“Facilitou muito o fato de eu já ser uma mãe experiente, e meus enteados estarem acostumados a participar comigo de eventos de adoção. Elisa entrou num contexto de crianças adaptadas”, afirma a advogada.
O que aconteceu com Simonetti, entretanto, não é o mais comum. É normal as famílias lidarem com frustrações durante o período de aproximação da criança, como aconteceu com a administradora Adriana Mendes, de 42 anos. Depois de oito anos tentando engravidar, ela e o marido decidiram adotar. Na época, parte da família foi contra. Do momento do cadastro até a chegada do filho, foram mais cinco anos de espera.
Inicialmente buscando um bebê, eles foram apresentados à Kauan, de 3 anos. A primeira vez que saíram com o menino, eles tinham um plano de aproximação, mas tudo precisou mudar. “A gente criou mil expectativas para esse passeio, de levar presente, levar para piscina de bolinhas do shopping… Quando a criança entrou no carro, foi só desespero. Ele gritava, batia”, conta Mendes. Essa primeira experiência deixou lições.
“A gente tem que esperar o tempo da criança. E ter coração aberto. Bastou a gente dar amor e atenção que ele foi se rendendo”, diz.
No caso deles, a adoção aconteceu em fevereiro de 2020, logo depois começou a pandemia, o que gerou uma convivência em tempo integral, para além da licença-maternidade e paternidade garantida por lei aos pais em caso de adoção. “Uma das avós, que no começo era cheia de medos em relação à adoção, passou a pandemia na nossa casa. Hoje, é louca por Kauan”, conta.
Acolhendo o recém-chegado
De acordo com Moreira, há alguns cuidados para evitar que a criança não se sinta acolhida. “Se você adota uma criança em idade escolar, não busque uma escola de ponta, pois provavelmente ela terá buracos de formação e pode se sentir deslocada”, exemplifica. Também é recomendado usar a licença-maternidade e paternidade para fortalecer o laço, como ocorre em um puerpério. Outra estratégia é deixar a criança montar com a família o quarto que irá ocupar, mas ter cuidado para não enchê-la de presentes e distorcer a relação. Não é recomendado levá-la para fazer uma lista de exames sequenciais, nada que fuja ao padrão do suporte médico habitual para a idade.
O cuidado também precisa acontecer entre os profissionais que vão escolher para onde a criança está sendo direcionada, pois deslocamentos entre interior e capital, por exemplo, podem fazer diferença em como a criança se sentirá. Além disso, “é importante saber lidar com a diversidade, mostrando que existem famílias homoafetivas, interraciais, monoparentais”, afirma Moreira. Quando a adoção é cofamiliar, ou seja, quando irmãos vão para famílias distintas, deve haver ainda a preocupação em como manter os laços fraternos entre eles.
Também deve haver atenção quando a criança chega em uma casa onde já há outros filhos. No caso de Simonetti, por exemplo, houve duas situações distintas. A filha se deu muito bem com a irmã, mas um dos irmãos – o caçula – teve ciúmes. “Elisa chegou e, de certa forma, ocupou um espaço de evidência que era dele antes. Foi preciso colocar as coisas no lugar. Esse foi o único percalço que a gente passou”, conta a advogada.
A importância dos grupos de apoio
Quando uma pessoa ou casal se habilita ao processo de adoção, existe uma etapa de espera, que pode ser prolongada a depender do perfil de criança buscado. No Rio de Janeiro, por exemplo, se você quiser uma criança com menos de um ano, a espera pode ser de até sete anos. No Recife, de acordo com a média das últimas adoções, pode-se esperar cerca de cinco anos por uma criança de até oito anos. Por isso, na hora de pensar no estabelecimento de vínculos, é fundamental entender se a adoção está ocorrendo por cansaço em relação ao tempo e se a família está de fato preparada para assumir uma criança ou adolescente na faixa etária prevista.
Nesse sentido, um importante instrumento são os grupos de apoio à adoção. Normalmente vinculados ou parceiros do juizado da infância e adolescência, promovem reuniões virtuais ou presenciais com pessoas inscritas no SNA, que já deram início ao estágio de convivência ou mesmo que já adotaram crianças. “No grupo para pré-habilitados, a gente discute o fundamento daquela adoção, mostramos o passo a passo, mas falamos também da parte psicológica, para trazer o pretendente para o chão, fazê-lo entender o que é real e o que está idealizado”, afirma Malta, ajudando a preparar as famílias para lidar com a história pregressa da criança.
“O que pode ser muito lento para você, para esses meninos pode representar um sacrifício enorme de desconfigurar tudo o que viveram”, acrescenta.
Os grupos também servem para as chamadas “buscas ativas”, em que se compartilha a história de crianças fora do perfil mais procurado, como irmãos e adolescentes, com anuência do judiciário, para estimular a adoção. No grupo de Alagoas, o publicitário Dyego Rocha, de 32 anos, é uma das cerca de 250 pessoas dividindo experiências de adoção tardia. Depois de trabalhar numa campanha sobre o tema, Rocha fez uma reunião familiar para discutir com os pais a possibilidade de trazer para casa um netinho.
“No começo, eu coloquei crianças do Nordeste no perfil, para facilitar o deslocamento para as visitas. Porém, com a pandemia e as crianças que perderam os pais em Manaus, mudei. Iniciei o cadastro no sistema e comecei a participar do grupo”, conta. Foi assim que viu as fotos de Yuri e Emanuel, na época com 9 e 10 anos, dois irmãos que estavam no interior de Minas Gerais. Eles faziam parte de um grupo de cinco irmãos, dos quais um voltou para a família biológica e dois foram adotados por outras pessoas.
Rocha decidiu iniciar a aproximação, passou cerca de três meses tendo encontros virtuais com eles. Com a ajuda dos pais e da rede de apoio, conseguiu liberação do trabalho para visitá-los presencialmente por 20 dias. No final de 2021, a adoção foi concretizada. “Os primeiros meses foram os mais complicados, pois eles vinham de uma realidade de negligência. O mais velho tinha o comportamento de uma criança de quatro anos”, lembra. Hoje, com o apoio institucional da escola e de psicólogos, os meninos têm conseguido recuperar o atraso na aprendizagem.
“Isso é fruto do apoio que a gente tem dado. Eles precisam de muito afeto, de carinho e atenção. Muitas dessas crianças às vezes não conseguem compreender o quanto isso é importante para elas, pois não recebiam antes”, afirma Rocha. Uma preocupação da família é manter o vínculo dos meninos com os outros irmãos por meio de chamadas de vídeo. “Eles são bem amigos um do outro, falam que sentem saudade, mas nem sempre querem conversar, por vergonha. Mas a gente reforça, mostra que é importante valorizar a família”, diz.
Para Rocha, o mais importante na hora de estabelecer os vínculos é sempre lembrar que não existe o filho perfeito. “Você vai precisar estar preparado, de coração aberto para conhecer a história, com os pontos positivos e negativos de cada um”, afirma. Quando isso acontece, a relação flui. A grande diferença se expressa em metas e sonhos, antes inexistentes e hoje verbalizadas pelos meninos em Maceió e por Elisa, em Manaus. “Antigamente, eu olhava para o futuro e não sabia o que eu queria. A minha mente era pequena, não tinha tantas informações. Quando eu entrei para a minha família, a bolha explodiu e agora eu sei tantas coisas que posso pensar no meu futuro”, conclui a filha de Simonetti.
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Não há negação no processo de adoção; há sentença de habilitação, sentença de não habilitação e suspensão do processo para que a(s) pessoa(s) trabalhem melhor o processo adotivo em terapia e/ou frequentando grupos de apoio à adoção. Em caso de sentença de não concessão da habilitação, existem os recursos processuais, como apelação, e recursos aos tribunais superiores. Sendo mantida a sentença de não habilitação, o interessado precisa recomeçar do zero.